domingo, 10 de maio de 2015

PEREIRA & ALCESTE, LIMITADA / AS SOBRAS DE ´´ÉTER"

                                                      a despedida de admeto e alceste

«Tenho mais prazer em dormir com o teu caixão do que contigo, ao menos não transpira!».

PEREIRA OBSERVOU OS MÓVEIS ANTIGOS, um sedimento profundo e encantado, que o presente não esfumara, e suspirou. Já a sua mãe os herdara da avó e, trazendo-as da Beira Baixa, deles tinha cuidado, não permitindo que lhes chegasse bicho. Maior desvelo não havia. Pereira tinha empilhado em dois quartos esses trastes velhos, como lhes chamava Rosânia, a brasileira que desposara o seu irmão mais velho, Nicolau, que agora se propunha vender tudo para lhe salvar a face.
Pereira tinha estoirado com o negócio da família, uma funerária, o único negócio que a par das farmácias é impossível falir, repetia incrédulo Nicolau que, fiado nisso, lhe deixara o comando nas mãos, zarpando para Valença onde era sócio de uma próspera firma de ar condicionado. Mas a desordem dos vivos pode atingir velocidades que cilindram a moléstia da morte e amantes e filhos sucessivos baratinaram o que parecia fácil; tendo o sucesso garantido à partida volvido um fóssil de nenhuma licitação nos leilões.
A fim de pagar pensões, escolas, vícios próprios e alheios, Pereira começou a não pagar a fornecedores e dispensou os melhores cangalheiros, recrutando ocasionalmente para gatos-pingados brutamontes arredios ao banho lustral que os enlutados exigem – mesuras e decoro. Foi como ter acoplado buzinas de ambulância sobre a carlinga de uma emoção que se quer embargada.
Descobrir que a Cátia, a sua quarta mulher em oito anos, o enganava com um zulu de Torre Eifel tatuada no peito esquerdo foi um pormenor tão inútil como escorar um trovão com uma empena: o clarão do relâmpago já fizera estragos.

Desde miúdo que Pereira não estava fadado para aquele negócio. Tinha vergonha, na escola, de contar que o pai era funerário e a mãe maquilhava os cadáveres. E que dizer do costume da família que sempre o perturbara? Em nascendo mais um membro familiar - e depois dele viera uma irmã e dois primos – iam ao Barreiro consultar uma indiana que lançava as cartas do Tarot e anunciava a provável data da morte. Consoante a sorte, arranjava-se de imediato um caixão, que era inaugurado em festa de família, partindo-se uma garrafa de champanhe num dos vértices, como se fosse um navio.
A irmã tratou de obedecer ao ditame e faleceu aos doze anos, com o corpo requerido ao esquife escolhido. Pereira vomitou durante dois dias e toda a gente se sensibilizou com “a dor do mano”, embora a verdade fosse mais mesquinha: Pereira começou aí a rejeitar o seu destino. Tinha dezassete anos quando este inopinado facto lhe convulsionou as tripas. Decidiu-se – não nasce da lama, a flor de lótus? Tornou-se um bom garfo, um garfo tão glutão que transportá-lo exigia uma mochila. E aos dezanove já pesava cento e vinte quilos, para um metro e setenta de altura, e excedia a largura física do seu caixão.
Nos estudos ia mal, repetiu três vezes o 12º ano no Liceu Camões, onde ganhou a alcunha do Triple C (aixão).
Só se interessava pelo teatro, mas pouco. Comprou na Feira da Ladra A Cantora Careca, do Ionesco (por causa do título), peça que o animou, dizia, por ser “completamente crazy”; e embalado, uns meses depois adquiriu, também na rua, um volume encardido que reunia várias peças de Eurípedes. Então vidrou-se por Alceste e Medeia, que recitava em casa até ao cansaço das suas vítimas. Sobre Alcestes, embora a história lhe fosse absolutamente desconhecida antes do filho a azucrinar com semelhantes disparates, a mãe ainda entendia o fascínio de Pereira, agora a atracção por Medeia deixava-a apreensiva sobre a educação que dera à cria. E mortificava-a o gozo com que Pereira narrava, à mesa, ao seu cansado pai, o episódio de Ioclos, quando Medeia convence as filhas do rei Pélias a cozerem o pai num caldeirão, com ervas mágicas, para que ele recupere a juventude. 
