carlo carrà
Tem o JL uma secção que é uma espécie de
diário, escrito por escritores, a pedido. Enviei há um mês o texto que me
pediram e nêspera. Calado Fundo, como um cabo-verdiano da minha meninice. Foi
pedido da editora um esclarecimento sobre a falta de resposta e nêspera. Eu
sabia que em vinte livros publicados, só sairam coisas sobre mim no JL quando
escritas por «intocáveis» como o Urbano Tavares Rodrigues, o Carlos Porto ou o
Listopad. De resto silêncio. Creio que nem os quarenta livros que publiquei
como editor – e publiquei uma série de gente que hoje está na berra e alguns
são articulistas do jornal – tiveram direito a uma linha. Again. Nem mesmo
quando escrevi um livro com a Maria Velho da Costa (creio que esta senhora
escritora é insuspeita de idiota), houve a excepção à regra. É no mínimo
indelicadeza. Para mais (e talvez isso explique) fui redactor da casa. Mas
aquilo de que mais me penalizo é não ter dito logo que não. Aqui deixo o texto
que enviei,
TANTO PODE ACONTECER
ENTRE AGORA E NUNCA
António Cabrita
10/3/2015
Dia de lançamento do Éter, na
Barraca, com apresentação de Luís Carmelo. Logo saberei se terá valido a pena
ter-me deslocado 9000 kms para um acto de reencontro com amigos, inimigos e
fantasmas. Releio no caderno que havia esquecido em casa da minha filha, a
história que, há dois anos, contei no lançamento da edição portuguesa de A
Maldição de Ondina:
«O pai de Rousseau, o Isaac Rousseau, foi
relojoeiro num harém, em Constantinopla. Eis tarefa para uma vida. E uma tarefa
tão material, dado o tempo ser “a morte no trabalho”, como imensamente obscura.
Porém, viu-se o pai de Rosseau obrigado a
regressar a Genebra por rogos da mulher, Suzanne e engravidou-a, para depois
assistir ao sobressalto de vê-la falecer no parto de um, veja-se a ironia, bebé
enfezado e doentio. O próprio Jean-Jacques.
Dizem os relatos que embrutecidos pela
nostalgia, pai e filho se dedicaram ao culto da ausente Suzanne, e à leitura da
grande colecção de romances que ela deixara – acumulada durante a estada de
Isaac no harém oriental.
As coisas impensáveis a que podem levar as
badanas de um harém!
Quando esgotaram esta biblioteca,
bulímicos, concentraram-se na do avô materno, que o
muito jovem Rousseau virou, como se fossem líquidos.
Mas suspeito que este jovem educado um
pouco ao deus dará e com um pai que só lhe presta atenção por saudades da
falecida, há-de ter chegado à adolescência e, no esplendor da sua primeira
masturbação, embatido com o seu primeiro mistério metafísico: o que faz um
relojoeiro num harém?
Qual é o verdadeiro marcador de tempo no
serralho? E, talvez a mais vertiginosa das perguntas: um relojoeiro num harém
não se sente afogar numa espécie de infinito, de sémen incoalhável, que impede
qualquer regularidade na medida?
Que podia o embaralhado Rousseau imaginar,
para se safar a tal vertigem, senão a hipótese de tornar-se “um bom selvagem”,
numa pulsão-em-flor que que lhe permitisse evadir-se de tudo o que dava sentido
aos ritos e ao cumprimento das horas.
Pressinto que Jean-Jacques Rousseau, de
repente, contra o pai, aspirou à hipótese de no futuro vir a ser amante
da Debra Winger ou da Eva Mendes, para nunca por nunca lhe
seguir a arte de relojoeiro.
É aqui que nos encontramos, e onde eu deslindo o
começo de um princípio para a arte, até pelo motivo que se segue: há arte
quando se encontra mais do que aquilo que foi perdido (Elias Canetti).»
11/03/2015
Ouço no café uma divertida conversa entre reformados.
Diz um deles: procurei toda a vida inventar um “mamógrafo”, o aparelho que
medisse a capacidade de embriaguez de uma boca face a um mamilo.
Contudo, a anedota não alivia o peso de constatar que
os jornais estão pejados de casos de violência doméstica. Sou muito mais
sensível a esta questão desde que, em 2010, escrevi oito vídeo-reportagens
sobre o tema e entrevistei 300 vítimas por Moçambique inteiro. Encontrar
Portugal mergulhado numa escalada do mesmo tipo de crime é lamentável. A não
ser que seja mais um caso de “irresponsabilidade dos media” e que se repita
aquilo que em 2003, 2004 se passou com a pedofilia, quando a comunicação social
traumatizou uma geração de pais e crianças, enchendo-a de medos. Seja qual for
a resposta, é medonha.
