terça-feira, 21 de abril de 2015

TANTO PODE ACONTECER ENTRE AGORA E NUNCA

carlo carrà

Tem o JL uma secção que é uma espécie de diário, escrito por escritores, a pedido. Enviei há um mês o texto que me pediram e nêspera. Calado Fundo, como um cabo-verdiano da minha meninice. Foi pedido da editora um esclarecimento sobre a falta de resposta e nêspera. Eu sabia que em vinte livros publicados, só sairam coisas sobre mim no JL quando escritas por «intocáveis» como o Urbano Tavares Rodrigues, o Carlos Porto ou o Listopad. De resto silêncio. Creio que nem os quarenta livros que publiquei como editor – e publiquei uma série de gente que hoje está na berra e alguns são articulistas do jornal – tiveram direito a uma linha. Again. Nem mesmo quando escrevi um livro com a Maria Velho da Costa (creio que esta senhora escritora é insuspeita de idiota), houve a excepção à regra. É no mínimo indelicadeza. Para mais (e talvez isso explique) fui redactor da casa. Mas aquilo de que mais me penalizo é não ter dito logo que não. Aqui deixo o texto que enviei,


TANTO PODE ACONTECER ENTRE AGORA E NUNCA
António Cabrita
10/3/2015
Dia de lançamento do Éter, na Barraca, com apresentação de Luís Carmelo. Logo saberei se terá valido a pena ter-me deslocado 9000 kms para um acto de reencontro com amigos, inimigos e fantasmas. Releio no caderno que havia esquecido em casa da minha filha, a história que, há dois anos, contei no lançamento da edição portuguesa de A Maldição de Ondina:
«O pai de Rousseau, o Isaac Rousseau, foi relojoeiro num harém, em Constantinopla. Eis tarefa para uma vida. E uma tarefa tão material, dado o tempo ser “a morte no trabalho”, como imensamente obscura.
Porém, viu-se o pai de Rosseau obrigado a regressar a Genebra por rogos da mulher, Suzanne e engravidou-a, para depois assistir ao sobressalto de vê-la falecer no parto de um, veja-se a ironia, bebé enfezado e doentio. O próprio Jean-Jacques.
Dizem os relatos que embrutecidos pela nostalgia, pai e filho se dedicaram ao culto da ausente Suzanne, e à leitura da grande colecção de romances que ela deixara – acumulada durante a estada de Isaac no harém oriental. 
As coisas impensáveis a que podem levar as badanas de um harém!
Quando esgotaram esta biblioteca, bulímicos, concentraram-se na do avô materno, que o muito jovem Rousseau virou, como se fossem líquidos.
Mas suspeito que este jovem educado um pouco ao deus dará e com um pai que só lhe presta atenção por saudades da falecida, há-de ter chegado à adolescência e, no esplendor da sua primeira masturbação, embatido com o seu primeiro mistério metafísico: o que faz um relojoeiro num harém?
Qual é o verdadeiro marcador de tempo no serralho? E, talvez a mais vertiginosa das perguntas: um relojoeiro num harém não se sente afogar numa espécie de infinito, de sémen incoalhável, que impede qualquer regularidade na medida?
Que podia o embaralhado Rousseau imaginar, para se safar a tal vertigem, senão a hipótese de tornar-se “um bom selvagem”, numa pulsão-em-flor que que lhe permitisse evadir-se de tudo o que dava sentido aos ritos e ao cumprimento das horas.
Pressinto que Jean-Jacques Rousseau, de repente, contra o pai, aspirou à hipótese de no futuro vir a ser amante da Debra Winger ou da Eva Mendes, para nunca por nunca lhe seguir a arte de relojoeiro.
É aqui que nos encontramos, e onde eu deslindo o começo de um princípio para a arte, até pelo motivo que se segue: há arte quando se encontra mais do que aquilo que foi perdido (Elias Canetti).»

 11/03/2015
Ouço no café uma divertida conversa entre reformados. Diz um deles: procurei toda a vida inventar um “mamógrafo”, o aparelho que medisse a capacidade de embriaguez de uma boca face a um mamilo.
Contudo, a anedota não alivia o peso de constatar que os jornais estão pejados de casos de violência doméstica. Sou muito mais sensível a esta questão desde que, em 2010, escrevi oito vídeo-reportagens sobre o tema e entrevistei 300 vítimas por Moçambique inteiro. Encontrar Portugal mergulhado numa escalada do mesmo tipo de crime é lamentável. A não ser que seja mais um caso de “irresponsabilidade dos media” e que se repita aquilo que em 2003, 2004 se passou com a pedofilia, quando a comunicação social traumatizou uma geração de pais e crianças, enchendo-a de medos. Seja qual for a resposta, é medonha.

 14/03/2015
Boa, a entrevista de José Gil, no I. E lê-se nela: “estou convencido de que Fernando Pessoa estava constantemente em estado de trauma”. E acertou. Para quem, como eu, vive na África Austral sabe que a coisa é mais do que provável. Neste território passou FP o período mais extenso da sua formação, no bordo de outra língua, e sob o assombro de vários cadáveres familiares. Vive-se (ainda hoje) nesta zona um quotidiano atravessado por ondas sísmicas incessantes e onde os paradoxos são, além de experimentados (não são construções mentais), irresolúveis: suponhamos que a vida, aí, nos convida para sermos o “compére” de uma tragédia. Ao confronto do sensível Pessoa – dos 7 aos 17 – com esta realidade polisaturada, em Durban, seguiu-se o regresso de um jovem cultíssimo a um país provinciano, que estava então ao nível de Moçambique de hoje: 50% de analfabetismo e 75 % de iliteracia. O que dá uma solidão danada, que não ajuda à mitigação do trauma que se traz de trás. A bebida então pode ser um paliativo, um modo de escandir o cinismo a que queremos resistir.

