Se
nós, como acredito, somos a cada nova ocasião o sulco do que diferimos de
ontem, imagine-se os equívocos a que pode levar a menor pegada que deixámos.
Suspeito
que a forma como acabei o segundo texto desta série pode desencadear leituras
erróneas.
Devolver
a morte à morte não significa “dessimbolizá-la”, mas antes desobstrui-la,
aliviá-la do espesso manto de imagens que
a soterram num ritmo que não é o seu, duma “evidência” que não lhe pertence.
Devolver
a opacidade à morte, repõe uma experiência única e singular que só cada um, a
conta-gotas, confirma.
Séneca
relata, em A Brevidade da Vida, o estado
de exaltação daquele condenado à morte que espera na fila a sua vez de ser
decapitado e que em vez de estar, como os outros, tolhido por antecipação, se
adianta sempre à frente para ver melhor o que se passa com os seus companheiros
de infortúnio, mostrando uma curiosidade tão doentia como inapropriada. E um deles
interpela-o, a quem ele responde, “Não
sei o que temem. Eu estou curiosíssimo em saber o que há para além da morte e
se esforçar suficientemente a atenção estou certo de que surpreenderei o fluido
da alma a sair do pescoço cortado”.
Eis um
modo grotesco de transformar uma suposta serenidade pessoal numa incapacidade
de empatia, sinónima de uma auto-ilusão que merece o gume do machado.
Também
Robespierre mereceu o gume da lâmina (depois de ter inventado a guilhotina
Robespierre assistiu, fascinado, a acima de trinta mil execuções, antes de ser
testemunha da sua), neste caso por corresponder a sua à obsessão do encenador
que deseja substituir-se ao actor, após milhentas actuações sempre imperfeitas - o
que finalmente lhe calhou.
O terror
que imprimiu foi o da serialização da
morte (compreendida a guilhotina como o primeiro fotograma duma reprodução
industrial), num ritmo que impôs por decreto.
Himmler,
por seu turno, assistiu a uma execução maciça de camponeses e judeus russos em
Smolensky e sentiu náuseas desde a primeira salva de disparos, a ponto de se
ter de retirar. Foi já à distância necessária, no quartel, que escreveu cartas
de agradecimentos aos seus homens pelo seu abnegado sentido do dever. A “inecessidade” das cartas revela o vómito
que sentiu face à esquizofrenia do comportamento próprio à guerra, numa espécie
de arrependimento mitigado carta a carta, pois apesar de ser um guerreiro,
sentiu a execução como um esforço de
letalidade não natural. Himmler acusou, psicologicamente, o peso do irracionalismo
que perpetrava. Embora possamos dizer: merda para as dores psicológicas de
Himmler… o mal ainda tinha um nome, um rosto.
Agora
com esta nova investida do Estado Islâmico, que provoca em dois dias mais um
êxodo de cem mil pessoas, o horror faz-se em nome de uma abstracção, sendo Alá assumido
como essa máscara irracional que dá álibi à cobardia. Pois se, como sustentava
Tucídedes, todos os dia somos confrontados com o dilema de escolher entre a vontade
de descansar e os trabalhos que dá a liberdade, estes jovens “islâmicos”
encaram Alá e a violência como luxuosas almofadadas.
O que
importa é que esta nova investida do horror coloca as suas vítimas diante de um
dos mais poderosos marcadores do tempo, o medo. O medo encharca o horizonte de “stress”,
e onde este se instala desencadeia-se uma dupla morte: a física e a que
potencia o domínio dos marcadores do
tempo, ao constranger o refém a um único campo de visão.
No
oposto, lemos em Wittgenstein um parágrafo inesquecível. No Tratactus, diz-se assim: “A
morte não é um evento da vida. Não se vive a morte. Se se entende por
eternidade não a duração interminável do tempo, mas sim a atemporalidade, então
vive eternamente aquele que vive o presente. A nossa vida é tão sem fim como
ilimitado é o nosso campo de visão.”
A
morte só é aceitável se for antecipada por uma realidade atemporal mediata. Esse
experimentado abandono do tempo é,
com certeza, uma das últimas tangibilidades exaltantes que nos “consolam” da
morte.
De
modo contrário, a morte não passa de um “mal-estar” que se inocula e apodera,
martelando-nos como um dor irredimível.
Faz
parte da dignidade da nossa morte aceder ao expandido campo de possibilidade a
que Wittgenstein alude: uma espécie de ociosidade do tempo que sai
voluntariamente dos seus eixos.
Eis
então a morte e a vida concebidas como dois irmãos gémeos que se desconhecem,
duas faces de uma mesma moeda cega à sua sombra. O que pressupõe que o mundo “real”
só ali se manifesta onde as nossas construções fracassam, reduzindo o campo de visão.
Daí
que me agrade muito uma ideia de Einstein que ainda hoje poderemos considerar
revolucionária: para Einstein, no mundo físico, não existe simultaneidade
alguma sem um observador que a crie.
Essa
simultaneidade é a que nós podemos criar numa dimensão trágica em que a vida e
a morte coabitam num palco onde se confirmam mutuamente, com o decoro e o
respeito que gera o reconhecimento do outro - havendo embora um momento em que
nos devemos retirar nos bastidores para morrer, navegando brevemente noutro (expandido)
leito do tempo.
O
terror acontece não só quando arbitrariamente alastra a violência no reduto da
infância como quando o domínio desta violência cega se impõe como exclusivo
marcador do tempo.
Eu
quero viver a minha “pequena eternidade”, não consinto que ma roubam, e creio
que a própria morte, sem este paliativo, se sentirá ultrajada.
Suponho
que a minha ideia de deserto é muito distinta da dos lacraus que por lá se
movimentam.
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