14/03/2015
Boa, a entrevista de José Gil, no I. E lê-se nela:
“estou convencido de que Fernando Pessoa estava constantemente em estado de
trauma”. E acertou. Para quem, como eu, vive na África Austral sabe que a coisa
é mais do que provável. Neste território passou FP o período mais extenso da
sua formação, no bordo de outra língua, e sob o assombro de vários cadáveres
familiares. Vive-se (ainda hoje) nesta zona um quotidiano atravessado por ondas
sísmicas incessantes e onde os paradoxos são, além de experimentados (não são
construções mentais), irresolúveis: suponhamos que a vida, aí, nos convida para
sermos o “compére” de uma tragédia. Ao confronto do sensível Pessoa – dos 7 aos
17 – com esta realidade polisaturada, em Durban, seguiu-se o regresso de um
jovem cultíssimo a um país provinciano, que estava então ao nível de Moçambique
de hoje: 50% de analfabetismo e 75 % de iliteracia. O que dá uma solidão danada,
que não ajuda à mitigação do trauma que se traz de trás. A bebida então pode
ser um paliativo, um modo de escandir o cinismo a que queremos resistir.
15/03/2015
Preocupado com o clima que vou encontrar no meu regresso a Moçambique, leio
no Canalmz de dia 5, e ainda a propósito do assassinato do constitucionalista
Gilles Cistac, o reitor da Faculdade de Direito que pendularmente lembrava às
autoridades que Moçambique era um Estado de Direito: «“A Comissão Política
repudia e distancia-se das acusações daqueles que, recorrendo a manobras
dilatórias, acusam a Frelimo de ser responsável pela morte do académico.” Para o partido no poder
a sua responsabilização pela morte do constitucionalista visa “pôr em causa a
governação da Frelimo”. O partido Frelimo felicita no
seu comunicado a Polícia da República de Moçambique pelo
trabalho que está a fazer no caso. Recorde-se que ontem a Polícia recebeu
ordens para mentir descaradamente dizendo à imprensa que Gilles Cistac foi
morto por um cidadão de raça branca. “Recebemos ordens superiores para
dizer que Cistac foi morto por um branco para afastar as acusações de racismo
que andam na imprensa”, disse-nos, na manhã de ontem, uma fonte superior da
PRM. E, de facto, na tarde de ontem, Arnaldo Chefo, porta-voz da PRM na cidade
de Maputo, veio a público dizer, sem qualquer prova, que quem matou Cistac
foi um cidadão de raça branca». O Canalmz é um jornal tendencioso, mas o clima
está dado. Que dizer?
16/03/2015
Escreveu Mahler à sua mulher: «Eu não sou senão um
arqueiro que atira no escuro”. Neste arqueiro cego encontra Salah Stétie a
metáfora para falar do poeta.
Também eu me sinto vizinho dessa concepção, o que não
nos traz certezas nem futuro mas essa imensa liberdade que nos dá
o encontro com algo imemorial. De entre as mitologias em torno do
poeta e da poesia é a que prefiro – a de uma escola de ignorâncias, como diria
Ramos Rosa.
Também eu, no começo de todos os equívocos, quis ser um “poeta maldito”. Felizmente a vida pregou-me a partida e deu-me filhos, o que me fez entender que tudo recomeça sempre e em todas as direcções, mesmo o mal recomeça sempre, ainda que refractado.
Um maldito é um homem de um só vinco, que toma a prancha partida da piscina da sua infância por todas as pranchas do mundo e que teima em dizer «não» quando a melhor negação é dizer sim.
Se o vinho nos põe alegres, por que teimar em ter mau vinho? Há por aqui uma enorme pose, uma estapafúrdica falta de sabedoria.
A única forma eficaz da nossa indignação contribuir para uma mudança no mundo é dotá-lo de algo que nos religue e quebre a inércia do tanto que nos quer separar. Da beleza, por exemplo, que é a forma momentânea com que damos uma melodia ao informe.
Esta é com certeza o transe que nos impele à colaboração mais activa, numa realidade que, apesar de nós, se desagrega. E não importa o quanto se desagrega, mas o que fizemos para sair da linha recta e para a olhar duma perspectiva que a re-encantou.
Também eu, no começo de todos os equívocos, quis ser um “poeta maldito”. Felizmente a vida pregou-me a partida e deu-me filhos, o que me fez entender que tudo recomeça sempre e em todas as direcções, mesmo o mal recomeça sempre, ainda que refractado.
Um maldito é um homem de um só vinco, que toma a prancha partida da piscina da sua infância por todas as pranchas do mundo e que teima em dizer «não» quando a melhor negação é dizer sim.
Se o vinho nos põe alegres, por que teimar em ter mau vinho? Há por aqui uma enorme pose, uma estapafúrdica falta de sabedoria.
