Amanhã, na Abysmo – Rua da Horta Seca, 40, r/c, ao Camões, pelas 19h - vai ocorrer o lançamento do livro de poesia do
Paulo José Miranda, Exercícios de Humano,
com apresentação do esteta e filósofo António Castro Caeiro.
Infelizmente não estarei para
reeditar os nossos almoços intermináveis no Palmeiras, da Baixa, onde sob a ventilação das ventoinhas no tecto
e a cavalo em copos de três discutíamos poesia e soluções para o mundo como se
partíssemos em gomos uma laranja. E ainda não adivinhávamos que esses parcos
sinais «tropicalistas» nos ejectariam, aos dois, para lados opostos dos
trópicos.
A poesia do Paulo é uma poesia
que faz falta, e por isso é vital não faltar amanhã. Faz falta por três motivos essenciais:
- é uma poesia elemental,
pré-socrática, em que o poeta sem pudor dialoga com as forças e as energias do
mundo, embora não do ponto de vista do sujeito mas da reminiscência;
- há nela uma pulsão elegíaca mas
que não disfarça ou teme enfrentar nem as aporias nem o Mal, devolvendo a
complexidade aos «exercícios de humano» (é este assumir das antinomias que a
torna tão urgente e intemporal);
- terceiro, o Paulo José Miranda
é um dos poucos poetas de hoje que não se contenta em fruir, e para quem a
literatura é a encarnação de um pensamento, de uma sensibilidade, e uma
interpretação do mundo, e não um mero «jogo de linguagem».
Gostava de desenvolver tudo isto
mas a minha mão fracturada não me deixa agir com o fôlego que ele merecia.
Fica o poema que lhe dedico e que
ontem consegui escrever no escasso intervalo da minha inactividade forçada e o
grande abraço que lhe dirijo, mais à Aurea, ao Cotrim, o editor que o resgasta
ao fim de oito anos de “exílio” e ao Caeiro, por, com a força da fidelidade, não
refrear o entusiasmo.
ELEGIA PARA O PAULO JOSÉ MIRANDA,
DO SEU AMIGO EM FRACTURA
A alegria de conseguir escrever
em letras
minúsculas
que não pesem na mão
como pequenos ladrilhos
que a luz atravessa
obliquamente
mas deixando entrever o licorne
- numa incidência que se presta
ao
diálogo,
mais do que à representação –,
a surpresa de poder
escrever sem dor,
só mudando de escala,
e com a leveza inicial do tigre
que tropeça em todas as sílabas
que encontra,
cego ainda ao ensimesmado,
solitário,
engalfinhamento carnívoro,
faz-me voltar ao verso.
Nós sabemos que não há inocência
mas é sobre a sua pressão
indefraudável
que acabamos por acatar «a
esperança
de que bons e não maus espíritos
nos tenham como instrumento».
Não mais do que isto
é a depuração do estilo,
o lento armistício
de que somos o sinal.
Suportar o mal, entronizá-lo
como estrume,
para extraviá-lo num máximo de
pétalas
de heliotrópios por metro
quadrado
de retinas,
eis a epifania que fazemos por
merecer,
- passar entre a luz e o vidro
sem deixar resíduos
tóxicos.
O resto é o simultâneo
que nos brota da fronte como
raízes
onde toda a veia se desanda
e o estio respira
à chuva.
E que o desejo nos enterre
nessa terra inalcançável
que o glaciar
do falo escalda.
(os versos entre « » são de Czeslaw Milosz)
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