O pai não se ficava e a mutação do filho, dantes franzino, em continente, segundo expressão sua, trouxe o conflito às refeições familiares. O velho Pereira era de uma moral estrita que não autorizava recuo nos fundamentos que arbitram a ordem duma casa. Fora o que o que lhe resguardara o negócio da manápula socialista, garantia: ter contraposto a preceitos tão redutores, e sem vacilar, uma conduta igualmente rigorosa valera-lhe o respeito dos comissários políticos. Já Pereira suportava estoicamente as resmunguices paternas – e refocilava nas terrinas de arroz, no leitão ou nas costeletas de novilho, nos rojões e feijoadas, no leite-creme, nas trouxas-de-ovos, nos chocolates com que nunca mais deixou de abarrotar os bolsos.
Quebrou mais cedo o pai, levado por um enfarte múltiplo ao ver imagens de um tsunami em Bornéus. Balbuciou “tantos mortos sem sepultura!” e pôs-se de borco. Coube à justa no seu caixão, pois a briga com o filho provocou-lhe um descontrole hormonal de litigiosos contornos. Dir-se-ia que, no fundo, se dera ao trabalho de morrer para dar uma lição de disciplina ao filho, insinuou o Padre Oliveira no elogio final enquanto desfechava soslaios acerados sobre “O Continente” Pereira. Contudo, à imagem de Medeia, Pereira já ouvia os outros, como à pedra ou à onda do mar: estava-se nas tintas.
A tia Irina, um espeto de nariz adunco que já enterrara três maridos, mercê, asseguravam na Leitaria Primavera, pegada à Funerária, duma voracidade… (e aqui a malícia aflorava aos rostos) de flor carnívora, foi a última a não o poupar aos remoques, perguntando-lhe de chofre como é que aos vinte anos se podia carregar um corpo que afundaria um batelão.
Circunstância atenuadora: tal não foi sequer objecto de reparo de Nicolau, o irmão mais velho, que vindo do Valência, travou com ele várias conversas de homem para homem, barrando-lhe muito pragmaticamente a massa gelatinosa com untuosas instruções. Sobre a sua obesidade, não foi gasta uma sílaba. Pediu-lhe apenas que aparasse o cabelo, passou-lhe uma procuração e deixou-o no comando do negócio de família. 
Teve Pereira de mandar cortar e fazer três casacos a três quartos, negro & cinza, num alfaiate da Baixa, nas lojas já não se encontravam fatos à sua medida, e, contra o conselho do irmão, que era por um desbaste radical na sua comprida trunfa, manteve-a, passando a untá-la com gel e apanhando-a num rabo-de-cavalo pouco ortodoxo para a classe de que doravante fazia parte. Inclusive, sentindo-se autorizado pela confiança do irmão, encomendou igualmente três casacos assertoados e dois ternos de fantasia, que ornamentava com gravatas berrantes, passando a ser uma presença colorida no Urban onde, entre os matraquilhos e uma por outra linha de coca, adoptou o nome de guerra de Olivier Style. Era o hílare Olivier à noite e o sóbrio Pereira no compungimento dos escritórios da funerária.
Pode um gato gordo ser tão ágil como um gato magro? É duvidoso. Contudo, o raio do dinheiro muda o ângulo sobre o pólipo mais insípido e puxar carinhosamente pelos suspensórios de um gordo pode recair num vício que rapidamente desperta a arte da dissimulação no sorriso que se julgava cândido. E Olivier queria crer, pelo menos tanto como elas. Elas, passada a incredulidade inicial – como são que ainda ninguém lhe dissera que um rabo-de-cavalo só assenta bem numa magreza com carácter? –, superado o repúdio e a jura antecipada, começavam a tropeçar na sua persistência e na desconcertante lenga-lenga de “um cobarde que procura uma Alceste”, e, ainda que pouco lhes importasse os clássicos, não eram indiferentes ao provimento das ofertas. Cativadas pelo humor, acabavam por lhes aceitar o laço - e não prometia o nutricionista do Sheraton, White do ‘Ite, transfigurar a massapão em massa folhada?
