Revistas as provas finais do meu livro «Harpo Marx na Jaula do Leão», que sairá ilustrada com cinco belíssimos desenhos do Manuel San Payo.
É um livro de poesia que não sei classificar e que, pressinto, dividirá os leitores, tão à míngua de um lirismo de que, neste livro, me sinto algo arredado, ainda que termine com um longo poema de amor; o qual os que tendem a querer catar emoções nos versos acharão frio.
Um livro algo conceptual, em que o satírico alterna com alguns momentos de uma melancolia expansiva e em que o discursivo e o narrativo se sucedem, aqui e ali, armadilhados por elipses.
Será o meu segundo livro depois dos 50, e julgo que com o anterior«Não se Emenda, a Chuva», constituirá o momento mais maduro da minha produção. Neles abandonei os malabarismos da metáfora e da linguagem, numa mescla de construção e coloquialidade.
Aqui deixo o poema de entrada do ciclo que dá nome ao livro:
para o João Paulo Cotrim
1
Lembro-me duma jaula abelhuda
que não desgruda do desassossego de uma veiae de Harpo Marx lá dentro, com um leão
vagamente adormecido —
a buzina, emaranhada na juba,
muda — e dele
com o indicador nos pedir «shiu».
Ou talvez confunda
com outra jaula num comboioe outra indubitável fera fulva
em Some Like it Hot , de Billy Wilder.
O sniper que me ajusta a mira da memória
é que não me deixa mentir:
era felino o rosto de Harpo.
Glória de um homem talhado
para reinar, ainda que sóentre crisântemos, harpas e mimos,
tendo por ministros particulares
os poucos anjos
que – às primeiras, roazes, feiras
do Verão –, inebriados
pelo vento de nortada que tatua
o desejo nos pomares, não se evadem.
E ainda que vasto seja o sobrevoo
(a imaginação dos adultos sempre pinga),nunca será o desfecho previsível,
se, em troca de uma língua-de-gato,
em criança nos inquirem
o que
queres ser quando fores grande…
por isso, sem aparato, foi esse
o meu segredo
mais bem guardado na inflamável
fortaleza das amígdalas.
Queixava-se o Borges, eu que tantos
fui não fui o patusco que enxugou na sua ínsua maledetta o profuso estuário
da Ava Gardner (não era esta a Eva dele,
mas a que mais me aflui à infância
do desejo): retórica pura —
em matéria de sexo, só os toureiros
e as condessas descalças sabem da poda.
Eu queria ter sido simplesmente
o Harpo Marx das pontas que ficaram por montar, a sua mudez
presciente, posto serem as palavras
barcos que partem, encadeados
por desavisados destinos.
E, asseguro-vos, a vergonha
que tinha valia por doze sarapitolas,enchia oito frascos de compota.
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