Traduções minhas de um poeta, que me fascinou desde a leitura de A Estrada Azul, e de quem fui coleccionando livros no sonho de um dia lhe traduzir poemas, até que finalmente me atrevi
CENAS DO MUNDO FLUTUANTE
para o Paulo José Miranda, que conhece este mundo
1
Fiapos de bruma, brancos e
pegajosos, retocam a baía
e um velho junco acomoda-se
pesadamente ao seu caminho –
dava tudo para não perturbar esta
mansidão…
mas já o dia alça consigo as
gruas giratórias,
as pessoas apressam-se e tossem, os
motores
e as sirenes afogam o ring-ring
dos telefones
- Hong-Kong desperta para o
rodopio das moedas
2
Espreite-se agora o mercado do
peixe:
como cintila o sol vermelho
nos olhos bugalhudos, nas carpas,
raias,
tubarões, barracudas e serpentes
do mar,
enquanto se solta um fumo azulado
dos paus de incenso
que pescadores exaustos até ao
osso acendem
para agradecer a bondade da
Rainha dos Céus
e o seu regresso sãos e salvos ao
Cais dos Perfumes
3
Tilinta um vozear cantonês
sobre um amontoado de faces
amarelas
(lado Hong-Kong e lado Kowloon),
o ferry-boat aberto aos ventos
atravessa o verde estreito
por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:
jornais impressos em vermelho e
negro
e expostos às lufadas do mar da
China
4
Uma secretária privada
(«privada, a que ponto?»,
inquietou-se quando lhe deram o trabalho),
de vinte anos, bonita como um
óleo (sem o brilho plástico dos posters),
com cerca de três mil dólares
(HK) de remuneração ao mês
e um apartamento só dela em Happy
Valley,
amante de um próspero médico
local,
e que sonha vir a ser estudante
no Hawaii
- ei-la, acotovelada no lufa-lufa
das horas de ponta,
no ferry-boat da manhã
5
O vetusto e encardido pedinte
mongol
desce do seu poleiro
nas colinas de Kowloon,
levado pelo peso do seu longo e
escorrido cabelo,
e, rindo sozinho,
calca o passeio com os seus pés
nus
deixando atrás de si um rastro de
vazio,
uma larga onda de riso e de vazio
que reflui até à Montanha Fria
6
No refrigerado escritório de um arranha-céus
acaba de chegar a uma linha de
inventário
um milhar de caixotes com
abalones mexicanos
e uma tonelada de coelhos
chineses
é expedida noutra – enquanto nas
ruelas
reformados movem ruidosamente as
peças do Mahjong
por entre um estrelejar de
frituras, o fedor
dos legumes apodrecido e o
fantasmático odor dos incensos
7
No seu encavalitado gabinete em
Mody Street
“Patrão” Wong, aliás Eduardo
(Chinês das Maurícias, passaporte inglês)
atende a sua próxima fornada de
clientes
e afiambra-se a vender-lhes
fatos, relógios, malas
– «sou um topa-tudo» -
e a propor-lhes a sua famosa
viagem-mistério
nos seus barcos-flores e no seu
penumbroso expresso
onde se apalpa a rodos uma
pequena vizinha nua
todos os cinco minutos
8
Espreguiçado à sua vontade,
coçando as costas contra um pilar
do molhe, em Kowloon,
Ken Cameron, vagabundo
abre o South China Morning Post
e lê o discurso que um general
inglês
proferiu num jantar do Rottary
Club
- passando depois a pente-fino a
página de chegadas e largadas
de navios, sonhador, pronto para
uma nova aventura
9
Com dois novos scripts sob o
braço:
«Os Matadores de Canton» e «Assassinato
em Macau»
(sucesso comercial garantido a
100%),
Brooklin Joe, bigode mate e fato
branco,
sobe a Nathan Road pelo colarinho
azul da tarde
enquanto a sua amiga, nova
sensação nas passarelas,
insiste em fumar o cigarro que
lhe dá náuseas
(«somos gente de Hong-Kong, nada
de política…»)
10
Eis Scott Hawkins, escritor
muito rodado em toda a Ásia,
sentado no seu quarto de hotel em
Tsimshatsui,
uma garrafa de uísque ao alcance
da mão
e um caderno novo aberto sobre a
mesa –
na primeira linha lemos:
«o Rosto do vento do este»
e abaixo desta: «um romance
impossível».
11
Ao cair da noite, as ruas são estriadas
pelos reclames em néon, negro
bailado de ideogramas: uma loura
holandesa,
numa cave bruxuleante, expõe os
seus transpirados seios
aos turistas japoneses; uma jovem
filipina faz o mesmo
para marinheiros ianques
empanturrados de cerveja;
enquanto um bisonho e
mastodôntico homem de negócios britânico
se deixa escoltar por uma grácil,
mínima e tímida jovem de Hong-Kong
12
Um cinema em Kowloon:
no átrio, laranjas descascadas às
carradas,
castanhas que fumegam ao ritmo do
abanador;
um chiqueiro de miúdos, asas e
pés de frango –
na imensa sala
o vizinho fuma como um danado e
cospe no chão
enquanto os ossos se quebram e o
sangue jorra
e as heroínas gemem no écran
gigante
13
No seu apartamento, num décimo
andar
dos arrabaldes -
esteiras atapetam o chão, à
japonesa,
mas num canto vê-se um pi-pa chinês -
Christopher Cheung
(«não sou um artista, eu sou um
ser humano»)
serve-se de um copo de maotai
e sonha com Kyoto
14
No bar, perto das duas horas da
manhã, hora de fecho:
Oscar Eberfeld, 46 anos,
celibatário,
gala sem esperanças
a baixa empregada de saia fendida
ou segue às vezes uma mulher no
passeio
colando os olhos à linha dos
slips sob as calças,
depois regressa ao seu quarto,
inconsolável
com o seu magazine ilustrado
15
Lá em cima em Aberdeen
um rato lambareiro esgueira-se
para o buraco
sob as pranchas de um restaurante
do cais
os últimos jogadores bocejam e
cospem,
num relance aos rebocadores que reentram
no porto, silentes,
enquanto dois juncos maciços, a
popa alta,
lavram as águas sombrias da noite
farejando a rota dos antigos
lugares de pesca.
Sem comentários:
Enviar um comentário