Primeiro sketche da peça Pregos Mudos, Gritos Furados, com que me apetece voltar ao teatro:
DOIS
AMIGOS
Dois
amigos dão passas num charro, sentados de costas um para o outro, e contam
histórias de vida
AMIGO
Brada,
onde nasceste?
AMIGO
2
Nascer?
Nascer, como?
AMIGO
Que a
xoxota da tua velha te pariu, já eu sei… mas onde?
AMIGO
2
Na
minha terra chamamos-lhe chibiu…
AMIGO
(rindo)
Chibiu?
Porque não take – away? (pausa)
Mas
ainda não me respondeste à primeira pergunta…
AMIGO
2
Até
onde… é que tu me deixas nascer?
AMIGO
Foda-se,
sei lá! Do Japão não és…
AMIGO
2
Não
sou um japonês chapado?
AMIGO
Era
mais fácil seres um iogurte de chocolate!
AMIGO
2
Queres
dizer que há mais parecenças entre um preto e um iogurte de chocolate que entre
um preto e um japonês?
AMIGO
Ya…
AMIGO
2
É o
que gosto nos homens, sempre me surpreendem!
Comigo
foi simples, foi um descuidamento…
AMIGO
Descuidamento?
AMIGO
2
Um
descuidamento no buraco…A minha mãe deixou-me cair…
AMIGO
(divertido)
Ya,
deixou-te cair…
AMIGO
2
Ao
nascer… (escarnecendo consigo mesmo) Do
buraco ou dum lapso… Quem vê olhos não vê corações…
AMIGO
Que
merda é essa, um lapso? Lembra uma gravata entalada na gaveta…
AMIGO
2
Um
lapso? A tua avó tem os dentes todos?
AMIGO
Quê,
quê, quê, quê… a minha antepassada tinha tino mas faltava-lhe um dente. À
frente, estás a ver? Partiu-o a chuchar numa maçaroca…
AMIGO
2
Um
lapso é o dente que lhe faltava…
AMIGO
Isso é
um intervalo…
AMIGO
2
‘péra…Tás
a ver quando queres dizer um nome e não te sai…tá debaixo da língua e não sai?
.
AMIGO
Ya…
AMIGO
2
Isso é
um lapso…
AMIGO
Hum…
Eu acho que essa cena é uma branca!
Acho que não sabes o significado do que me queres dizer.
AMIGO
2
Uma
branca é um lapso a quem deu um lapso…
AMIGO
A
última que comi não…(o outro olha para ele, e ele também pontua olhando para o
outro) a gaja disse-me o nome, Astrid. Era uma alemã…
AMIGO
2
Salsicha
alemã, nunca tive…
AMIGO
És
gay?
AMIGO
2
Corta
essa merda… Tás cut!
AMIGO
É…
esta merda não dá moca…
AMIGO
2
Mas sabes
a melhor? Depois do descuidamento, houve o meu despeitamento…
AMIGO
Como é
que é?
AMIGO
2
Despeitamento…
não quis mamar!
AMIGO
Ah, és
um menino do biberão!
AMIGO
2
…eh!
Eu só faço o descontamento porque tu tás com a moca!
AMIGO
Qual
moca, pá? Estou cut! ESTOU CUT!
AMIGO
2
Acalma-te,
lá. man… (ficam um momento em silêncio, depois 2 diz, sonhador)
Eu, no
outro dia, tive nas mãos um saquinho da branquinha,
ai se tive, um saquinho de branquinha, com um quilo na minha mão… da branquinha.
AMIGO
Quê,
mano?
AMIGO
2
Da
branquinha… Coca da pura! Se fosse meu, comprava o MBS, com empregados e tudo!
AMIGO
Para
que é que tu querias comprar um monte de pretos?
(o
outro faz um gesto de que ele desconcerta)
AMIGO
2
Pá,
era uma cena de desmandamento, tás a ver? Tirava as gajas e deixava só as
pitas…
AMIGO
Tu, tu
não te aguentas com uma canoa pelo rabo, quanto mais uma dama…
AMIGO
2
Uma
canoa?
AMIGO
Ouvi
no Marítimo… Como é que a branquinha te veio parar à mão?
AMIGO
2
‘Tava
com uma ganda ‘bzana!... Não lembro! Só sei que estive com ela na mão…
AMIGO
Na
babalaza também me dá lapsos…
AMIGO
2
Pareces
um tuga a falar…
AMIGO
Como é
que tu dirias?
AMIGO
2
Na
babalaza também me dá lápis…
AMIGO
Lápis?
