domingo, 21 de setembro de 2014

DOZE NOTAS SOBRE A DIGNIDADE / 3



Se nós, como acredito, somos a cada nova ocasião o sulco do que diferimos de ontem, imagine-se os equívocos a que pode levar a menor pegada que deixámos.
Suspeito que a forma como acabei o segundo texto desta série pode desencadear leituras erróneas.
Devolver a morte à morte não significa “dessimbolizá-la”, mas antes desobstrui-la, aliviá-la do espesso manto de imagens que a soterram num ritmo que não é o seu, duma “evidência” que não lhe pertence.
Devolver a opacidade à morte, repõe uma experiência única e singular que só cada um, a conta-gotas, confirma.
Séneca relata, em A Brevidade da Vida, o estado de exaltação daquele condenado à morte que espera na fila a sua vez de ser decapitado e que em vez de estar, como os outros, tolhido por antecipação, se adianta sempre à frente para ver melhor o que se passa com os seus companheiros de infortúnio, mostrando uma curiosidade tão doentia como inapropriada. E um deles interpela-o, a quem ele responde, “Não sei o que temem. Eu estou curiosíssimo em saber o que há para além da morte e se esforçar suficientemente a atenção estou certo de que surpreenderei o fluido da alma a sair do pescoço cortado”.
Eis um modo grotesco de transformar uma suposta serenidade pessoal numa incapacidade de empatia, sinónima de uma auto-ilusão que merece o gume do machado.
Também Robespierre mereceu o gume da lâmina (depois de ter inventado a guilhotina Robespierre assistiu, fascinado, a acima de trinta mil execuções, antes de ser testemunha da sua), neste caso por corresponder a sua à obsessão do encenador que deseja substituir-se ao actor, após milhentas actuações sempre imperfeitas - o que finalmente lhe calhou.
O terror que imprimiu foi o da serialização da morte (compreendida a guilhotina como o primeiro fotograma duma reprodução industrial), num ritmo que impôs por decreto.
Himmler, por seu turno, assistiu a uma execução maciça de camponeses e judeus russos em Smolensky e sentiu náuseas desde a primeira salva de disparos, a ponto de se ter de retirar. Foi já à distância necessária, no quartel, que escreveu cartas de agradecimentos aos seus homens pelo seu abnegado sentido do dever.  A “inecessidade” das cartas revela o vómito que sentiu face à esquizofrenia do comportamento próprio à guerra, numa espécie de arrependimento mitigado carta a carta, pois apesar de ser um guerreiro, sentiu a execução como um esforço de letalidade não natural. Himmler acusou, psicologicamente, o peso do irracionalismo que perpetrava. Embora possamos dizer: merda para as dores psicológicas de Himmler… o mal ainda tinha um nome, um rosto.
Agora com esta nova investida do Estado Islâmico, que provoca em dois dias mais um êxodo de cem mil pessoas, o horror faz-se em nome de uma abstracção, sendo Alá assumido como essa máscara irracional que dá álibi à cobardia. Pois se, como sustentava Tucídedes, todos os dia somos confrontados com o dilema de escolher entre a vontade de descansar e os trabalhos que dá a liberdade, estes jovens “islâmicos” encaram Alá e a violência como luxuosas almofadadas.
O que importa é que esta nova investida do horror coloca as suas vítimas diante de um dos mais poderosos marcadores do tempo, o medo. O medo encharca o horizonte de “stress”, e onde este se instala desencadeia-se uma dupla morte: a física e a que potencia o domínio dos marcadores do tempo, ao constranger o refém a um único campo de visão.
No oposto, lemos em Wittgenstein um parágrafo inesquecível. No Tratactus, diz-se assim: “A morte não é um evento da vida. Não se vive a morte. Se se entende por eternidade não a duração interminável do tempo, mas sim a atemporalidade, então vive eternamente aquele que vive o presente. A nossa vida é tão sem fim como ilimitado é o nosso campo de visão.
A morte só é aceitável se for antecipada por uma realidade atemporal mediata. Esse experimentado abandono do tempo é, com certeza, uma das últimas tangibilidades exaltantes que nos “consolam” da morte.
De modo contrário, a morte não passa de um “mal-estar” que se inocula e apodera, martelando-nos como um dor irredimível.
Faz parte da dignidade da nossa morte aceder ao expandido campo de possibilidade a que Wittgenstein alude: uma espécie de ociosidade do tempo que sai voluntariamente dos seus eixos.
Eis então a morte e a vida concebidas como dois irmãos gémeos que se desconhecem, duas faces de uma mesma moeda cega à sua sombra. O que pressupõe que o mundo “real” só ali se manifesta onde as nossas construções fracassam, reduzindo o campo de visão.
Daí que me agrade muito uma ideia de Einstein que ainda hoje poderemos considerar revolucionária: para Einstein, no mundo físico, não existe simultaneidade alguma sem um observador que a crie.
Essa simultaneidade é a que nós podemos criar numa dimensão trágica em que a vida e a morte coabitam num palco onde se confirmam mutuamente, com o decoro e o respeito que gera o reconhecimento do outro - havendo embora um momento em que nos devemos retirar nos bastidores para morrer, navegando brevemente noutro (expandido) leito do tempo.
O terror acontece não só quando arbitrariamente alastra a violência no reduto da infância como quando o domínio desta violência cega se impõe como exclusivo marcador do tempo.
Eu quero viver a minha “pequena eternidade”, não consinto que ma roubam, e creio que a própria morte, sem este paliativo, se sentirá ultrajada.
Suponho que a minha ideia de deserto é muito distinta da dos lacraus que por lá se movimentam.

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