Foi uma das experiências felizes da minha
vida.
O ano passado, em Outubro, o ceramista
moçambicano Jonas Donato convidou-me para fazer um texto inspirado nas
diferentes recriações que ele fez dos instrumentos tradicionais moçambicanos, e
um mês depois da proposta dele íamos buscar à tipografia o livrinho, com o
título O BLUE DA MAJIKA.
MAJIKA era como se chamavam as guitarras feitas de lata, nas periferias de Maputo.
É o que passo a transcrever, em vários posts:
o Jonas Donato,preparando-se para tocar trompa
É o que passo a transcrever, em vários posts:
o Jonas Donato,preparando-se para tocar trompa
COSMOGONIA
E no
princípio era o Vento.
Que
regateava à esquerda e à direita
no
desespero de encontrar os seus cabelos
de os sentir
nos ombros e como declinavam
nas
omoplatas até à região lombar
só
então se sentiria capaz
de
sentar a chuva nos desertos
um
momento que fosse
e de apagar
aquela lâmpada sempre acesa
no
tecto azul que fizera para o céu
O
Vento não descurava nenhuma das suas tarefas
Mais
inaparentes como emplumar com as penas do pavão
as
escovas no grão de trigo
reencontrar
o rasto do dente perdido do pangolim
ou
sondar atrás do esterno o coração do xirico
Pelas
manhãs observava a relha que ralhava na terra orvalhada
e
sopesava as estrias nas águas do poço,
pensando
o que podia ter sido é uma abstracção
mais
vale radiografarmos aquilo que é
O Vento não
deixava de espantar-se com a fertilidade
do
planeta que inventava
à medida
que gatafunhava páramos e galgava as serras
enquanto
voltava pelo direito as luvas de Deus
Tinha o
Vento muito cuidado com as palavras
e por
isso enxotava as sílabas do verbo que se mostrassem apressadas
ao mesmo
tempo que capturava o infinito com as turbulências
da
memória- uma unha que nunca lhe caíra,
e um dia
enxertou com urgência na juba do leão a macieira
para que
a mansidão chegasse aos rios
Mas ferindo-o
ao de leve a solidão o Vento
começou a
procurar nos lábios que inventava a raiz
dos
espelhos os seios de uma nuvem
o desosso
das amoras
imaginava
que se fartava o Vento
como
encher de massapão os abismos
ou viajar
clandestino na primeira classe de uma língua
Uma vez o
Vento distraía-se a abafar um incêndio com o sumo de um limão
e quase
sem dar por isso criou a laranja
e depois
tão absorvido ficou que criou o homem para desfrutar a laranja
e o porco
para desfrutar das bolotas
e o galo
para disputar as manhãs
e criou o
mercúrio
para
ensinar os termómetros a ler
Até que rebentou aos ouvidos do Vento a
algazarra
e viu como crescia a soberba entre as
criaturas
o alarde da zanga entre o azeite e o
vinagre
como cada nó de uma porta reclamava uma
atenção exclusiva
bocejavam as pedras assim que a girafa as
cumprimentava
e os corvos não atendiam aos pedidos do
gala-gala
e até as próprias palavras como
entristadas viúvas bigodudas
deixaram de encontrar os recíprocos
E viu o Vento que o silêncio já fazia
paciências com o ar marasmado
de quem extraviou o erre e respira aos
apitos, arritmicamente,
e que até Deus assistia a tudo de
pálpebras congeladas
de pé sobre um tímpano
que não se sabia para que servia
E o Vento compreendeu
tinha de fazer propagar um filamento
sonoro
que anelasse os ritmos e fizesse o coração
das criaturas sentir-se menos só
O Vento criou então os instrumentos
musicais
e como
o que podia ter sido era uma grande abstracção
o
Vento pôs-se a tocar no primeiro dos instrumentos o que era
e o próprio tempo pôs-se a dançar e deixou
de dissipar-se
e nunca mais lhe doeu o corpo
quando o Vento o atravessava,
e aí
os pássaros imitaram-no
e glu-glu ouviu-se por toda a terra
quando as árvores se embriagaram naquela
aurora:
//
MBILA
Ressoa em mim um rio
que descendo ao fundo das grutas
e aos navios naufragados nos golfos
acaricia as placas tectónicas
magnificando os sonhos
dos adormecidos terramotos.
