Já não consentimos
imaginar o Mal para além do que nos é oferecido. Estamos reféns das imagens que
os seus modelos reproduzem. Ei-los mensuráveis, colados como selos às cartas
endereçadas ao bem-que-nos-pariu.
E eis-nos abarrotados,
até ao infinito, de cabidela, de vampiros, de espelhos que se vingam retroactivamente,
de ogres & aliens, de democratas que mentem ruidosamente e de tiranos de
viscosas mentes que florescem sob o bolor dos Hannibals desta vida, de putaria
baixa & escarninha.
Como insistir na
perfídia que já só se repete, extenuada, e já não afigura ser mais do que uma
sobra?
Ser sacana, maldoso,
ímpio, perverso, f. da p. qb, enrabar os anjos, engessados ou não, que intensidades
traz agora, quando os massacres se sucedem indiferentes, em directo, e em
Chicago escalpar bebés é o divertimento?
Lady Macbeth boceja e
nós, depois de todo o bem cariado, chegámos ao mal sem sombra.
Para abusar de dois
versos de Helder Macedo, o mal “telefona-me às vezes depois da meia-noite/quando
o silêncio raspa o vidro da janela” – e, foda-se, mal damos por esse “penetra”
na nossa festa.
E suspeito que depois
da “naturalização” do mal começaremos a perceber que o silêncio foi
perfurado.
Quanto tempo
precisaremos para compreender que perfurado não quer dizer perfumado?
“E eu nem sequer
estarei aqui a dar por isso/ por termos ficado todos tão parecidos” – volta a
escrever o Helder Macedo, um poeta absolutamente a redescobrir
e mais uma voz que
confirma a minha intuição de que há décadas que confundimos a literatura com o
turismo de massas, cabendo-nos a obrigação de corrigir o tiro.
Ladrilhos emprestados a “POEMAS NOVOS E VELHOS” de Helder Macedo,
Presença, 2011, livro a que voltarei:
De VIAGEM DE INVERNO
2
Um salto de raposa
sobre a estrada
último sol à beira da
fronteira.
depois somente a sombra
duma luz diurna
a câmara dos ecos
e círculos de corvos
sobre a neve
(…)
3
Na encruzilhada
vi-me reunido
restituído ao corpo que
previra
despedido
na bifurcada ausência
da estrada sem regresso
ou transgredido
na transparência nua
da pele em que te teço
ou reconheço
nessa rasgada lua
nesse mar vão de sangue
reflectido.
9
(…)
Mas os olhos que eu vi ainda
eram negros
da cor da primavera.
10
A esquina estava lá
e a árvore prevista
mas não eu.
Falto-me?
Faltei-me
mas nem sempre é
necessário não faltar.
Basta o simulacro de
árvore na esquina
basta a avenida sem
estrada onde passei
basta ouvir-me o
silêncio em cada passo.
18
O laranjal coberto de
limões
no corpo suculento da
memória
(…)
De O LAGO BLOQUEADO
Não há mistérios
há corpos
com saídas e entradas
que se encontram
e articulam o serem
divididos
não há não há mistério
e só assim conheço a
minha imagem
onde mais me desconheço
no teu corpo
minha imagem verdadeira
como quis sempre não
saber
há corpos
corpos apenas que não
são embrulhos
de alma
nem morte redimida pela
vida
por isso meu amor
vejo-me em ti
porque te desconheço
e também te vejo em mim
mas não falo já de mim
nem para ti
porque não és o corpo
que reflicto
à tua semelhança
que no entanto é tudo
quanto sou
sossega meu amor
não há mistério
meu amor
meu excesso frio de
paixão
há corpos
há corpos que se
encontram
e se sondam
até que os corpos parem
de morrer.
De O SETE
(…)
pra cama pra cama
e basta de prosa
quem fica de fora
não sofre nem goza
e arrunfa tafunfa
menina cachuncha
e trica larica
na pita catita
(…)
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