Com insistência se propõe – Holderlin, Baudelaire,
Eluard, Gonzalo Rojas, Adonis ou Bachelard, por exemplo – que a pátria do poeta
é a sua infância. E que os nossos devaneios infantis se reactualizam na poesia.
No meu caso, tenho as maiores dúvidas, da infância só aproveitei o mecanismo, o
devaneio de criança isolada, ao ponto de se ter tornado quase um tique com
contornos patológicos, mas sou pouco saudoso da infância.
Esse meu estádio de vida foi completamente saturado de burburinhos e acontecimentos, no seio de uma família intranquila, eivada de desequilíbrios
relacionais e de muitas instabilidades na pauta emotiva, e isso, que me deu
um volume de “informações” a granel que levei décadas a processar e converter
em algo potável, arrastava-me num estado de estupor prolongado que não me foi
nada favorável.
Descobri a literatura como um instrumento para a
resiliência, como o outro lado do espelho. Por isso dediquei cinco anos da
minha vida e dois livros a reinventar a infância, mas senti-la como a minha
pátria é uma descarga que não me cabe.
O comum das infâncias é carenciado, falho disto ou
daquilo, sacudido por medos, espectativas e traumas, e lança a criança num
sentimento de incompletude inevitável, mas ver na arte ou na poesia uma sua
projecção simétrica implica esquecer que, no trajecto, essa “vivência de
mutilações” conheceu conversões e transformações, e que o adulto é já uma liga
onde as reversões da memória geraram um novo impulso que nem sempre coincide
com uma re-actualização do vivido.
Há, contudo, uma tese de Bachelard que me agrada, quando
ele escreve, “A solidão do menino é mais secreta que a solidão do homem… e o
menino sonhador conhece o devaneio
cósmico, o que nos une ao mundo…”. Gosto muito desta ideia do devaneio
cósmico, que eu leio como uma transpessoalidade, embora seja redutor assumi-la
como uma reminiscência da infância… Se o primeiro contacto com tal “estado de
abertura” da percepção pode, de facto, suceder-se na infância, porém, quando
ela se repete no homem, e este tem a felicidade, rara, de viver um igual
sentimento de indivisibilidade, vê convergirem na sua consciência um feixe de
unidades de muito maior amplitude - na mesma proporção com que uma asfixia
momentânea se separa do primeiro golfo de ar.
Ou seja, não localizo na infância, nem qualquer pátria,
nem qualquer paraíso perdido.
Para o chileno Gonzalo Rojas o exercício poético não se funda tanto
num projecto de invenção como num mecanismo de resgate, ideia estimável mas a verdade está no meio, como o sabia
Baudelaire, para quem uma obra devia ser feita de metade de novidade e de
metade de eternidade (isto é, de tradição – um coisa no oposto de ser
“tradicional”), radicando então a originalidade na morfologia da sua capacidade
combinatória.
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