A única forma eficaz da nossa indignação contribuir para uma mudança no mundo é dotá-lo de algo que nos religue e quebre a inércia do tanto que nos quer separar. Da beleza, por exemplo, que é a forma momentânea com que damos uma melodia ao informe.
Esta é com certeza o transe que nos impele à colaboração mais activa, numa realidade que, apesar de nós, se desagrega. E não importa o quanto se desagrega, mas o que fizemos para sair da linha recta e para a olhar duma perspectiva que a re-encantou.
Uma vez, na adolescência, dum mau poeta, li uma imagem
que nunca mais me esqueci: na cidade que tombou num manto
espessíssimo de nevoeiro dois homens aproximam-se. Não se vêem, mas um deles
assobia a melodia do Casablanca, e quando cruzam as nubladas ausências, o que
ia calado, sem se dar conta, começa também a assobiar a mesma canção. É tudo o
que é possível fazer e julgo ser o pequeno estribo que nos salva do ganido dos
cínicos.
Também eu lastimo o estado das coisas e me zango e atabalhoadamente me atiro num galope de sentenças e imprecações, de recusas que ziguezagueiam como eu, mas persistir na ira só me daria a impaciência que não me deixa ver. Há que saber que em cada momento o escuro pulsa com uma cadência diferente de modo a conseguirmos orientar a flecha na noite. Para onde ou para quê atiramos, desconhecemos, só intuimos que é nessa direcção. Um poeta maldito, e há muito poucos que o sejam genuinamente, é-o, apesar de si, de relance, e não em preocupada demonstração de zelo. Não fazem profissão.
Uma vez tive um poeta amigo tão furibundo que (dir-se-ia) torcia as colheres só de as olhar. Ficou em apuros. Todas as semanas jogávamos bilhar a dinheiro e eu perdia sempre. Era a única forma de se deixar ajudar. Depois insistia em passar pelo cemitério e em ir mijar nas campas. Percebi com ele que afinal não queria ser um poeta maldito, e que não urinar nas campas não queria dizer que as enchêssemos de licores.
Há uma grande vantagem em não ser um poeta maldito: não sei o que vou rejeitar amanhã, não sei sequer como vai ser amanhã, e o futuro e o passado encadeiam-se num presente discrepante, mas aberto, com sombras e flashes de luz atordoadores. Um homem vário e ondulante, diria o Montaigne, dá quanto muito uma profissão de fé, que é igual a dizer que na mão só se leva o vento, às rabanadas.
Um maldito-de-profissão ainda está na orbe do poder, é reactivo, eu prefiro os refractários que, sem muita convicção, apenas porque não conseguem ser de outra maneira, semeiam o “impoder”. Pode até amar o mal, uma certa configuração que lhe dá textura aos tecidos.
Também eu lastimo o estado das coisas e me zango e atabalhoadamente me atiro num galope de sentenças e imprecações, de recusas que ziguezagueiam como eu, mas persistir na ira só me daria a impaciência que não me deixa ver. Há que saber que em cada momento o escuro pulsa com uma cadência diferente de modo a conseguirmos orientar a flecha na noite. Para onde ou para quê atiramos, desconhecemos, só intuimos que é nessa direcção. Um poeta maldito, e há muito poucos que o sejam genuinamente, é-o, apesar de si, de relance, e não em preocupada demonstração de zelo. Não fazem profissão.
Uma vez tive um poeta amigo tão furibundo que (dir-se-ia) torcia as colheres só de as olhar. Ficou em apuros. Todas as semanas jogávamos bilhar a dinheiro e eu perdia sempre. Era a única forma de se deixar ajudar. Depois insistia em passar pelo cemitério e em ir mijar nas campas. Percebi com ele que afinal não queria ser um poeta maldito, e que não urinar nas campas não queria dizer que as enchêssemos de licores.
Há uma grande vantagem em não ser um poeta maldito: não sei o que vou rejeitar amanhã, não sei sequer como vai ser amanhã, e o futuro e o passado encadeiam-se num presente discrepante, mas aberto, com sombras e flashes de luz atordoadores. Um homem vário e ondulante, diria o Montaigne, dá quanto muito uma profissão de fé, que é igual a dizer que na mão só se leva o vento, às rabanadas.
Um maldito-de-profissão ainda está na orbe do poder, é reactivo, eu prefiro os refractários que, sem muita convicção, apenas porque não conseguem ser de outra maneira, semeiam o “impoder”. Pode até amar o mal, uma certa configuração que lhe dá textura aos tecidos.
Desde que ame, que não finja amar. Aí os tigres
brilham na neve.
A enorme vantagem da intervenção inteligente de alguém independente.
ResponderEliminar(Desculpa a cacofonia)
.
Bem bom de ler te.
Imf
e reler te.
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