DA CLANDESTINIDADE DO DESASSOSSEGO DAS RAPOSAS
Depois
de um longo jejum julgo ter chegada a hora de retomar o Raposas a Sul. A minha mulher diz que ando intratável desde que me
abati ao serviço do blogue e o melhor, antes que tudo se agrave, sendo eu uma
criatura de maninho âmbito familiar e extraviado para a boémia, é retomar o
barco.
A
história do Raposas é um caso de resiliência.
Bem sei que esta palavra hoje parece rebarbativa, sobretudo para quem não leu o
Cyrulnik e o seu Un Merveilleux Malheur,
onde nos é demonstrado que o espírito de resiliência é uma constante humana e
não uma grelha interpretativa epocal e sujeita às flutuações da moda.
No meu
caso isso foi claro. Em 2011 alguém da Migração moçambicana vendeu o meu DIRE a
outrém (talvez a um nigeriano, para ser parecido comigo) e fez desaparecer
todos os meus processos para se encobrir. E de repente fiquei clandestino. Mais
de um ano num doloroso brique-à-braque. Até que a coisa se resolveu. Foi um ano
de depressão em que perdi o emprego, trabalhos vários, e assisti ao desfile de
alguma pulhice humana. Para pôr a cabeça acima da água escrevi um romance e pus
o arado no Raposas a Sul. Dada a
situação, com um ímpeto simétrico ao cerco de que era vítima.
Descobri
então uma capacidade de desdobramento que depois se tornaria ancora. Ainda hoje
me espanto como, estando numa cápsula tao apertada, mantinha gestos de
astronauta e punha os braços fora da nave, para remar onde sentia que a
propulsão falhava e rumo a outras coordenadas muito distintas da angústia em
que vivia.
Poucos
souberam do meu problema porque há infernos para serem vividos com decoro e
decência, sem serem impostos aos outros. Agora já se tornou história, serão
objecto de novela.
Nos
últimos anos tenho-me repartido entre narrativas que roçam a áspera realidade
africana e outros de puro voo
conceptual, como se habitasse em Estocolmo. O recente A Paixão de João de Deus, ou o que se seguirá, o romance A Vida em Marte, esclareceram-me: é sim
possível pairar acima das circunstâncias e plantar outras paisagens no meio do
Inferno. Nem é outro o mecanismo criativo.
Há
vários motivos para retomar o Raposas,
de um modo apegado.
Primeiro,
julgo que se aproximam tempos de novas clandestinidades.
Segundo,
o mais frívolo fb não estimula o pensamento mas o slogan.
Terceiro,
favorece-me mais a disciplina a que me obriga um blogue do que a prática do
ímpeto e do improviso nas outras redes sociais, demasiado histéricas (como a
seu tempo denunciou o Henrique Fialho) e mais ajustado ao seu próprio mecanismo
do que ao ritmo descosido e desalinhado que é o meu.
E porque
continuo a gostar de estar sozinho e só gosto do convívio a espaços, ciente de
que a verdadeira partilha se dá no tempo e não no instante. E não no momento
oportuno, mas no inesperado.
Aqui,
quem quiser ler que leia, mais não se pede.
Além
disso fui acumulando notas nos cadernos que precisam de uma segunda demão e apercebo-me
de que há leitores atentos, como o Henrique Fialho (o primeiro estímulo para eu
voltar às lides) que não merecem uma hibernação tao duradoura.
Basta um leitor, um leitor atento.
Além
disso, os próximos tempos vão ser de muito trabalho e convém-me manter vivo um caderno de notas. Já dizia o
Lorca que o duende para se
manifestar precisa de um corpo. Melhor não o diria.
Vou
distribuir assim os meus trabalhos e os dias:
No Raposas edito as minhas notas
diarísticas e de leitura, e transcrevo (por norma, dois dias depois) as
crónicas semanais que escrevo para o Hoje
Macau e o Savana (- como estas
são escritas para muito diferentes territórios, Macau e Moçambique, muitas
vezes no mesmo dia, e embora eu procure evitar, é natural que aconteçam,
consoante os temas, transbordos, contágios e vazamentos de umas crónicas
noutras; nestes casos só transcreverei uma delas). Ah, e claro, as traduções,
que retomarei com gozo.
