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De
cada vez que releio o Tratado Dos Anjos
Afogados, ou este novo Teatrofantasma,
descubro mais, em vez de reparar como
os frutos estão caindo. Em quantos livros se dará este milagre da multiplicação
da espoleta?
Não
faço ideia se o sobrenome Ariel lhe é de nascença ou se o Marcelo escolheu ser
a projecção solar de Caliban: o efeito é o mesmo. Na tempestade de Cubatã (a
favela de Santos, onde o autor vive), o poeta locomove-se como um cenógrafo, um
luminotécnico, um sonoplasta ou um actor do inferno, à vez ou simultaneamente -
e em raros livros detectamos uma semelhante honorabilidade
da urgência, como se se tratasse de mostrar que participar no mundo é
participar no mal mas é também contribuir para a sua metamorfose.
“A infância – diz Michaux - é a idade de ouro das questões e é de
respostas que o homem morre”. Mas isso só acontece a quem não teve de
correr sobre cacos de garrafa & pregos ferrugentos nem descobriu demasiado
cedo que as asas dos anjos não encobrem a poalha de vidro com que o mal intenta
fixar-nos as retinas. Quem for atravessado pelos ferros da auto-moribundia dos infernos, antes de saber sequer colocar as
perguntas, ou morre da danação ou nunca mais deixa de fazer perguntas. Pelo
contrário, crescer no apaziguado conforto urbano não permite adivinhar o que
seja andar verdadeiramente ao relento,
mais ao deus dará que bala perdida, com a desprotecção lavrada no sangue que
grafa em cicatrizes e tumultos os nossos amigos; que a expressão sem pathos existe sim mas depois da calcinação do
assentimento, da calcinação do amor, da calcinação da esperança, não é a impersonalidade elocutória, a dramatis persona dos estudos literários,
nem a mentira do ronrom académico:
«Acordo/Entre vizinhos/Um acorda/
Meia-noite/ E diz bom-dia/ O outro acorda/ Meio-dia// (Os dois enterram as
armas no quintal).»
Puro
escalpe.
Eu
não conhecia nada da vida do Marcelo Ariel, com quem nunca estive, até ter
começado a fazer este prefácio e ter lido três ou quatro resenhas que me
esclareceram sobre os motivos da afinidade secreta e subterrânea que nos une.
Também eu nasci da gaguez da pobreza, da sua descalibrada violência
onomatopeica, entre pomares que nadificam
enquanto os homens se entredevoram como bestas sem tino; também eu descobri
milagrosamente os livros enquanto os meus amigos enveredavam pelo roubo, o crack
e a heroína. Escrevi uma novela sobre a infância e adolescência, As Cinzas de Maria Callas, no dia em
que, movido por mais uma “falência técnica”, voltei ao bairro de infância e dei
conta de que haviam morrido 16 dos meus amigos por overdose. Também eu chegado das
periferias onde o sórdido e o belo, o sujo e o sublime, o amor e a traição, a
coragem e o medo, a miséria e o vil metal, o cuspo e o desejo se acotovelam e apinham
em varandas que o Manet nunca pintou. Também eu sou autodidacta, sem a infâmia consentida
de um mestre por resguardo e hóstia.
Pior,
só há uma semana dei conta de que o Marcelo era negro. Eu que vivo rodeado de
negros, via-lhe as fotos e pensava espantoso
sorriso. Simplesmente porque para mim não existem negros e brancos, amarelos
e azuis, ricos e favelados, os doutores e os seus barbeiros, mas seres de luz,
seres espúrios e seres límbicos, mas seja isto outra conversa. Foi preciso ter
lido: «poeta negro» para ter visto e tal se desdobrar num cerco hermenêutico -
já lá iremos.
Voltemos
ao autodidacta: ser autodidacta quer dizer, aquele que aprende a sondar no
escuro e aos poucos enxerga que a luz é um ideograma cujo feixe de significados
se deixa captar consoante a luminotecnia. Paralelamente, é esta a desgraça que
acomete quem segue a “via normal” de um crescimento pasteurizado: ensinam-lhe
que a luz é toda uma e a noite também. Esta suficiência
condiciona-lhes uma leitura redutora do mundo e da realidade e prepara-os para
a estereotipia. Quando o jovem que vive no estrume da favela chega à cidade dos
shopping centers, «rindo como um cadáver às avessas», repara aí que existem
outros guetos, que vivemos cercados de guetos, sendo a liberdade unicamente cosa mental, teatrofantasma. O que o separa dos demais é a lucidez.