Ao fim de meses de conjugalidade sobrevinha o arrependimento, o divertido Olivier das noitadas não compensava a maçada de aturar o Pereira dos enterros, e ele só sabia ser uma coisa ou outra, e não uma coisa e outra. Mesmo no leito, ele revelava-se um sorumbático, e, destituído da mínima sombra do humor que prometera, Pereira oscilava entre a oportunidade de emudecer como um toucinho ou de desatar a arfar em decibéis que matavam as microtonalidades, a languidez do prazer; encurralando as mulheres na recordação de experiências de outra adequação, na doce souplesse das carícias sem peso de ex-namorados.
A coisa piorava depois de grávidas. Normalmente pariam e dois meses depois desatavam a trai-lo com o contabilista, com o primo massagista do Belenenses, ou a primeira jovem viúva de olhos verdes e lábios de cereja que lhes falasse em Safo. Ele, circunspecto, cerimonioso, na missa do sétimo dia, fechava as pálpebras, sonhando brunir as orelhas no latim do padre e elas, latindo nos bastidores, alunavam.
Corolariamente, nos processos de divórcio como podiam elas portar-se senão como lobas ávidas pela conservação de privilégios adquiridos - duas linhas de coca, diárias, e outros mimos? Pereira que, no mais fundo de si temia a crueldade de Medeia, dispunha-se a ceder para calar a humilhação.
Ao cabo de três rombos patrimoniais, quando Pereira apresentou Karina a sua mãe - e esta detectou no olhar da candidata um vinco de lubricidade que sobrepujava em muito o pulmão do filho -, dona Marieta embarcou num caudal de xamaxs e lorenis que lhe precipitaram o fim. No quarto, sozinha, sentia-se torturada - num medo itimorato, absolutamente infundado - pela maldita frase de Medeia: «Ó filhos malditos de mãe odiosa, perecei com vosso pai, e a casa caia toda em ruínas.», e soluçava inconsolável: “Perecei Pereiras!”. Meses a fio. Uma noite levantou-se do capitoné em que via a telenovela queixou-se duma moinha, deu boa-noite e foi deitar-se, apagando-se no leito como a borbulha no acne adolescente. Vitória, a empregada, entrou sigilosamente no quarto, de manhã, para lhe deixar uma carta da irmã Raquel (a sua favorita, que casara com Cristo) na mesa-de-cabeceira e achou a senhora ‘bonita, repousada’; só indo certificar-se depois de em vão a chamarem três vezes para o pequeno-almoço.
Nicolau não faltou ao enterro da mãe e aproveitou para ensaboar Pereira, prevenindo-o de que lhe retiraria o comando do negócio familiar se ele não deixasse de ser um estouvado. Pereira concedeu, andava a meter o pé na argola e como sinal de assentimento cortou a trunfa rente, o que deixou Nicolau satisfeito. Mas o coração não muda à mesma velocidade da cabeça e, manejando as gravatas estampadas que lhe comprava, Karina engarrafou-o com vários nós de marinheiro. Um deles, os gémeos Tião e Tiago.
Quando dois anos depois Nicolau aterrou em Lisboa para observar, em friso, na escadaria da igreja (e porquê na igreja, meu Deus, agora metia igreja!), os quatro filhos do irmão, os caríssimos vestidos das ex., e reconhecer de imediato na esfuziante Cátia, a nova noiva, outra caça-dotes, percebeu que tinha de tomar rapidamente as rédeas do negócio ou então rogar que acontecesse em Lisboa o primeiro terramoto de grau 9.
Pereira foi salvo de não chegar da lua-de-mel para uma prateleira à parte de quaisquer circuitos decisórios na empresa por uma chamada do sócio de Nicolau, a quem fora diagnosticado Alzheimer e que ameaçava suicidar-se. Indo no socorro do sócio e amigo, Nicolau reservou para mais tarde as acções a tomar quanto ao património familiar.