O erro mais clamoroso de Da Vinci
foi não ter intuído que n’ A Última Ceia
os doze apóstolos eram devotados
marimbeiros
e que maior paliativo não havia
para as dores do infinito.
O milagre do pão? Insonso amuleto.
Em Zavala quando nos reunimos
o nosso murmúrio
é o recobro dos anjos caídos.
E sou profundamente feminina
a pontos de que em perpassando-me
o vento nas cabaças este ganha a espessura
do mel.
DO
QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ
Até
o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava
um
buraco que ela tinha com caril de amendoim
e
o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado
com
a forma das setas por não conhecer nada parecido
no
seu corpo que desse a vida
enquanto
o seu passo projectava no chão uma sombra.
E
viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós.
Então
nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas.
Eram
de barro mas amoleciam se manejados.
A
minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava.
O
meu pai passou a ornamentar-se com plumas.
Louvado
seja o Senhor que levou o mar aos búzios!
Aí
a minha mãe criou o pankwé.
As
duas cordas são os grandes lábios
a
cabaça o útero
-
do que aí ressoa nasci eu!
Eu
e mais um cento de cabritos.
E
desde então o meu pai só faz o que gosta:
sobe
aos imbondeiros e abre cisternas.
BALADA DO CIÚME PARA CHIGOVIA E BERIMBAU
Já não gramava de maçaroca
porque gosta dos seus dente!
Não gramava de mandioca
porque gosta dos seus dente!
Não gramava de mulala
porque gosta dos seus dente!
A minha dama agora é moça da cidade
e ofusca o mundo no seu batom
mas faz-me maka aceitar a informalidade
que o resto do mundo lhe deva amar.
Também gramo da cidade quando o néon
fala da labareda do seu nome
e a sombra dos seus olhos a noite arreda.
Mas ai do que meter o bedelho
entre mim e o seu batom vermelho.
Aí o meu Santo ‘spírito encrava
e sobre o magano eu deito a lava!
Perdão, meu amor, não lhe estou a negá
mas faz-me maka aceitar a informalidade
que o resto do mundo lhe deva amar.
Se já não gostava de maçaroca
Porque gosta dos seus dente!
Não gostava de mandioca
Porque gosta dos seus dente!
Não gostava de mulala
Porque gosta dos seus dente!
Aí o meu Santo ‘spírito encrava
e sobre o magano eu deito a lava!
GOCHA
Enquanto catar as migalhas
como quem colecciona astros
pode o pobre
ter orgulho na sua gocha?
Mas nunca esqueças
a vida são só ossos palustres
quando acima deles
ainda sonha a carne.
Dança! Afugenta os espíritos!
Faz do seu esconjuro
o cansaço de cada dia:
e um dia o sol cairá na tua tigela!
BLUE
DA MAJIKA
Meus
caros, em ouvindo os acordes
da
minha primeira corda saibam, não foi à toa
mas
tentando melhor sorte
que
abalei para Guanabacoa.
Meus
queridos, se acharem que dedilho
a
segunda corda e que ela se anuncia
intranquila,
imaginem que limpo o gatilho
deitado
numa rede, em Salvador da Bahía.
Mas,
estimados, a terra seca não mente
e
antes que a miséria me morda, o ré
que
punge a minha terceira corda
zarpa
com os flamingos para oriente.
O
meu afecto é vosso mas se ‘té o lobisomem
não
vive de alho não há-de o homem
ter
outros acicates, agasalhos e cismas
mais
justos que o alicate desta rima?
(refrão)
Saudosos,
não foi a quarta corda da magika
que
me levou para terras sem chão
mas
o desplante com que o poder trafica
a
alma do seu irmão, a alma do nosso irmão.
Sem comentários:
Enviar um comentário