Há um conto do moçambicano Carneiro Gonçalves, O Remo, que sempre me agradou muito e cujo final não esqueço:
«Sabes o que me apetece? Qualquer dia pego
num remo e fujo. Mato adiante, só paro quando tropeçar na primeira aldeia. Logo
que veja um homem: Sabes o que é isto?, e mostro-lhe o remo. Se ele disser que
é um remo continuo a fugir. Juro-te que ninguém me agarra. Fugirei até
desentranhar nova aldeia, até que ela me surja, por entre as franjas das
árvores mais altas da floresta, limpa como no princípio do mundo. E logo que
veja o primeiro homem pergunto: Sabes o que é isto? E se mesmo assim ele disser
que é um remo continuarei a fugir. Quando enfim encontrar o homem que for capaz
de dizer que aquilo é uma pá de um moinho,
espeto o remo no chão, instalo-me e recomeço a viver.»
Este
homem foge dos sentidos únicos,
movido pelo espírito de um irrigador de
infinitos. O tenaz desejo que o impele à errância preserva, por outro lado,
e paradoxalmente, a unicidade da
arte, no sentido em que valida atrevidamente nas imagens a ambivalência que as descristaliza, conciliando o singular
recorte hidrográfico com a potência do delta.
É num
espírito idêntico que Exúpery desenha a
jibóia que faz a digestão de um elefante – o que as pessoas “sensatas” tomam
invariavelmente por um desenxabido chapéu. Curioso é que libertação das coisas
da cadeia da sua aparência reproduz-se até nos erros da ilustração: Exupery empresta
uma peruca verde aos três embondeiros do planeta do Principezinho deixando-nos
sem dúvidas quanto ao facto do escritor nunca ter visto tal árvore - contudo,
como o narrador confessa terem sido aqueles embondeiros “inspirados por uma
grande sensação de urgência” legitima-se que uma certa e inesperada prenhez se
estenda à folhagem da árvore, que prolifera, cheia como a motivação ininterrupta.
É
mais que um simples jogo: o homem que
diz convictamente que um remo é uma pá de um moinho foi “movido” por uma mutação
do olhar que abole qualquer ricto estilístico, o que autoriza a que se enterre
o remo, fixo, no chão até enflorescer o moinho que um dia levantará voo com o
vento, levando o fugitivo dentro.
Porque
aquele que aceita em si a semente do devir, da metamorfose, nunca aceitará que
esta cesse.
A
arte que abre uma janela para o devir é a que mais me interessa, porque essa
encara o mundo como um mundo imperfeito, portanto, etimologicamente, um mundo
inacabado. Talvez nos caiba a nós perfazê-lo, acabá-lo. Para os celtas era esta
a missão que Deus deixara aos homens quando se retirara para descansar, no
sétimo dia. Agrada-me este desafio e a sua responsabilidade.
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