Ao fim da tarde do dia em que descobriu, não seriam mais que umas 11h30, a mulher a escalar a Torre Eifel; depois de ter desabafado em tragos longos nas barracas do bairro a sua infelicidade com as mulheres e a sua impotência para as rejeitar, Pereira entrou em casa decidido a ir ao quarto dos fundos – onde se guardavam os caixões reservados para si e o irmão – coloquiar com o seu esquife sobre as linhas tortas em que a sua vida capotara, desde que experimentara fintar a sina. Se Pereira, nessa manhã, tivesse lido atentamente o artigo sobre estratégia que se estampava nas centrais da revista Visão, que folheara apressadamente ao chegar ao escritório, teria compreendido que aquilo que há anos a sua obesidade reclamava era o direito a afirmar que o mapa não é o território. Não importa, facto é que decidira enfrentar o mal de frente, Pereira queria meditar, face a face ao esquife, ou à asa-delta da alma, como se quiser, na decepção da sua vida. 
Assim que abriu a porta do quarto teve uma desagradável surpresa. Cátia dormia dentro do seu caixão aberto. O seu vestido azul claro, de decote drapeado, raiava contra o fundo vermelho da seda. Descansava aí do pleito amoroso com o titã, e a sua pele morena resplendia uma luz interior como Pereira nunca despertara nela. A seda, garantia ela, augurava bons sonhos.
Não era a primeira vez. O carinho com que a princípio ela brincava com as suas superstições degenerara nos últimos meses em escárnio, e provocações. Por várias vezes, à noite, se escapara ao seu assédio amoroso, na cama, para ir dormir ‘sossegada’ ao lugar de todos os seus terrores, e chegara ao ponto de não dispensar a estocada cruel: «Tenho mais prazer em dormir com o teu caixão do que contigo, ao menos não transpira!».
Ainda namoravam quando, num rasgo de entusiasmo, ele lhe contou a história de Alceste, o amor com que se ofereceu à Morte para trocar de lugar com o marido, o que lhe valeu a admiração dos deuses e o resgate autorizado da sua alma ao Hades, por Hércules, enquanto ela numa frívola espontaneidade lhe chamava tolo, oferecendo-se para ir dormir ao caixão. Ele ficara sentido mas ela disfarçou e deu-lhe a volta. Agora, era cada vez mais frequente ela preferir o esquife porque sabia que ele não se aproximaria de si. Estava há vários meses ciente de que este casamento teria o mesmo fim dos anteriores e agora até duvidava que o feto de três meses que ela carregava fosse seu.
Se ela soubesse que eu sei, que eu vi, não dormiria tão descansada, pensou Pereira, deplorando a sua cobardia por de manhã não ter interrompido a injúria. E se eu fechasse o caixão e a mandasse mesmo no meu lugar? Num impulso fechou o esquife. Mas o seu coração pontapeou-o, não estava na sua índole. E reabriu-o. Ela permanecia indemne, como se a inocência lhe pulsasse da carne e lhe volvesse mais branda a respiração. Cabra, Alceste ofereceu-se para a morte, tu ofereceste-te para me enganar. E mordeu a língua, ao dar-se conta de que não seria capaz de deixar de a amar.
Saiu pela porta de rompante e meteu pelo corredor, comprido. A casa estava quase esvaziada; os seus móveis e electrodomésticos haviam sido vendidos por Rosânia para pagar dívidas, com excepção dos trastes velhos que a sua cunhada autorizara que empilhasse em dois quartos, até serem trasladados para o armazém do Prior Velho, onde estava determinado que Pereira doravante viveria, num exílio forçado. Pereira era estroina mas bem formado e por isso, há três semanas atrás desabafara com o irmão ao telefone e este percebera que o estado das coisas exigia um pulso de ferro, enviando a mulher no seu lugar. Esta providenciava a venda da casa familiar e Pereira, obediente e desmoralizado, encaixava.
Cátia estava demasiado ocupada para se pôr com guerras com a cunhada e a relativa indiferença dela ao que se estava a passar é que colocou Pereira de sobreaviso.
Pereira soluçava quando dobrou o cotovelo do corredor e entrou de impulso na primeira porta à direita, atirando-se para cima da velha cama de mogno da mãe, que fedia a naftalina. A luz do dia foi baixando os véus sobre a fronha bordada e os painéis em cruz do pesado armário que Pereira entalara entre a cama e a parede, sem espaço para alguém passar de permeio; e os símbolos das cartas – ouro, copas, espadas, paus - em marfim marchetados na cabeceira da cama foram ficando baços.
