De José Angel Valente, um dos poetas que prefiro, novas traduções
CONSINTO
Devo morrer. E no entanto, nada
morre, porque nada
tem fé suficiente
para poder morrer.
Não morre o dia,
passa;
nem a rosa, que
se apaga;
resvala o sol,
não morre.
Só eu que toquei
o sol, a rosa, o dia,
e neles cri,
me consinto a morrer.
A CABEÇA DE YORICK
Ei-la, a cabeça de Yorick
pelada e redonda: examinemos
a mona do bufarinheiro,
o alegre conca
onde bailava um olho,
a sua fronte da qual se escamou
o pensamento, para sempre
evadido.
Tomemos-lhe a cabeça
como um cofre oco
onde já nem o ar finge
um resíduo de alma.
Este era Yorick,
de pés e riso lábeis
e palavras certeiras.
Sopesemos na cabeça
o seu silêncio,
por uma vez despido.
A glabra cabeça
de Yorick: examinemos
a redonda mona de Yorick
o bufarinheiro e deixemo-la
cair de novo no pó
como se nos decapitássemos.
O ÓDIO
Entreolhamo-nos medindo
o alcance feroz da pupila.
Segue-se um abraço mortal
e rodamos unidos.
Já quase confundíamos
nesse estreito nó
que corpo golpeávamos,
que coração sondavam
as nossas odiosas garras de aço.
Primeiro havia luzes
como num ringue, espessos
gritos, humana sede de sangue.
Alguém contava
os golpes até dez, até dez
os derrubes, até dez
mil o amarelo arquejar do rancor.
Depois houve um apagão.
lutávamos no meio
de um escuro deserto
de areia ou de cinzas
que o ódio calcinava.
E ao redor a noite a noite
anoitecida, até romper-se
o breu em alaridos
de recatada sombra.
O espanto rodava
como um rochedo imenso
e os corpos unidos
era um só, corpo
toldado de amor que o ódio
sorvia até às fezes.
ROTAÇÃO DA CRIATURA
A semente contém todo o ar;
o grão é apenas um pássaro
enterrado;
a nuvem e a raiz sonham o mesmo;
a seiva abre a palma da espiga
onde o sol e a chuva se recriam
e amassam com o seu amor o pão
quente;
o céu do avesso olha para cima
e aponta para a sua abóbada
terrestre;
a terra chove céu abaixo pássaros
e o céu fecundado em primavera
multiplica prazenteiramente a sua
luz;
o sonho é um sonâmbulo vigia
e o despertar o seu sonho
verdadeiro.
No olho de Deus verde e profundo
a primeira semente ainda busca o
fundo,
e tudo gira ali do limo ao homem
para que o mundo comece todavia.
COMO A TERRA SECA ABRE
Como a terra seca abre
a sua dura entranha à água
como o golpe de um cavalo força o
horizonte
e faz saltar o coração dos
limites
da vida indefesa: assim vieste
tu.
Reconheço-te.
Assim chegaste. É o tempo
da dor. É o tempo, pois, de
alçar-se.
Tempo de não morrer.
Pois
vieste
quando até à sua raiz os meus
ossos
a pena quebrantava.
Assim chegaste, assim vieste tu,
fidelidade sem fim que me ata à
vida.
AS LEGIÕES ROMANAS
Ainda se batem as legiões romanas
vai para cima de dois mil anos
nos pântanos e nos arrozais.
Um Buda torto de olhá-las passa
errabundos salvos-condutos ao
loto e à tartaruga
O inimigo foi aniquilado
quatro mil vezes em tantos dois
mil anos
e as legiões ainda se batem
contra os mesmos mortos.
Como?
Ninguém recorda como começou tudo
ou a quem atribuir a culpa
nem porque a vitória não
gratifica
as heróicas águias que caem,
caem, como tordos.
Um pato chapinha num pequeno
charco,
o bambu é inflexível,
secreto o limo nos canaviais.
Chegam novas águias enviadas
pelo remoto Capitólio, de Pompeia
as gomas para mascar (costume
deste povo
de requintados colossos), o sexo
em latas
e um grande e encarniçado dólar
de nova fabricação ou impressão
para todo o império, império
sacro, pelos séculos
dos séculos.
Saúde.
SEGUNDA HOMENAGEM A ISADORE
DUCASSE
Um poeta deve ser mais útil
que algum outro cidadão da tribo.
Um poeta deve conhecer
diversas leis implacáveis.
A lei da confrontação com o
visível,
o traçado das linhas divisórias,
e o a da colocação dos diques
e a sumária lei do círculo.
Ignora, em troca, o regicídio
como figura de delito
e outras falsas palavras da
história.
A poesia há-de ter por fim a
verdade prática.
A sua missão é difícil.
CRÓNICA, 1968
AS PALAVRAS apodrecem.
O que dá uma palavra dá um dom.
O que dá um dom deixa vazio o ar.
O que esvazia o ar coloniza a
terra.
Mas debaixo da terra as palavras
apodrecem.
Enche-se a palavra dos tristes
soluços do animal enfartado,
dum soluço do mais longevo
hipopótamo,
e por muito que brilhe o seu
arco-íris não traz a paz,
apenas o estalido duma salivação
sebácea
e o deglutido filamento da morte.
As palavras apodrecem, são
devolvidas
como pétreo excremento,
sobre a noite dos humilhados.
CRÓNICA II, 1968
Todos os que têm pontos de
referência no espírito, quero dizer de certo lado da cabeça, em zonas bem
delimitadas do cérebro, todos os que dominam a sua linguagem, todos aqueles
para quem as palavras têm sentido, quantos crêem que existem alturas na alma e
correntes no pensamento, os que são o espírito da época e assim designaram essas
correntes de pensamento, penso nos seus trabalhos precisos e nesses guinchos de
autómato que a todos os ventos empresta o seu espírito,
- são uns porcos.
ANÁLISE DO VENTRE
Aquele ventre era para ser
observado com lupa,
pois sob a lente cada pequena
prega,
cada rugosidade se fazia
multiplicado lábio.
O amor, demasiado brutal,
jamais repararia,
a petulante viril paixão,
que consome o ar num só trago
inútil,
jamais repararia.
Mas nós, minha amiga, analisemos
com a frialdade habitual a que só
o poema
se presta
a difícil paixão do menos
visível.
VISITA A GUANABACOA
Convém percutir.
Convém que o tambor nos possua.
Porque no tambor está,
disseram-nos,
o ruído sem fim do fundamento.
Com a pele do peixe fizeram um
tambor,
mas o peixe era um deus.
No cântaro da virgem entrou um
peixe,
mas o peixe era um deus.
O cântaro era o ventre
da filha de um rei.
O rei sacrificou ao peixe
(mas o peixe era um deus)
e ouviram na sua pele
e na pele do tambor
o som.
A virgem baixou à margem das
águas
e entrou na sua entranha o peixe.
Desde o tambor escuros se
levantam
o deus, o peixe,
o ritmo, o som,
o insufocável som do fundamento.
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