Em
vão tentou Agamben explicar-nos que vivemos em “guerra civil”, dado esta
ocorrer “quando um estado de excepção se torna normal”. Os seres comuns não dão
conta, só os seres em confluência, os poetas que no meio do caos souberam
guardar o pólen, não o esquecem: «Somos o
fantasma-vivo da criança morta», escreve Ariel, o mesmo que no espelho de Teatrofantasma redige, emprestando a
voz a Emily Dickinson: «doce e raro/ é
esse silencioso equilíbrio/ entre pensamento/ e expressão,/ para nós/ um
equivale ao céu/ e o outro/ à sólida ilusão do chão// por hábito/ em ambos
ignoramos/ a mão/ de uma divindade/ enquanto sonhamos/ abrindo/ essa gaiola
subtil/ que chamamos/ realidade».
E
agora encetemos o nosso mergulho na catábase de Marcelo.
«Esta passagem não é dirigida ao leitor
vulgar, mas ao idiota muito especial que me compreende, julga ele, por ter
perdido a fortuna num desastre»: a frase é de Nabokov, no imperdível livro de
memórias sobre a sua infância, e pode estender-se a todos os que se viram
deserdados pelo inconveniente de haver
nascido - para quem esse acto natural constituiu o seu desastre, a ‘arkhé’.
Há
duas reacções possíveis face à comédia da desapropriação em que o capitalismo
encaixou os pobres, quando se acede à consciência, e, por fortuna da ironia, à
escrita. Ou se fazem declarações psicológicas, entrosadas numa sociologia-portátil,
e derivam daí os relatos de cunho naturalista e ao rés do morro, ou, tocados,
por uma lucidez mais englobalizadora, ainda que mais trabalhosa e inesperada, se
percebe que transcrever a realidade
é, paradoxalmente, abandoná-la porque a realidade é não apenas verbal mas
também mental, física, onírica, cultural, sendo este feixe ainda por cima refractado
pelo sistema de símbolos que a linguagem é.
Neste
caso, encetamos uma prospecção contínua das oscilações metamórficas de dentro, no intuito de estabelecer um
contacto pessoal com o numen do mundo
e as forças latentes do universo. Foi esta a escolha de Marcelo Ariel:
enveredar, de modo bastante oriental, pela análise da sua percepção do mundo,
de modo a discernir nela os pontos de contacto e o tracejamento dessa
intensidade.
Daí
que escreva: «No Tratado dos Anjos Afogados (…) procurei embaralhar as coisas para
extrair delas um ‘fato puramente mental’ e não objectivo.
Jamais saberemos o que é Real, o irreal
nos cerca…».
O
que nos permite rastrear o sentimento que atravessava o Tratado dos Anjos Afogados e que retorna em Teatrofantasma: estamos
separados, e o trabalho com a expressão inscreve-se na demanda desse elo
perdido.
Cabe
ao poeta ir «catalogando o ouro do tempo
em pó».
Tarefa
que está para além da literatura, da acomodação às grelhas restritivas de um
sistema simbólico, o fito é romper, agarrar a transversalidade, desinstalar as
categorias e insistir em acender fósforos molhados na névoa até que um
desencadeie o mais ígneo despertar. Não há impossíveis para quem nasceu no
fundo do poço e viu quotidianamente o
desespero, a morte, a violência e a loucura roçar-lhe os ombros, não há
impossíveis: «um pássaro pode derrubar um
avião» (Teatro Fantasma)
Daí
que não espante que a seriedade do autor o leve a formular, logo no arranque: «Meu maior desejo é abandonar a literatura,
mas ainda estou longe de ser capaz de cumprir essa e outras promessas que fiz
para mim mesmo em nome de um silêncio digno (…) que apenas a morte ou a Graça
serão capazes de evocar».
É
uma declaração inabitual que enquadra Marcelo Ariel num itinerário algo raro e de
que conheço poucos exemplos no mapa literário brasileiro mais badalado, vendo-lhe
maiores afinidades com autores bissextos como António Gamoneda, Gary Sydner,
Herberto Helder ou Bernard Noel, poetas para quem o fundamento da realidade é o
caos, ao qual podemos divisar a unidade (que, singularmente, se manifesta no múltiplo)
desde que sejamos capazes de nos desembaraçarmos de toda a concepção prévia, de
toda a vontade de ordem; autores para quem o verbo é um eterno (re)começo à
espera de capturar o instante em que a realidade brota ela-mesmo, sem
mediações.
