Hans Hartung |
TRÊS
CRISTAIS MANCHADOS
29/06/2016
Oscar
Wilde tinha muitos tiques de rapaz engenhoso e por isso alcançam tanto êxito os
seus aforismos: vestem sempre qualquer ocasião, mesmo que sirvam propósitos
diferentes. Mas às tantas acertava, como
aqui: «É essa a missão da verdadeira arte
- obrigar-nos a fazer uma pausa e a olhar para determinada coisa uma segunda
vez.»
Fazer retomar
ou tardar-nos o olhar sobre algo até que a pedra fique pedríssima, como se diz
num verso de Herberto, é mesmo uma condição da arte. Sendo o contrário da crença
modernista de que tudo se dissolve no ar: também acontece mas o que importa
adensa e a cada leitura acrescenta-se uma dobra. O próprio entusiasmo esteriliza
se não se adensa e molda a obra. E o entusiasmo antecipa amiúde a paixão: um
olhar que se torna lento e densificado pela emoção.
//
OS TWEETS
DE DONALD TRUMP
É difícil
não twittar todos os dias
Quando
se é jurassic como o twist.
Sou um
homem da minha geração
Com casamentos
e escapadelas
E nao é minha culpa se a vida é
Uma álgida genitália russa
Tremendamente escarpada.
//
Como dizia
o meu mestre Duchamp
Num número
da Reader’s Digest
Quanto
ao valor da arte actual
Não gosto
de entupir as sanitas.
Por isso só protejo os negócios.
//
Não há
baleias em perigo de extinção,
O que
há é cetáceos desenhados a lápis.
//
Se o
clima muda muito
use o
nosso ar condicionado
- a
América dá-lhe um ano de garantia
//
Estou para
a política como o diabetes para o açúcar
E
introduzi temas novos na análise política
O macho
alfa, o fake news, o America first,
Desde que
estão comigo que
Todos
os caminhos vão dar à Blonde.
//
Não sei
de que se queixam
As peles
dos casacos de Melania
afinal são tão autênticas
como idênticas.
Aqui nao há fakes.
//
Conheci a minha mulher num cruzeiro
Que um tal Wallace quis denegrir
Mas onde vimos um pinguim
a lavar os dentes.
//
O Kim tinha as unhas arranjadas.
Um homem que as arranja assim
Não faz pactos com o Diabo.
É um democrata, embora de uma amnésia paliativa.
//
Parecia uma múmia em gelatina
Mas com a cabeleira de Monsieur Verdoux
(o único filme de Chaplin que tolero)
Mas tinha o aperto de mão de um toureiro
Aquele presidente de… Andorra…
Não era de Andorra? O do Ronaldo, o boxeador…
Bom, e primeiro que tudo há que ser grato. Grato ao Nuno
Moura, que se propôs reeditar a minha poesia invisível. Em seis volumes de que
saiu agora o primeiro, e com seis livros inéditos.
Tem graça que só quando o Henrique Fialho se referiu ao
facto dos livros da Douda Correria não terem código de barras é que o notei.
E gosto disso, de uma editora de poesia que se dirige apenas
aqueles que querem mesmo ler o livro e se dão ao trabalho de o procurar.
É louco o Nuno porque tem fé. Mas creio igualmente que só as
coisas impossíveis é que podem acontecer, as demais descuram-se a meio do processo
porque um verão chuvoso fez descrer o curso das imagens.
Que ele não tenha prejuízo, é o único que peço.
Três poemas do livro de que o Henrique Fialho fez uma
generosa recensão, aqui: https://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2018/06/oitenta-flechas-para-atrair-cotovia.html
O QUE SOBROU AO FIM DO MUNDO
1
Assim que me livrei, como lastro, dos brilhos,
precipitou-se sobre mim, anelada, fulgurante,
a noite. Sobejam ainda pequenas vaidades
e um drama insolúvel para um lerdo animal de carga:
não tenho a memória na ponta da língua.
Daí que, quando, na senda do que respiro,
a imaginação me afunda no seu lençol
freático, tenha que me certificar se não nado
como um coentro, pois a morte é a granel,
não escolhe os filhos. Eis o farnel de prudências
que retive. Do mais me desfiz: sinais de identidade,
amores aparatosos, palavras que fulgem como isqueiros.
O importante na mão é a sua leveza, abrir-se
para dar, abrir-se para receber. É o que o pulso
e o ninho têm em comum: o vento.
E agora, mal fecho as pálpebras, uma infância
tropeça nas escadas, uma galinhola, em pleno voo,
tomba de joelhos, um prego finalmente respira fundo.
É uma vigília que não cessa enquanto
nos meus pulsos a fadiga de ser
prodigaliza a sede de ser outro
e a fome de outra pele descarrila a minha.
2
(uma variante de Auden)
Não nos sobrava vida para morrer
e aí tudo recomeçou: houve que trepar
como os salmões até à fonte
aonde a gema da inocência se contorce.
Não nos sobrava vida para morrer,
já póstumos e sem vintém, de alma
surrada e crivada de desertos
a quem não alivia o ribombar das chuvas ácidas.
Há lá gáudio, Auden, numa morte assim!
Que consolo colhe o ceifador que não agoira
no horizonte a espiga ávida do porvir?
Nada nos sobrava e morrer era tão doce
que repugnava a sua mais leve menção.
Sim, Auden, a derrocada dos castelos dá flor!
3
Como um nó que a noite refaz na árvoreque se abateu, o bico do corvo de colarinho
revolve o esterco nos orifícios, tubulações
e palmares internos do adormecido
— aberto o seu flanco pelo bisturi
do sonho, onde em borbotões
se galvaniza a desembocadura de um rio.
Vem outro corvo e regurgita
sobre as feridas cristais de rocha.
Acorda de um pulo, o coração represo
como o polegar malhado por martelo.
Calafrio. A sua vida antiga está por um fio.
Vai à janela, em vez do renque de tílias
vê os grampos duma cicatriz,
o céu como a capital da dor.
A mulher acena-lhe da cama,
os seus tenros ramos enovelados pelo remoinho
do sono. A sua voz é uma sombra,
«vem, foi só um pesadelo», abstraída
ainda dos detalhes — da sua unha cónica
no mindinho, das rémiges pretas
que lhe eriçam selvaticamente as omoplatas
Sem comentários:
Enviar um comentário