No Caliban publicarei as recensões e
outros ensaios maiores. Anúncio já recensões sobre os últimos romances do
Carlos Alberto Machado e do Manuel da Silva Ramos.
O que
mais vier à rede é sereia.
E aqui vos deixo com a crónica que saiu no Savana desta semana:
ARCA DE NOÉ 13, OS DESAFIOS RELIGIOSOS:
O que exacerba nestas decapitações, que se
notícia em Cabo Delgado, é a tremenda facilidade com que se mata. Quando se
mata não é apenas sobre o corpo que se exerce a violência, degolam-se
igualmente as representações. Decapitar é negar um rosto, desorbitando o
sentido que fazia, o diálogo que podia propor. Esta é em primeira instância uma
violência contra as representações. E em primeiro lugar contra as que o islão
alimenta de si e para si mesmo.
Por outro lado, crer que os cristãos são o
alvo é cair na ingenuidade, aqueles são o primeiro pretexto – seguir-se-ão os
outros, todos, pois esta é uma cruzada da morte e a morte vicia-se na
crueldade.
A cruzada religiosa é uma máscara. De que, eis
a primeira questão.
Imagino os jovens de Cabo Delgado que neste
momento se sentem inermes no meio de monstros que os cercam. O nazismo fazia às
escondidas, nos campos de concentração, o que estes radicais fazem às claras,
se possível com publicidade, emprestando um intratável decoro aos crimes
históricos. O que espanta- a história dos homens e das comunidades teve sempre
infelizmente este cariz- é que ocorra neste tempo.
E convém não assobiarmos para o lado. Estes
movimentos radicais só acham terreno fértil em países onde se falharam duas
coisas essenciais ao desenvolvimento: a educação e o aplainamento de extremados
e indesejáveis desequilíbrios sociais. Ou seja, em terreno, onde o poder se
exerce à antiga: com cinismo e como discricionária vontade de alguns, e não
como fruto natural do governo se exercer apenas como um facilitador que torna
operativas as mediações sociais.
Falo evidentemente das condições propícias
para a escalada, e da facilidade com que estes movimentos se implantam no
terreno, pois as metástases do mal estão espalhadas globalmente e há
indeclináveis pontos de contacto subterrâneo entre o actual fechamento da
Europa aos refugiados e estes viveiros latentes de novos focos terroristas que
se estabelecem a sul.
Estamos globalmente lixados, embora uns mais
do que os outros - os do Sul.
Entretanto, quem há dez anos se ria da
estultícia programática do Boko Haram tem de admitir hoje, ainda que tolos
continuem, que dominam metade da Nigéria. Até pela razão mais simples, que as
autoridades, arrogantes, nunca levam em conta: a anomia propaga-se de forma
mais fácil e rápida do que a ordem, que exige gerações.
Por outro lado, não sei se - como sugeria
Amade Camal na semana passada, na entrevista a este jornal- se se poderá dizer taxativamente
que estes terroristas não seguem princípios residualmente islâmicos, ou se o
empresário não quis desviar o pensamento de uma ferida.
Já o poeta
sírio Adonis (1930), educado no Islamismo, no abrasivo Violence et Islam (Seuil,
Dec. de 2015), um livro de entrevistas, não tem dúvidas sobre o carácter ferino
do islão, e denuncia a sua violência genética e o seu estado de falência.
Citando os textos dos Hadiths, do Corão, dos Sutras, e “saturando-nos” com a
sua autoridade de um homem de dentro, Adonis zurze quase
envergonhadamente por ver a “sua” civilização de quinze séculos definhar na
pulsão degenerativa do Daesh – um caso, diz, de “arteriosclerose” religiosa.
Neste livro,
previna-se, não encontramos um ajuste de contas mas um homem que ama as “fontes
vivas” da cultura de onde emergiu – e que lhe alimentou dezenas de livros – mas
que ama igualmente a verdade e que decepcionado, faz uma análise da malograda
Primavera Árabe, diagnosticando um final triste para a cultura que sempre
almejou dignificar:
«O homem
que se pensa mais vigoroso do que a morte – porque se imagina a piquenicar
agradavelmente no paraíso – pratica a barbárie sem medo ou sentimento de
culpabilidade. Ele simplesmente está separado da natureza e da cultura. Vejo no
Daesh o fim do Islão. Ē um seu prolongamento, certo; sendo igualmente o seu fim. Actualmente,
sobre o plano intelectual o Islão não tem nada a dizer. Nem élan, nem visão para mudar o
mundo, nem pensamento, nem arte, nem ciência. Esta repetição é o próprio signo
do fim. (…) O Daesh não oferece uma nova leitura do Islão ou a construção de
uma nova cultura ou de uma nova civilização. Antes é o encerramento, a
ignorância, o ódio do saber, o ódio do humano e da liberdade. E é um fim
humilhante!»
