AMÊIJOAS NO MIRAMAR, EMBRIÃO PARA UMA PEÇA
Há uns anos, a partir
de um encontro inesperado e da história de vida, dura, durinha, de uma rapariga
moçambicana criei este diálogo – dramático? -, que aqui fica em armazém:
//
Ela chora, sentada no muro da esplanada. Convulsivamente. O corpo
varado por pedradas invisíveis.
Ele observa-a da mesa, o seu estado perturba o ritmo com que ele leva
as amêijoas à boca. O incómodo cresce, e ele decide-se a ir ter com ela,
aborda-a:
ELE
Há alguma coisa que eu possa
fazer?
Ela vira-se e abraça-o de
imediato. Num aluvião. Soluça:
ELA
Ele quer matar-me…
ELE
Calma… calma… se calhar o melhor
é ir à polícia!
ELA (convulsa, incrédula)
À polícia?
ELE
É o mais natural nestes casos,
quando nos sentimos ameaçados…
ELA
Tal…vez…
ELE
Não há que hesitar!
ELA (soletrando, lacrimosa)
Ma-tar-me-me-a-á-gui-guia…
ELE (atónito)
Hum… Sentamo-nos?
Sentam-se na mesa. Ela empapa de
lágrimas os guardanapos da mesa, o lenço ele que lhe emprestei, enublava o céu
azul. Ao fim de cinco minutos, ele brinca:
ELE
Começo a acreditar na história do
dilúvio…
A piada surte efeito. Ela começa
a travar os soluços, limpa o ranho, recompõe-se.
ELE
Quer-me contar?
ELA (murmura)
A águia…
ELE
Aqui em Maputo? (retoma um tom
galhofeiro) Conheço corvos e abutres… mas águias, nem no zoológico. Você
sabe que o leão do jardim zoológico de Maputo está tão magro que dá flor?
ELA (sorrindo, triste)
É uma tatuagem.
ELE
Ah! Sua?
ELA
Ya.
ELE
Onde?
Ela tira a alça do ombro esquerdo
e mostra-lhe a omoplata. Uma águia soberbamente tatuada a azul celeste, de asas
abertas.
ELE
Uau! Apetece tocar neste voo…
Muito bonita, parabéns.
ELA
Não é ela ser bonita… é a minha
alma.
ELE
Chama-se Alma, a águia?
ELA
Não…
ELE
Não entendo…
ELA
Em miúda tive um sonho em que
subia a Cabeça do Velho…
ELE
No Chimoio?
ELA
Sim. Sou de Chimoio.
ELE
Galgavas a serra? É alta!
ELA
Ia lá maningue vezes, com o padre
Stuart.
ELE (graceja)
Ah bom, logo com um padre…
ELA
É escocês.
ELE
Se é escocês, muda de figura… são
dados à pinga.
ELA
Eu era miúda, o padre Stuart
salvou a minha mãe de ser levada pela Renamo e tirou uma bala do peito do meu
pai… aqui… (Aponta o peito esquerdo). Eu estava num internato em Adialua,
distrito de Namapa, aí os bandidos invadiram o internato e capturaram alguns de
nós, eu fugi pela janela, e fui a casa do mano mais velho… que vivia perto
desse internato. Mas quando cheguei lá não apanhei ninguém, os vizinhos
disseram-me, as chaves estão lá… eu abri a porta e fiquei à espera… Só que os
bandidos saíram do internato e foram às casas em volta, queriam levar mulheres
para eles… bateram à porta, eu tinha que sair, com o meu irmãozinho, que era
pequeno e que entretanto tinham ido deixar lá em casa… Os militares
perguntaram, você quem é? Eu sou aluna e estou em casa do mano… eles pegaram
tudo, depois um deles disse, É muito bonita esta menina, não a podemos deixar…
Quem segura esta menina? Um deles pegou-me pelo pulso…E então percorremos uma
distância grande, com esse grupo, à procura de pessoas, de mulheres, que eles
escolhiam, para levar… enquanto outros combatiam… mais à frente…
ELE
Você tinha quantos anos?
ELA
Uns treze. Encontrámos uma mulher
sob um alpendre, que tinha parido naquela mesma noite…
ELE
Ali, ao relento?
ELA
Sim. Eu disse, Parem lá, vamos
ajudar essa mulher que tem gémeas… «Pega lá essas crianças aí», mandou o
soldado… A mulher não tinha como fugir… não havia maneira. E foi o que nos
valeu… os militares afastaram-se um pouco convencidos de que não podíamos sair
dali. Mas eu peguei nas duas crianças, num braço, e no outro braço levei o meu
irmãozinho… e comecei a correr com aquela mulher… ela como podia… Quando já nos
tínhamos distanciado eu dei-lhe os bebés e disse-lhe… eu agora vou na minha,
porque aqueles ali querem-me levar…
ELE
O seu irmãozinho tinha que idade?