Todos
estes poetas experimentaram a mesma indistinção que se verifica em Ariel em
relação à vida e obra e todos eles “renasceram” da resiliência, fazendo da
clivagem força. Mas Marcelo não fez da clivagem género, nem da catábase uma
aventura literária; antes parte do vivido dela – basta pensar em Caranguejos Aplaudem Nagasaki, ou em O Soco na Névoa, poemas dignos de
qualquer antologia brasileira; neste último lê-se: «é impossível/ não pensar/ em esculpir/ um cão negro/ nos restos dessa
criança/ jogada na vala/ do silêncio (…) (Essa é para o sr. Auden:/ O cemitério
da memória/ transcende a ficção dos factos?)/ Posso ouvir sua voz ecoando NO
JARDIM:/ ”Por exemplo: /Em HAMLET/ é fácil notar que o amor e a morte/ possuem
a lógica de um assassinato, com uma sutil e/ única diferença…/ No amor a
ausência é evocada/ para tentar materializar/ O fantasma de UM VIVO”/ Na morte
a vala do silêncio explode/ e amplia a meio do rosto, pétalas caem para dentro:
/Por que não conseguimos nós contornar o nada com nossa/ mudez?» - e, sem prescindir
de nenhum dos motivos que mapeiam o trágico, erige como tarefa “a salvação” do
inferno, isto é, o reconhecimento de que nada
do que é humilde lhe é estranho e todas as bagatelas, as fímbrias, e
singularidades merecem atenção.
Por
outro lado, como todos os trágicos é anti-melancólico, e não faz nem do inferno
nem da aporia jogo; o seu é, antes, um
itinerário espiritual. É o que me agrada nele.
Nós
nascemos a meio, no princípio está a morte. Carta para a Morte, se chama um dos poemas de Teatro Fantasma, onde noutro poema se lê: «Os mortos do futuro/ entre as imagens e a memória/ escolherão as
imagens/ Os mortos do futuro/ não saberão ser livres/ os mortos do futuro/ não
saberão que estão mortos/ como as crianças/ não sabem/ que são crianças/ como
uma árvore/ não entende o fogo/ os mortos do futuro/ continuarão a jogar/ nosso
jogo», e se reitera: «Não podemos encarar
a morte como uma derrota…mas como algo que podemos sentir no vento e nas ondas
do mar… que já estava dentro de nós mesmo antes de termos contemplado pela
primeira vez o oceano…».
Em
Ariel, a morte, o tempo e o nome estão para o ser como o pedúnculo para o
fruto. Mas Ariel não sucumbe aos seus ardis, e vê pontos de fuga, ainda que frágeis, como exprime em fabulosos
versos: «e o ar: esse quase-onisciente
cão da alma/ conduz a palavra até a árvore/ que a sonha». Da bolsa de ar
consecutiva em que a vida nos submerge ressaltam as três simétricas
figuras-agentes da “fuga”: o sonho, o amor e a palavra (sobretudo a que é
propulsora do silêncio). São os três tropos que lhe rebatem o niilismo. E por
isso escreve em Sobre a Morte de Paul
Celan: «O amor/ signo estranho/ em
irreconhecível dique/ de silêncio/ tenta esfaquear o tempo», cabendo ao
amor, esse «irmão-siamês» da morte, um papel essencial diante do amorfo que nos
deslaça o real: «E se o amor for a única
maneira de distinguir uns dos outros?». E é o amor que catapulta ou torna
relevante o mistério da luz: «Tudo está
rachado mas a luz entra pelos buracos das rachaduras»
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Tratado dos Anjos Afogados fazia a cartografia do Inferno,
sendo o incêndio que devastou Vila Socó, matando meia meia comunidade, nos anos
80, o acontecimento gerador duma emocionalidade doravante esburacada, a pedra a meio do caminho. Por isso, os
seus poemas são sem-trégua, tal como Marcelo classificou
os de Sylvia Plath e Anne Sexton.
Teatrofantasma é o diário de campo dum sobrevivente, dum anjo truncado pelas chapas
com que os mortos soterraram as asas dos gritos dos anjos de Rilke – é Eli, em busca do livro.