Que é que tem uma cena a ver com a outra?
AMIGO 2
O
lápis tem aquela borrachinha, na outra ponta…
AMIGO
Crazy,
man…
AMIGO
Moçambicanizar…
Ya, ouve lá, tu às damas dás piça ou piaçá?
AMIGO
2
Como’é?
AMIGO
Piaçá
é se lhe limpas o traseiro… (lamentando-se)
Esta
passa não dá moca!
AMIGO
2
Estás
cut?
AMIGO
Ya.
Seco como um bebé … ‘péra, explica lá aquela tua cena: nasceste num buraco…
AMIGO
2
Numa
gruta.
AMIGO
Numa
gruta? Não és o gajo do 666?
AMIGO
2
What?
AMIGO
Numa
gruta nasceu o Cristo. E a seguir vem o 666, o chifrudo…
AMIGO
2
O Diabas!
AMIGO
Diabas!
Pá, é masculino! O Diabo!
AMIGO
2
A
minha mãe confusionava com a minha dama, dizia, essa reles que arranjaste é um
diabo… diabo para gaja, julgava que para nós fosse diabas…
AMIGO
Ya,
faz sentido! Mas é gajo… Já viste as cataratas do Niagara?
AMIGO
2
Ya,
num calendário. É big…
AMIGO
200 m
de altura e 3 km de lado, a água da catarata cai cá em baixo com uma moca que
saltam da água bolhas onde cabia um elefante...
AMIGO
2
Ya, um
elefante é um cuspe de Deus…
AMIGO
Como
é?
AMIGO
2
E a
avestruz é uma girafa que desaprendeu de usar os talheres.
AMIGO (suspirando)
Ah, e
que pena nunca desmontar… o caracol!
AMIGO
2
Os
abismos, como a centopeia, têm mil patas…
AMIGO
(respondendo ao desafio)
Porque
foge o rato a ser mealheiro?
AMIGO
2
É do
queijo que come – esquece-se…(fica meio absorto, depois lamenta-se) ‘das
tens razão, tens razão, esta erva não dá nada…
AMIGO
Trava…
É quase a cena que deu na minha mãe quando se lhe rebentaram as águas...
AMIGO
2
Quê,
quê, quê… foi difícil parires-te?
AMIGO (desconcertado)
Bué...
AMIGO
2
Gramo
dessas novas palavras… gramo bué… Há quem diga que é um vocabulário pobre, não
concordo…
AMIGO
Why,
tell me!
AMIGO
2
Com
que é que rima bué? Com chalet!
AMIGO
Chalet?
AMIGO
2
Uma
vivenda da Sommerchield… Dantes chamavam chalet…
AMIGO
Não é?
(retomando) Comigo não houve travões, vim tão acelerado, que a minha mãe não
deu por nada… O meu pai costumava dizer, o meu puto a nascer não deu mais job
que o peido de um formigo.
AMIGO
2
Hum, o
peido de um formigo… É gaja pá, formigo é formiga…
AMIGO
O meu
pai dizia formigo…
AMIGO
2
À
minha mãe deu-lhe tanta enxaqueca...
AMIGO
Na
cena do teu parto?
AMIGO
2
Ya.
Tanta enxaqueca que a gaja conseguia ver o futuro e detectava as minas no escuro,
uma a uma. Foi assim que enriquecemos. A desminar…
AMIGO
A
minha mãe não. Quando eu nasci fizeram-me um xibuto, tás a ver?… Eu era small, tão piquenino que a minha mãe se distraía, e quando se assoava
metia-me no bolso com o lenço. Aos seis anos tinha o tamanho de uma manga do
Chicumbane...
AMIGO
2
Chi! Que
descontamento! O que é que te salvou, meu?
AMIGO
Brada,
o meu pai, aos dez anos, levou-me ao futebol, no Maxaquene.
Houve
um penalty e o gajo que o ia marcar tinha uma unha a sair da sapatilha rota.
Uma unha negra e rija. E deu e biqueirão tão torto que o esférico me acertou na
mona e fiquei em coma. Quando acordei o meu pescoço tinha crescido dez
centímetros.
AMIGO 2
Ya,
‘tou a ver. Eu aos dez anos era tão alto e espadaúdo e era tão ruivo que o meu
pai me costumava chamar o isqueiro de Deus.
AMIGO
Estou
a ver… o isqueiro de Deus.
AMIGO
2
Tas a
ver? Era ruivo, meu… saía-me uma chama pelo toutiço.