Evidentemente
que, como um homem de bem, e não como um tolo iconoclasta, Adonis não confunde
a fé dos seus membros com o anquilosamento estrutural das instituições.
Mas acusa
noutra passagem:
«O Islão
matou a poesia. Este assassinato, com efeito, é igualmente o da subjectividade,
representa o detrimento do indivíduo e da sua experiência de vida em proveito
da crença comum, a da Oumma (a comunidade). O Islão rejeitou que a poesia fosse um
conhecimento e uma demanda da verdade. Ele baniu-a e condenou-a. Ora, a poesia
perde todo o sentido se não for exactamente uma busca da verdade. Posso mesmo
dizer que a poesia é uma desmontagem e um desmantelamento da religião, tanto na
sua crença como no seu conhecimento. Ademais, é a poesia que diz a verdade. (…)
Do ponto de vista poético, a religião é um duplo niilismo: dado que é uma
destruição da beleza da existência sobre a terra, querendo-a substituir por um
enchimento infinito de lendas em torno do paraíso. A poesia tem a vantagem de
afrontar directamente a divindade sem se transformar numa outra religião. Ela
rechaça a ideologia. Como a mitologia, antes questiona e abre e desdobra
horizontes infinitos para a busca.»
Saliente-se:
este não é o livro de um ressabiado mas apenas o de um homem que à submissão prefere
a inquirição e que não receia ferir-se no acto de abordar a verdade.
Não será
Adonis abusivamente generalista. metendo debaixo da mesma redoma salafitas e
wahabitas e as demais correntes do Islão, moderadas? Suspeito que sim.
O que
não invalida o incómodo de se verificar que nas últimas décadas o incremento do
islão tem tido a sombra dos petrodólares sauditas, de
feição wahabita, e que, com a multiplicação das mesquitas e madrassas financiadas por essa via, as
expressões radicais se multiplicaram. Na Ilha de Moçambique, um pequeno
exemplo, já há sinais de intolerância religiosa entre as diversas confissões
religiosas, tensão que não existia.
Como recorda Bernard Lewis, o maior historiador recente sobre
o Médio Oriente, “O ramo wahabista do islão é muito fanático, até o ponto de
ser absolutamente intolerante, mas controla os lugares santos do islão, Meca e
Medina, o que o dota de um enorme prestígio no mundo muçulmano.» É de descurar, esta observação?
Imaginemos, agora para me servir de uma analogia
que faz o historiador, que o Ku Klux Klan chegasse ao controle absoluto do
Vaticano (ele fala do Texas, por causa do petróleo) e tivesse à sua disposição
os meios de propaganda da Igreja Católica para fazer proselitismo da sua muito
peculiar interpretação do cristianismo. Então teríamos um equivalente
aproximado do que sucedeu no mundo islâmico moderno.
O que
agora nos é dado a ver não é a evolução natural do islão, mas sim o resultado
de décadas de radicalismo alimentado pelos sauditas. O
que acabou por ficar descontrolado.
Saber se os assassinos de Cabo Delgado são
muçulmanos ou se a falsa reivindicação é apenas um álibi não esmorece uma
questão co-lateral: que imagem quer hoje o islão dar de si mesmo? Esta mesma
questão, aliás, coloca-se às três religiões do Livro, hoje em crise, mas,
enfim, estes crimes são reivindicados por supostos salafitas.
Será
um enorme equívoco ou um engodo, mas o caos está instalado e entronca na
questão de se saber como reverter décadas de radicalismo generosamente
financiado. Julgo que esta operação só poderá preceder do próprio mundo
islâmico. Este é o maior desafio que se coloca hoje à nação islâmica e ao seu
tecido intelectual. Contrariar o diagnóstico de Adonis parece-me uma nobre
missão.
Ó, Cabrita, que bom voltares aqui. Cá estou, para te ler, como há muito o faço.
ResponderEliminarFixe.
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