quarta-feira, 4 de julho de 2018

O BLUE DA MAJIKA 1



Foi uma das experiências felizes da minha vida.
O ano passado, em Outubro, o ceramista moçambicano Jonas Donato convidou-me para fazer um texto inspirado nas diferentes recriações que ele fez dos instrumentos tradicionais moçambicanos, e um mês depois da proposta dele íamos buscar à tipografia o livrinho, com o título O BLUE DA MAJIKA.
MAJIKA era como se chamavam as guitarras feitas de lata, nas periferias de Maputo.
É o que passo a transcrever, em vários posts: 

                                           o Jonas Donato,preparando-se para tocar trompa



COSMOGONIA

E no princípio era o Vento.
Que regateava à esquerda e à direita
no desespero de encontrar os seus cabelos
de os sentir nos ombros e como declinavam
nas omoplatas até à região lombar
só então se sentiria capaz
de sentar a chuva nos desertos
um momento que fosse
e de apagar aquela lâmpada sempre acesa
no tecto azul que fizera para o céu

O Vento não descurava nenhuma das suas tarefas
Mais inaparentes como emplumar com as penas do pavão
as escovas no grão de trigo
reencontrar o rasto do dente perdido do pangolim
ou sondar atrás do esterno o coração do xirico
Pelas manhãs observava a relha que ralhava na terra orvalhada
e sopesava as estrias nas águas do poço,
pensando o que podia ter sido é uma abstracção
mais vale radiografarmos aquilo que é

O Vento não deixava de espantar-se com a fertilidade
do planeta que inventava
à medida que gatafunhava páramos e galgava as serras
enquanto voltava pelo direito as luvas de Deus
Tinha o Vento muito cuidado com as palavras
e por isso enxotava as sílabas do verbo que se mostrassem apressadas
ao mesmo tempo que capturava o infinito com as turbulências
da memória- uma unha que nunca lhe caíra,

e um dia enxertou com urgência na juba do leão a macieira
para que a mansidão chegasse aos rios
Mas ferindo-o ao de leve a solidão o Vento
começou a procurar nos lábios que inventava a raiz
dos espelhos os seios de uma nuvem
o desosso das amoras
imaginava que se fartava o Vento
como encher de massapão os abismos

ou viajar clandestino na primeira classe de uma língua
Uma vez o Vento distraía-se a abafar um incêndio com o sumo de um limão
e quase sem dar por isso criou a laranja
e depois tão absorvido ficou que criou o homem para desfrutar a laranja
e o porco para desfrutar das bolotas
e o galo para disputar as manhãs
e criou o mercúrio
para ensinar os termómetros a ler

Até que rebentou aos ouvidos do Vento a algazarra
e viu como crescia a soberba entre as criaturas
o alarde da zanga entre o azeite e o vinagre
como cada nó de uma porta reclamava uma atenção exclusiva
bocejavam as pedras assim que a girafa as cumprimentava
e os corvos não atendiam aos pedidos do gala-gala
e até as próprias palavras como entristadas viúvas bigodudas
deixaram de encontrar os recíprocos
E viu o Vento que o silêncio já fazia paciências com o ar marasmado
de quem extraviou o erre e respira aos apitos, arritmicamente,

e que até Deus assistia a tudo de pálpebras congeladas
de pé sobre um tímpano
que não se sabia para que servia
E o Vento compreendeu
tinha de fazer propagar um filamento sonoro
que anelasse os ritmos e fizesse o coração
das criaturas sentir-se menos só
O Vento criou então os instrumentos musicais

e como o que podia ter sido era uma grande abstracção
o Vento pôs-se a tocar no primeiro dos instrumentos o que era
e o próprio tempo pôs-se a dançar e deixou de dissipar-se
e nunca mais lhe doeu o corpo
quando o Vento o atravessava,
e aí os pássaros imitaram-no
e glu-glu ouviu-se por toda a terra
quando as árvores se embriagaram naquela aurora:


//


MBILA

Ressoa em mim um rio
que descendo ao fundo das grutas
e aos navios naufragados nos golfos
acaricia as placas tectónicas
magnificando os sonhos
dos adormecidos terramotos.

O erro mais clamoroso de Da Vinci
foi não ter intuído que n’ A Última Ceia
os doze apóstolos eram devotados marimbeiros
e que maior paliativo não havia
para as dores do infinito.
O milagre do pão? Insonso amuleto.

Em Zavala quando nos reunimos
o nosso murmúrio
é o recobro dos anjos caídos.
E sou profundamente feminina
a pontos de que em perpassando-me
o vento nas cabaças este ganha a espessura do mel.







DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ

Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava
um buraco que ela tinha com caril de amendoim

e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado
com a forma das setas por não conhecer nada parecido
no seu corpo que desse a vida
enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.

E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós.

Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas.
Eram de barro mas amoleciam se manejados.
A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava.
O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.


Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios!

Aí a minha mãe criou o pankwé.
As duas cordas são os grandes lábios
a cabaça o útero
- do que aí ressoa nasci eu!
Eu e mais um cento de cabritos.

E desde então o meu pai só faz o que gosta:
sobe aos imbondeiros e abre cisternas.






BALADA DO CIÚME PARA CHIGOVIA E BERIMBAU

Já não gramava de maçaroca
porque gosta dos seus dente!
Não gramava de mandioca
porque gosta dos seus dente!
Não gramava de mulala
porque gosta dos seus dente!

A minha dama agora é moça da cidade
e ofusca o mundo no seu batom
mas faz-me maka aceitar a informalidade
que o resto do mundo lhe deva amar.

Também gramo da cidade quando o néon
fala da labareda do seu nome
e a sombra dos seus olhos a noite arreda.
Mas ai do que meter o bedelho
entre mim e o seu batom vermelho.
Aí o meu Santo ‘spírito encrava
e sobre o magano eu deito a lava!

Perdão, meu amor, não lhe estou a negá
mas faz-me maka aceitar a informalidade
que o resto do mundo lhe deva amar.

Se já não gostava de maçaroca
Porque gosta dos seus dente!
Não gostava de mandioca
Porque gosta dos seus dente!
Não gostava de mulala
Porque gosta dos seus dente!

Aí o meu Santo ‘spírito encrava
e sobre o magano eu deito a lava!




GOCHA




Enquanto catar as migalhas
como quem colecciona astros
pode o pobre
ter orgulho na sua gocha?

Mas nunca esqueças
a vida são só ossos palustres
quando acima deles
ainda sonha a carne.

Dança! Afugenta os espíritos!
Faz do seu esconjuro
o cansaço de cada dia:
e um dia o sol cairá na tua tigela!






BLUE DA MAJIKA 

Meus caros, em ouvindo os acordes
da minha primeira corda saibam, não foi à toa
mas tentando melhor sorte
que abalei para Guanabacoa.

Meus queridos, se acharem que dedilho
a segunda corda e que ela se anuncia
intranquila, imaginem  que limpo o gatilho
deitado numa rede, em Salvador da Bahía.

Mas, estimados, a terra seca não mente
e antes que a miséria me morda, o ré
que punge a minha terceira corda
zarpa com os flamingos para oriente.

O meu afecto é vosso mas se ‘té o lobisomem
não vive de alho não há-de o homem
ter outros acicates, agasalhos e cismas
mais justos que o alicate desta rima?

(refrão)
Saudosos, não foi a quarta corda da magika
que me levou para terras sem chão
mas o desplante com que o poder trafica
a alma do seu irmão, a alma do nosso irmão.

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