ELA
Na altura tinha uns cinco. Quando
a grávida se escondeu, não sei quem me viu e voltou e contou aos militares,
Aquela menina fugiu… aí começaram a me perseguir… Mas eu ouvi as botas de
quando eles vinham, era uma estrada com capim, e o tempo estava chuvoso, não
podia deixar de lhes ouvir, e disse, são eles, e logo recuei, recuei, encontrei
um cajueiro, deitei-me com o meu irmãozinho peguei no capim e pus por cima de
nós… eles passaram rente, a praguejar, «onde é que se meteu aquela puta?»…
apanharam um homem, bateram-lhe, Por onde passou aquela menina bonita,
perguntavam aos gritos, o homem pôs-se a chorar, Nem vi… e nós debaixo do
capim… aquele homem sofreu, deixaram-no ali como morto… por nossa causa… e
fugimos para o mato… Quando nos vi a salvo não quis voltar mais na vila, tinha
na cabeça ir para casa da minha mãe, que era longe da vila e onde me sentia
mais segura… Comecei a apear com o meu irmão, tinha medo de ir pela estrada,
íamos pelo mato… perdi a direcção, o padre Stuart apanhou-nos ao acaso, eu contei,
Há bandidos naquela direcção desde ontem, quiseram capturar-nos, e nós fugimos,
ando à procura de Majuco…
ELE
Era a sua zona?
ELA
Sim. Majuco não é aqui, Majuco é
lá para trás, disse o padre Stuart e arrancou uma mandioca e me deu, deu-me
água, bebi… e o mano também, depois fomos embora… ele acompanhou-nos, apeámos,
apeámos, apeámos… ele disse, Vamos apanhar a estrada asfaltada, vais reconhecer
a estrada para a tua terra… chegámos à estrada e eu disse, Você pode voltar, já
sei onde é… Mas ele não quis, tinha medo que nos acontecesse alguma coisa… e
continuou connosco…
ELE
Isto tudo faz quantos dias?
ELA
Foi no mesmo dia…
ELE
Você vive muitas coisas num só
dia…
ELA
Mas quando apanhámos a estrada
eram já 16h, já era tarde…Foi aí que me cruzei com os meus irmãos à minha
procura, porque lhes tinham dito que eu tinha sido capturada e então eles iam
de bicicleta à vila para concretizar a informação… Levaram-nos na bicicleta
para casa da minha mãe, que chorava e dizia, Vou-te amarrar… não estou para me
enforcar por causa da minha filha… Graças a Deus todos ficámos bem… Foi assim
que conheci o padre Stuart… e não voltei ao internato…
ELE
Compreendo. Conta lá o teu sonho. Posso tratar-te por tu? Se já me contas sonhos...
ELA
Sim... Eu subia a Cabeça do Velho. E lá
em cima havia águias. O padre Stuart apontou uma e disse-me: é a tua alma.
ELE
Era assim azul?
ELA
Era. Voltei a vê-la. Voltei a
sonhar com ela, dois dias antes de fazer a tatuagem.
ELE
Sentiste-te diferente, depois de
fazer a tatuagem?
ELA
Ya, dantes estava perdida, como
se em pequenina me tivesse partido em bocados e lançado ao vento… sentia-me…
ELE
Incompleta?
ELA
Depois chegou-me a sorte, nunca
mais tive medo de querer alguma coisa…
ELE
Há quanto tempo fizeste a
tatuagem?
ELA
Vai pra cinco anos.
ELE
E mudou tudo, desde aí?
ELA
Sim, vim para Maputo, estudei,
arranjei um job, calhou-me o amor…
ELE
Calhou-te? Dantes não te
calhava o amor?
ELA
Não. Fui deixada, sempre.
ELE
Este não te deixa?
ELA
Não.
ELE
Então, por que choras tu? És uma rapariga de sorte...
ELA
Ele pede que eu apague a águia…
ELE
Em nome de quê? Quem é a
alimária?
ELA
Quem?
ELE
Desculpa, é uma forma
de dizer. O teu namorado…
ELA
É um italiano.
ELE
Um italiano quer que tu tires a
tatuagem? Mamma mia! Dantes queriam tatuar uma etíope no peito…
ELA
É por causa da família. O pai é
do banco do Vaticano…
ELE
E que tem?
ELA
O pai arranjou-lhe um lugar lá
dentro. Mas não fica bem a um cargo alto do Banco do Vaticano ter uma mulher
com uma tatuagem…
ELE
Quem disse? Deus?
ELA
O bispo Tornatore.
ELE
Bom, esse manda mais que Deus…
Deve ser difícil desobedecer a um pai que é do Vaticano. E tu que vais fazer?
ELA
Não sei escolher entre o amor e a
alma…
ELE
Repete lá isso…
ELA
Não sei escolher entre o amor e a
alma…
ELE
Olha, digo-te: antes a “bolsa ou a
vida”…
Fecha a luz
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