AMIGO (Mete-se
em pé, de costas para o público e urina junto às costas do outro)
Ya, o que
te vale, é que sou bombeiro…
O
outro alvoroça-se.
AMIGO 2
Eh!
Que emerdamento é esse!
AMIGO
Quê,
quê, quê, quê, ‘tou só a abaná-la… (acaba o serviço, fecha o zip, vira-se,
muda de assunto, ri, para desconcerto do outro) A cena que me veio à tola…
Nem dá para acreditar, meu… Em chavalito apanhei um padre a dar hóstias a um
burro. Fui às traseiras da igreja, para apanhar um coco, havia lá um coqueiro
big, e apanhei o man naquela cena... era às mãos cheias...
AMIGO 2
Chi...
E ele viu-te?
AMIGO
O man
‘tava muita buzana. Apontou-me o dedo e disse-me, as “pipocas de Deus”... é um
bem para todos...
AMIGO 2
Ya, é
uma trip. Mas o que eu vi hoje no autocarro é brutal…
AMIGO
Tell
me…
AMIGO 2
O
homem estava encostado à janela, ao meu lado, no banco dos palermas, lá ao
fundo, tás a ver…Cá num afundamento, tás a ver?
AMIGO
Ya…
AMIGO 2
Pôs-se
a escrever uma mensagem no telemóvel… com um speed… mas com um speed… só que o
man não tinha dedos…
AMIGO
Como é que ele fazia? Com a língua?
Como é que ele fazia? Com a língua?
AMIGO 2
Com os
cotos dos dedos… Crazy, o gajo tinha os dedos arrancados até à palma… o telelé estava
no pulso e com aqueles cotos, aquilo nem chegavam a ter meio centímetro, mas
com um speed… O man acabou a mensagem e colocou o cel no bolso das calças, com
as duas mãos a fazerem de alicate. Fiquei muita maluco…
AMIGO
Pensa no gajo a lamber um selo...
AMIGO
Pensa no gajo a lamber um selo...
AMIGO
2
Que
cena… Baba o coto direito, pisa o selo pela face, e faz um movimento de
mata-borrão, o selo agarra-se; depois lambe-o na cola e pisa-o contra o
envelope. A cola fixa o selo. Que cena…Brada, mas e se ele for canhoto?
AMIGO
Sem
dedos não há canhotos. Os dois cotos têm de se unir para tudo, pra pegar no
espeto da cozinha, (mima) para apalpar as mamas da mulher dançam juntos…
AMIGO
2
O
tango.
AMIGO
É
isso… têm de ser um para pegar num chicote. Já viste a cena, um maneta como
domador de leões… Um maneta? (reforça) Brada, um ambimaneta como domador de
leões… Era a fortuna. Em vez de meter a cabeça dentro do leão, man… o gajo
começa a sua actuação no escuro, acende-se a luz sobre o tronco dele e a cabeça
do leão e ele tá com as duas mãos presas na boca do leão, e o gajo nem reage,
estás a ver, o público muita marado e o gajo cool, easy, a cantarolar (canta)
ó naniná, ó nániná…o gajo muita tranquilo. Debate-se como um mímico para
tirar as duas mãos lá de dentro e quando as tira vem sem elas, o leão comeu-as,
mas traz o chicote preso nos cotos. O chicote que ele saca da boca do leão...
AMIGO
2
Uau!
Que cena, o circo vinha abaixo…
AMIGO (entusiasmado)
Um
ambimaneta a pilotar uma avioneta…
AMIGO
2
Quê,
quê, quê, quê… Só não tou a ver como é que o gajo pode comer torradas… man. ‘péra
lá, olha a cena, o man equilibra torrada no pulso, como o cel, mas… mas… (volta
a dúvida) se lhe mete os dentes como tira depois a torrada da boca sem sujar o
outro coto de manteiga? E a fruta? A fruta tem de lhe ser dada descascada…
AMIGO (mimando)
Amendoins…
o bacano mete um garfo com o cabo de fora da mesa e o amendoim naquela
barriguinha dos dentes do garfo, e dá uma pancada no cabo… e o amendoim lhe pula e dá três mortais com pirueta
antes de lhe entrar na boca…
AMIGO
2
Ya, é
pena esta erva não dar moca…
AMIGO
Brada,
sabes do que é? Tu tens um ganda desmiolamento….
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xoxota e chibiu - a vagina
MBS - o maior centro comercial de Maputo
babalaza - ressaca
Sommerchield - o bairro rico de Maputo
xibuto - feitiço, bruxedo
xibuto - feitiço, bruxedo
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