quadro de t`apies
O texto de Luís Carlos Patraquim, na apresentação de Bagagem Nao Reclamada, no I. Camões, Maputo, 29 Abril 2014:
Já que o
corpo te rouba os últimos suspiros
Recusa
levar o poema pela trela.
A
Cabrita, Bagagem não Reclamada
Esta citação de António
Cabrita vem em a Fotogenia de Sísifo, que integra o livro que nos traz aqui,
Bagagem não Reclamada. Aliás, cada uma das partes que o compõem, e são várias,
ele há Elegias, A Minha Noite com Caliban, Quatro Bardamerdas e uma Homenagem,
O Poema em Quarentena, Releitura de Íon – digamos que as sequências maiores –
davam, se o poeta quisesse, livros outros.
António Cabritar resolveu, ao
contrário de Pessoa que teve sempre a maior das dificuldades em arrumar a mala,
juntar a trouxa, dar-lhe o nó. No prefácio que escreve para esta Bagagem não
Reclamada, o autor desculpa-se com o soneto, essa forma clássica, codificada,
esotérica para alguns. É caso para dizer que, neste particular, é melhor o
soneto do que a emenda. Já que estamos entre amigos e começou a ventania da
estação seca, com muita poeira a infiltrar-se nas palavras (elas têm brônquios,
linfa, sangue e, por causo disso, tossem, cancerizam-se, as coitadas, ou
desregram-se em menstruações e hemorragias) é curioso este despautério prefacial.
Comparável, só Jorge de Sena, que se escusava a delegar a terceiros o que
achava dever escrever sobre os seus livros.
Diz-nos o António – mas o
poeta é um fingidor – que andava a organizar uma antologia e que se deu conta
do soneto. Era “um veio subterrâneo” na sua “obra poética”. As palavras são
dele e a tal antologia iria chamar-se Enumeração de Todos os Passos em Falso.
De Petrarca a Sá de Miranda, de Shakespeare a Camões e Bocage e Antero de
Quental aos franceses do alexandrino verso, o soneto é o cabo dos trabalhos.
Diz o poeta que levou trinta anos a socar o saco dos sonetos, a chegar a eles.
Acrescento que, nesse longo entretanto, as itinerâncias do autor e do sujeito
poético foram intensas.
Do “Reino Cadaveroso”, como
designou Ribeiro Sanches ao seu Portugal de setecentos e Sena virá a glosar na
centúria que passou, à Pérola do Índico , onde o cidadão António Cabrita chegou
para continuar a subir espaldares – Pearl, em inglês, é nome de girls sem orquídeas sangrentas -a bagagem
deste viajante, ao contrário de Saramago, que a reclamou sempre, dá-nos,
afinal, a tal enumeração de todos os passos em falso que o autor optara por não
publicar.
O que tenciono dizer com
isto? Se lhe conhecesse a saliência das omoplatas dava-lhe já, na devida
proporção, uns escaldaços de admiração e de amizade. Mas deixo isso para as
bodegas onde nos perdemos à tona da espuma convulsionada.
`A maneira de Apollinaire, sem
ostentação, António Cabrita traz a cabeça trepanada. A viagem é longa, Ítaca longe, chegar lá não é uma
solução e os Cantos da Inocência e as visões de William Blake, prefigurando um
romantismo que chegará mais tarde, já não salvam. Nada salva. A pós-modernidade
é a rosa estilhaçada. A épica acabou. O Anjo da História, de Walter Benjamin, é
um Janus bifronte. Como disse alguém, Cabrita sabe que a poesia ensina a cair. Como
não sou pretensioso nem quero cair em clichés, limito-me, por freudiano lapso,
a só repetir a pergunta de Hölderlin, sobre a poesia e para que serve ela em
tempos de indigência. O sublime louco hínico de Tünbingen, o poeta da mais alta
torre, podia formulá-la. Mas não são os tempos todos de indigência?
Como António Cabtita sabe
disso! E como nos ludibria. Tudo porque ele conhece a classificação de Platão
sobre os homens: a de que há os vivos, os mortos e os que andam no mar. O autor
de Arte Negra anda no mar. E convoca todas as vozes, a dos vivos e dos mortos e
recombina as palavras para que o corpo inclinado e sanguíneo e belo e frágil encontre
a sua casa do Ser. Sísifo e Prometeu, Ulisses e terrestre caçador de leões,
colecionador de borboletas . Por esse voo táctil que insinua a Transcendência e
as armadilhas de Deus ou dos deuses, lá anda ele, não voyeur nem turista, em
intermediações onde mergulha até aos abysmos, mapeando os caminhos
estonteando-se com deduções, abduções, elocuções, metaforizações, às vezes
escatologias, espiralações, teorizações e ejaculações. Querem saber o que é a
poesia? Não queiram. Lorca sentia, criança apavorada, relâmpago negro, como
lapidarmente escreveu Pablo Neruda, a aproximação do duende. O nosso Sebastião
Alba falava de doença Nerval arrastava a lagosta. Porque o poema é a
perturbação da evidência, como a metáfora, socorrendo-me de Paul Ricouer, é a
perturbação do nome. Mais do que enunciar o poema anuncia, intui, é o eco do
que a sistematização filosófica vai outrar em modalizações da Língua e da
Linguagem.
Julgo não me enganar se
disser que António Cabrita é um poeta trágico. Não me refiro ao sentido grego.
Não se iludam com a ironia, a fabulosa capacidade do riso, da aparente
autocomiseração ou disjunção surrealizante, a recombinação das formas poéticas,
os experimentalismos às vezes descarados, a deliberada e pouco
convencionalmente enunciação a raiar o escárnio ou a raiva e o riso. Porque,
como Cézanne, e trata-se de uma frase do pintor de que gosto, ela, a vida,
apavora. Num dos diálogos do filme de Bergman, Lágrimas e Suspiros, alguém
confidencia de que somos todos aleijados emocionais. O cometimento poético é
esta radicalidade, rebelando-se como pode, contra as estruturas paradigmáticas,
morfo-sintácticas, cumulativas e sequenciais da linguagem humana.
Em viagem, sempre, a iniciática,
dialogando com o mundo, invocando, evocando todas as vozes, a poesia de António
Cabrita tem, nos seus pontos luminosos, como dizia Ezra Pound, essa capacidade
de nos fazer mudar a respiração. A expressão é de Paul Celan. Ela conhece o
silêncio e o seu eco. Não citei, deliberadamente, nenhum dos poemas desta
bagagem não reclamada. Lerei, se me permitirem, dois ou três pois que tudo é
dele, mesmo que o seu desprendimento pudesse sugerir uma espécie de austeridade
de elocução.
Sobre o resto, que é muito e
diz respeito ao homem do mundo António Cabrita, não posso deixar de o saudar
pelo valioso e intensíssimo trabalho que vem desenvolvendo há tanto tempo em
Moçambique. Da escola ao ensaísmo, dos jornais ao cinema, Cabrita inscreve-se
no nervoso tecido cultural moçambicano. Não há o Outro, mas o Outro em nós. Só
quem opera reducionismos identitários se atomiza nos seus labirintos de
solidão.
Também gosto deste texto aqui, do Patraquim.
ResponderEliminar