sexta-feira, 19 de setembro de 2014

DOZE NOTAS SOBRE A DIGNIDADE / 1

roberto matta




 Os aborígenes australianos cantam o seu território para o trazer à existência, para o actualizar.
Isto é espantoso, mas é menos incomum do que se pensa. Os deuses gregos, por exemplo, precisavam da certificação humana para  garantirem o equilíbrio cósmico. Em faltando a libação, o rito, a celebração, reiterada com o ritmo de um metrônomo, eles ficavam irados, entre outros motivos por temerem uma perda de energia.
Só em se actualizando a dependência dos homens ao trato com os deuses ficava o mundo coerente, abobadado; era através do seu culto que se emprestava ao mundo a sua sintaxe e o ritmo. Daí que, à mínima falta, os deuses, como castigo, abrissem buracos no ozono.
O significado original de “hybris” prendia-se em primeiro lugar com a desmedida e depois com o receio de que essa perda de qualquer sentido de proporcionalidade, corolariamente, arrastasse consigo uma natural oscilação no trânsito da reciprocidade. O imperador Xerxes quando manda açoitar o mar está já neste estado delirante de um crónico desequilibro do sentido da mutualidade.
Está “doudo”, diziam os gregos.  
Também em África, na sua feição tradicional, ainda hoje é assim, e muitas doenças são encaradas como protestos dos espíritos a quem não se fez o devido tributo, sendo necessário voltar a uma regulação das relações mútuas entre a comunidade e os seus antepassados, a um equilíbrio.
Equilíbrio que, no meu entender, será o mesmo que Martin Buber evoca ao escrever: «Não conheço outra revelação para além da do encontro do divino e do humano, no que o humano colabora com a mesma medida do divino. O divino aparenta-se a um fogo que derrete o mineral humano. Mas o que resulta daí não é algo que estivesse na natureza do fogo.»
Portanto, acrescentamos, esta relação com o divino devolve ao homem a sua dignidade, o seu lugar na equação como agente de mudança. Deus é o incognoscível que se desconhece a si mesmo e o homem, no seu despertar, para uma vida em re-ligação, actua como o operador da anamnese de Deus.
Esta parece-me ser um relação frutuosa e saudável com a dimensão do divino. Deus pode ser o equivalente ao nosso território, mas nós temos de o cantar.
Muito diferente esta relação com o sagrado daquela que é comungada pelos radicais islâmicos, duma verticalidade que não admite senão a obediência ou a paradoxal recompensa (70 virgens no Paraíso) pelo Mal feito.

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