Que horas seriam quando deu conta de que a casa transpirava? Não era um problema de canos, naquela parede não passavam canos. E a casa nunca tivera humidade, nem pensar, a mãe era asmática (felizmente Pereira não lhe herdara o gene) e os pais haviam migrado de morada em morada até conseguirem um domicílio que lhes garantisse a secura do grés nas veredas da Virgem.
A parede exsudava, perlada como a testa de um lutador de boxe. Levantou-se e foi verificar. Havia quatro finos sulcos de água, que desciam do tecto, e engrossavam na ponta, numa gota. Encostou o indicador à parede e a gota trepou-lhe o dedo. Encostou a língua à gota. Era mais do que água. Voltou a prová-la. Sim, a gota despertava-lhe o gosto a chá de camomila, a bebida exclusiva de Nicole, a francesa que o bisavô Jaime, combatente voluntário nas forças dos Aliados, na II Guerra, tinha trazido de Paris. Passou à gota do lado. Provou. Sabia a asfódelos. Como a sua avó, segundo ela mesma dizia, apesar dos sabonetes e perfumes com que esfregava a pele; a única lamúria que se lhe ouvia da profissão, impressão que nunca foi desmentida pelo pai. Era a sua mãe. Trémulo com a revelação, estendeu o dedo para o terceiro sulco de água. Voltou a passar com a língua pelo dedo. Não havia dúvidas, sabia a aguardente. Algo de profundamente residual do seu avô Custódio, homem de sermões e muita aguardente, encarnara naquela gota. Sentou-se na cama, sem coragem para testar a quarta gota, numa ligeira quebra de tensão.
Os mortos regressavam. O quarto estava pejado dos seus fantasmas. Estavam ali por ele, naquele momento de sofrimento, ou haviam estado sempre? Não sabia lidar com a descoberta. Que o assustava, tremendamente: os mortos voltam, afinal não partem para sempre. Estão em nosso redor; no mais insignificante recanto, em todas as casas, uma superfície perla; membrana líquida que conecta memória e actualidade.
As ideias encadeavam-se dentro dele: não há razão para fugir à morte, ou para a delegar noutrém, porque o fito do espírito é regressar, acompanhar todos os elos da cadeia, até ao molde final; compreendia agora o que insistentemente lhe balbuciava o avô Custódio, em dias de muita água de fogo: ‘rapaz, para que nasça a abóbora é preciso que a semente morra!’; e o que é uma abóbora - para além da sopa, deliciosa - senão um paiol de sementes? Pereira julgou compreender: há deperecimento mas não há desaparecimento final, e, como diz o verso de Pessoa, morrer é unicamente deixar de ser visto. Pelo que deixa de haver necessidade de alguém morrer no nosso lugar, concluiu aliviado.
Pereira, nos últimos anos, viciara-se na ideia de que o dinheiro compra tudo. Num flash, viu, há coisas que vêm por si, apesar ou para além dos aparatos. A morte vem por si, independentemente das agulhas que quisemos semear nos seus carris. O amor terá de vir por si…
Pereira suspirou e deixou-se cair para trás na cama. Sentia-se em paz, absolutamente esvaziado de ansiedades. Passou-lhe levemente pela cabeça a ideia de dormitar um pouco. Mas sentia os bolsos pesados. Despejou-os, do chaveiro, um verdadeiro trambolho, e de dois chocolates. Um deles licoroso, por abrir. Ainda os ergueu à boca mas só o cheiro enjoou-o. Abriu a mesa-de-cabeceira e enfiou-os lá para dentro, certo de que nunca mais lhes tocaria.
Deitou a cabeça, descontraidamente. Fechou os olhos. Via o florão de estuque no tecto, através das pálpebras. Percebeu então que, se os mortos voltam, ele não se importaria que Cátia fosse, não no lugar dele, mas no seu e próprio.
Levantou-se de um pulo, saiu pela porta, dobrou o cotovelo do corredor e encaminhou-se para a porta do fundo.
  


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