 15/03/2015   
Preocupado com o clima que vou encontrar no meu regresso a Moçambique, leio no Canalmz de dia 5, e ainda a propósito do assassinato do constitucionalista Gilles Cistac, o reitor da Faculdade de Direito que pendularmente lembrava às autoridades que Moçambique era um Estado de Direito: «“A Comissão Política repudia e distancia-se das acusações daqueles que, recorrendo a manobras dilatórias, acusam a Frelimo de ser responsável pela morte do académico.” Para o partido no poder a sua responsabilização pela morte do constitucionalista visa “pôr em causa a governação da Frelimo”. O partido Frelimo felicita no seu comunicado a Polícia da República de Moçambique pelo trabalho que está a fazer no caso. Recorde-se que ontem a Polícia recebeu ordens para mentir descaradamente dizendo à imprensa que Gilles Cistac foi morto por um cidadão de raça branca. “Recebemos ordens superiores para dizer que Cistac foi morto por um branco para afastar as acusações de racismo que andam na imprensa”, disse-nos, na manhã de ontem, uma fonte superior da PRM. E, de facto, na tarde de ontem, Arnaldo Chefo, porta-voz da PRM na cidade de Maputo, veio a público dizer, sem qualquer prova, que quem matou Cistac foi um cidadão de raça branca». O Canalmz é um jornal tendencioso, mas o clima está dado. Que dizer?

16/03/2015
Escreveu Mahler à sua mulher: «Eu não sou senão um arqueiro que atira no escuro”. Neste arqueiro cego encontra Salah Stétie a metáfora para falar do poeta.
Também eu me sinto vizinho dessa concepção, o que não nos traz certezas nem futuro mas essa imensa liberdade que nos dá o encontro com algo imemorial. De entre as mitologias em torno do poeta e da poesia é a que prefiro – a de uma escola de ignorâncias, como diria Ramos Rosa.
Também eu, no começo de todos os equívocos, quis ser um “poeta maldito”. Felizmente a vida pregou-me a partida e deu-me filhos, o que me fez entender que tudo recomeça sempre e em todas as direcções, mesmo o mal recomeça sempre, ainda que refractado.
Um maldito é um homem de um só vinco, que toma a prancha partida da piscina da sua infância por todas as pranchas do mundo e que teima em dizer «não» quando a melhor negação é dizer sim.
Se o vinho nos põe alegres, por que teimar em ter mau vinho? Há por aqui uma enorme pose, uma estapafúrdica falta de sabedoria.
A única forma eficaz da nossa indignação contribuir para uma mudança no mundo é dotá-lo de algo que nos religue e quebre a inércia do tanto que nos quer separar. Da beleza, por exemplo, que é a forma momentânea com que damos uma melodia ao informe.
Esta é com certeza o transe que nos impele à colaboração mais activa, numa realidade que, apesar de nós, se desagrega. E não importa o quanto se desagrega, mas o que fizemos para sair da linha recta e para a olhar duma perspectiva que a re-encantou.
Uma vez, na adolescência, dum mau poeta, li uma imagem que nunca mais me esqueci: na cidade que tombou num manto espessíssimo de nevoeiro dois homens aproximam-se. Não se vêem, mas um deles assobia a melodia do Casablanca, e quando cruzam as nubladas ausências, o que ia calado, sem se dar conta, começa também a assobiar a mesma canção. É tudo o que é possível fazer e julgo ser o pequeno estribo que nos salva do ganido dos cínicos.
Também eu lastimo o estado das coisas e me zango e atabalhoadamente me atiro num galope de sentenças e imprecações, de recusas que ziguezagueiam como eu, mas persistir na ira só me daria a impaciência que não me deixa ver. Há que saber que em cada momento o escuro pulsa com uma cadência diferente de modo a conseguirmos orientar a flecha na noite. Para onde ou para quê atiramos, desconhecemos, só intuimos que é nessa direcção. Um poeta maldito, e há muito poucos que o sejam genuinamente, é-o, apesar de si, de relance, e não em preocupada demonstração de zelo. Não fazem profissão.
Uma vez tive um poeta amigo tão furibundo que (dir-se-ia) torcia as colheres só de as olhar. Ficou em apuros. Todas as semanas jogávamos bilhar a dinheiro e eu perdia sempre. Era a única forma de se deixar ajudar. Depois insistia em passar pelo cemitério e em ir mijar nas campas. Percebi com ele que afinal não queria ser um poeta maldito, e que não urinar nas campas não queria dizer que as enchêssemos de licores.
Há uma grande vantagem em não ser um poeta maldito: não sei o que vou rejeitar amanhã, não sei sequer como vai ser amanhã, e o futuro e o passado encadeiam-se num presente discrepante, mas aberto, com sombras e flashes de luz atordoadores. Um homem vário e ondulante, diria o Montaigne, dá quanto muito uma profissão de fé, que é igual a dizer que na mão só se leva o vento, às rabanadas.
Um maldito-de-profissão ainda está na orbe do poder, é reactivo, eu prefiro os refractários que, sem muita convicção, apenas porque não conseguem ser de outra maneira, semeiam o “impoder”. Pode até amar o mal, uma certa configuração que lhe dá textura aos tecidos.
Desde que ame, que não finja amar. Aí os tigres brilham na neve. 



2 comentários:

  1. A enorme vantagem da intervenção inteligente de alguém independente.
    (Desculpa a cacofonia)
    .
    Bem bom de ler te.

    Imf

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