Este
seu segundo volume reúne três livros: o primeiro, Diário Ontológico/ Romance, cuja polpa deriva do blogue do autor, Teatrofantasma, das suas elucubrações
digressivas a partir do que lê, do cinema que vê, da pintura que ama, do teatro
que ‘esculpe’, da filosofia que o nutre, e dos contágios que as aproximam; o
Livro Dois é Salve: Infinito, ou A morte
de Clarice Lispector, um monólogo de Julia Sorel, um “objecto-cénico”, i.é,
um livre fluxo da consciência, como se Lispector fizesse uma só liga com
Lautreamont, ao mesmo tempo que chama a si Hilda Hilst. O Livro Três, o único
que assume a forma do verso, reedita
Cosmograma, ou A Segunda Morte de Herberto Helder.
É
sempre um risco quando o autor expõe em páginas contíguas, há vezes que entrelaçadamente,
a poesia e a poética. Mas o Marcelo tem no risco o seu habitat, e a tudo
integra em vez de separar os “departamentos”. E gosta tanto de certos autores
que os costura numa rede metapoética.
Não
se faz comparecer o Herberto em vão, e há um leve sabor herbertiano como avisa
Claudio Willer em certas zonas do livro, mas isso ocorre no mesmo sentido da
evocação que António Ramos Rosa detectava em Herberto: «Que um poeta nos faça recordar a nobre violência do discurso poético
nerudiano, a gravidade do misticismo erótico de um Jouve, a sumptuosidade e o
fulgor alexandrianos, a ressonância cósmica de Dylan, o orfismo de Rilke, sendo
no entanto ele mesmo, só pode constituir um elogio à sua personalidade que
assim se integra no amplo contexto da cultura poética universal.» E eu
diria que Marcelo Ariel seria antes o impossível encontro de Herberto com
Maiakovski, com inúmeros radiais, de Emily Dickinson a Lispector (Uma puta chamada GH, se chama um dos
poemas), Celan, William Blake, enfim, de todos aqueles que constituem a carne
dos seus poemas dialógicos.
Mas
não quero cair no vício de explicar, retirando ao leitor o gozo da descoberta.
Dilucido apenas dois aspectos.
Primeiro,
como é que isto se organiza no tecido verbal?
Por
uma técnica de montagem que instaura continuamente novos nexos lógicos, alguns
imprevisíveis, que salvam os objectos da sua (efémera) significação (inércia)
temporal, a jusante, ou da sua aura irracional, a montante, resgatando-os ao
seu erzats a fim de os dotar de uma
presença transpessoal. E esta cadeia de nomes e eventos encadeia-se num fluxo
verbal que desengata os eventos e nomes da sua temporalidade para os
“emprestar” a outra duração, que o texto estipula, e que restitui o percurso
dum olhar ético. Por quê um olhar ético? Porque é aquele que impôs a si o
imperativo de definir pela pluralidade o
fantasma identitário, ou como diz Ariel melhor que ninguém: pelo «desejo de dignificar o mistério do outro».
Isto é extraordinário, num mundo - e como não o literário? - à mercê dos egos.
E ser, em Ariel, é em delta, em mestiçagem, não se confina nos becos, nem
ontológicos, nem culturais, nem étnicos. Rompe qualquer cerco hermenêutico.
Ou
seja, Marcelo Ariel, aprendeu tudo com Nicolau de Cusa, que faz confluir
possibilidade e actualidade. Ou, para os que receiam as aproximações à
lógica infinita dos místicos, ensaiemos outra hipótese, menos pia: Michel
Serres lembra-nos que o tempo não é uma seta mas um tecido com várias dobras,
como um lenço. É o que designa por «percolação». Se num lenço dobrado, e no qual
as diversas dobras representam as três dimensões do tempo (passado, presente e
futuro), espetarmos um alfinete cria-se um novo tipo de vizinhanças, de
raccords, que re-activa em cada presença uma actualidade múltipla e inesperada.
É
este mecanismo que ocorre em muitos textos de Marcelo Ariel - costurando (ou encastra?)
tempos, conceitos, objectos, e incidências humanas numa sequência improvável,
sempre nova e legítima - e dá um núcleo a poemas tão dinamitadores das formas
como Twitter Blues e Teatrofantasma: as vizinhanças com que
Ariel montou citações & flashes reorganizam os sentidos em novas
constelações.
E
nesse apeadeiro o poeta pode apanhar o trem do incondicionado, palavra que
prefiro ao infinito. E fugir por momentos a este cerco: «Sim, as coisas são um incêndio/Permanente/No centro de uma
circunferência onde nos perdemos/ Para sempre».
Irradiação
e resgate, como acontece também nalguns momentos de Ferreira Gullar – penso nas
últimas e magistrais dez páginas de Poema Sujo, por exemplo.
Em
segundo lugar quero falar da generosidade com que Marcelo confia na poesia e na
arte como antídotos à vontade de potência,
ao lugar onde o político tudo recobre com nomes e segregações: «A
poesia do modo que a concebo nada tem a ver com força nenhuma, ela é uma anti-força».
Despojamento de toda a propriedade, que corresponde a uma espécie de não-acção taoista.
A
poesia é assim para ele um «encontro de
interioridades iluminadas pela gratuidade do afecto (sublinhado meu)»;
«um sagrado ainda não codificado», e
uma «poética da nadificação», i.é, do
esvaziamento: «sinto que sem ‘o
esvaziamento’ ou saída de si, ou mesmo a exclusão total, não existe o
acontecimento do poema». Desiludam-se porém os que queiram ver na
estratégia anti-ilusão de alguns dos seus poemas um princípio de
desencantamento – ou sê-lo-á: «o
desencantamento salubre que permite ver o que é» (Cristhian Bobin), pois ao
afastar/esvaziar os falsos encantamentos (escreveu-o Bobin sobre Cioran e eu
desvio) Ariel apenas limpa o terreno para preparar a Primavera. É o que lhe
permite dizer: «Escrevo por causa da
impossibilidade de matar o sol», ou, «Sentiremos
a chegada dessa manhã/ do Infinito/ como o mendigo», sem que nada disto soe
a empalidecida sucata romântica mas a uma vivência transfigurada daquele que, nadificando,
nidificou, levando-nos a crer. Talvez também porque a sua expressão seja
simultaneamente nítida e visionária (um realismo
radiografado pela metáfora, como em Rimbaud), e nasça da tensão entre essas
duas pulsões o estranhamento que a
torna inassimilável.
Em
quantos poetas, tão apegados ao seu ensimesmamento burguês, ao tricot das suas
aporias, encontramos esta força, esta legitimidade? Ariel continuará a viver a
sua pobreza essencial, do seu pequeno
sebo ambulante em Cutabã, aliás também por razões adivinháveis na resposta que
lhe deu Rimbaud, numa entrevista imaginária: «…no comércio de drogas, armas e putas brancas encontrei um lugar mais
verdadeiro e seres que carregavam dentro do olhar toda a tristeza do mundo,
como os bois e os cavalos… no meio literário só encontrei casulos ocos
recheados de lama dourada». Mas nada lhe retira o mérito de ser neste
momento um dos poetas mais instigantes do Brasil.
Tornou-se
famosa a frase final do texto com que William Carlos Williams apresentou O Uivo de Ginsberg, na qual aconselhava
às senhoras que levantassem as saias porque ia passar o maremoto.
Apetece
repetir, meus senhores escusam de se tentar evadir, este livro contém dois
chips que se inoculam no escroto do leitor e levantam, através do sistema límbico,
alguns tsunamis que vão rebentar
às sinapses. Lida esta linha já o dispositivo funcionou.
às sinapses. Lida esta linha já o dispositivo funcionou.
Boa
sorte aos sobreviventes.
Belíssimo e lúcido texto sobre um poeta que desconhecia. E vou continuar desconhecendo porque este Atlântico é sempre maior e mais fundo no que aos livros se refere.
ResponderEliminarLi, há dias, pela palavra de um dos nossos poetas que C.Ronald é o maior poeta de língua portuguesa. Orgulho-me de costumar estar atenta a estas coisas da poesia, mas tenho de confessar que desconheço totalmente. O que achas?
Beijos
Aliete
Obrigada por nos apresentar o poeta. Desconhecia-o até hoje, mas acabo de descobri-lo:
ResponderEliminarhttp://teatrofantasma.blogspot.com.br/
(Há lá muito a deliciar-me, até que eu adquira o livro...)
"Cubatã - a favela de Santos"... vai tomar no meio do cu, Antonio Cabrita
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