o local onde começou a insomnia, há dois anos
PLANETA DA
INSÓNIA/ 1
Lá fora,
adivinha-se, o vento
espumeja nos
jacarandás,
refracta a alba,
na leve ondulação
dos reposteiros,
luz que alastra o couro
aos sapatos, de
novo castanhos,
à capa do livro
que caiu ao chão,
enquanto a alma,
em atraso
torna agridoce a
mostarda do sol.
Morre em carne
viva, a noite,
e as palavras
sonâmbulas,
dissipam-se como
a chuva –
desmemoriadas e preliminares.
PLANETA DA
INSÓNIA / 2
Neste corpo só a
letra é pública.
E tem na voz o
seu endereço,
sobretudo em
calando.
Imprimo no
branco o camaleão.
Perdeu-se para
sempre o jogador
que, vendo girar
a roleta, ficou absorto?
Assim começaria
o meu poema
mas as
metáforas, até as cabalísticas,
têm um prazo de
validade, e distraí-me
à pesca noutros
âmbitos, na saudade
daquele azul que
o astronauta viu na Terra.
Subo a custo o
meu Himalaia.
A cada poeta o
seu. Mas não demorarei
na descida pela
encosta oposta – o cimo afi-
gura-se duma
indiferença descorçoada!
É do que padece
o camaleão:
da indiferença
de quem o vê. E
não à toa trouxe
à liça o dissimulado,
para os rongas o
bicho simboliza o infinito
e encaixa-se no
meu epílogo. Sim:
os suicidas do
sétimo circulo do Inferno
mudaram para o
fundo dos oceanos,
ali se implantam
em fetos e casuarinas
descomunais que
drenam
a mais túmida
esperança. Não é para já,
mas está
iminente. O poeta Harry Martinson,
neste planeta da
insónia, hoje dificilmente
repetiria:
«Abraçamo-nos para fazer Deus».
PLANETA DA
INSÓNIA/ 3
A tempestade
desta noite encheu
a terra de
distracções. E interpôs
entre o passado
e o presente
uma empanada
folha de flandres.
A alba não
atenuou as disparidades,
não restam
dúvidas: enquanto a vida
se estende, a
morte é abrupta,
se brilha é de
uma vez, e ao redor
arma a bolha,
uma vigília estriada,
ressentida, de
credo congelado
na boca. Fica
tudo mais claro
na periferia do
mundo, onde,
sem garantias de
que o sedimento
do humano
encontre reciprocidade
para a sua
extrema solidão,
o socorro tem a
prontidão da víbora.
À enxurrada
desta noite seguiu-se
a tua fuga, a
limalha ardente
que pelos olhos
me atingiu o coração.
Como pensar o
equilíbrio
sem a
totalidade, indagavam os vates
e as
sacerdotisas que transmudavam
em orvalho o
pasto da memória.
Vinte e três
desaparecidos, e derruída
uma ponte, que
agora navega
em letras
gordas, carnais,
no matutino.
Onde, por acaso,
omitem a tua
fuga. Com devoção
mística
desejo-te o pior, xipoco
de pavor em
troca dos inocentes
que deus
encravou no Zambeze.
Em que nesga do
destino
sobrevive ainda
o amor
às chuvas de
Janeiro?
Justo é o
pensamento que perde
de vista o seu
objecto.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 4
É nestas
ocasiões que falta o mar.
Acariciar o
olhar no seu mosaico
indomável,
embutir a pupila nas vagas
que autografam
os molhes.
Uma boa hora
desconexa, plasmada
na espuma que
ressalta na pedra
e torna-me a
alegria a palrar, volta-me
a franja a ser
loura, o aro da dor
descalcifica. Como um insecto, sacudo
a letargia e
torno ao movimento, anguloso,
fosforescente.
Não há punhais,
oh lá lá,
exalação sombria que me ofusque,
a premonição dos
derrotados não é mais
um paul que faz
corpo com o que sou.
Depois duma
copiosa borrasca,
para ganhar um
metro de avanço à insónia,
para ser de novo
o paisagista das elipses,
só o mar e a
rampa azul em que afoga
todas as
comparações me restituem
o remoinho do
sangue ao sangue.
Parece
contraditório como o amor
o mar, porém só
ele sossega as insónias
que aguilhoam na
polpa dos rios
o canto das
crianças mortas.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 5
(Sem querer
tramei a pequena aranha,
eis-me parte do
seu destino.
Duma estirpe
pequena, os seus palpos
brancos sempre
activos sondavam
no ar resquícios
do divino.
Trepava célere
pelo braço da cadeira
e,
supersticioso, quis afastá-la com a bic.
Não medi forças
e esfacelei-a,
quase a
separando em duas.
Deu três quatro
passos, emaranhada
numa baba, antes
de fazer looping
na mudez que
petrifica. Lia
A Literatura e
os Deuses,
de Calasso,
e senti-me a mão
do fatum,
a sua algébrica
desmedida. Abriu-se
um hiato – fechou-se um ocelo
de Deus? Boss,
os bolos são sempre
de ontem, mas as
crianças também,
ou não?,
replicou desafiador
o empregado
quando rejeitei um rim,
rijo como a
serpente que ludibriou
Eva. Eis uma
bizarra noção
de bem servir
onde até os bolos
são lobos. E
chega de zoologia.)
PLANETA DA
INSÓNIA/ 6
Em Kobani, os
cães barbudos não entraram
e desataram a
decapitar as suas sombras.
Estas coisas
nunca aconteceram, mas existem
sempre, escreveu
Salústio,
e é justo que
aconteçam, e que importunados
pela
impossibilidade de conseguirem urinar
nos canteiros de
narcisos, jacintos, violetas,
rosas e tomilho
da cidade,
ou de
conspurcarem com esterco
a virgindade das
resistentes,
os cães barbudos
se castrem
antes de se
enforcarem num fio de sangue igual
àquele com que
decapitaram o seu amigo.
Os cães barbudos
perderem o rasto de Sinbad,
Antes o crime
aflorava como a cegueira pontual
de a quem
inebriara a caligrafia das baleias.
Porém, a âncora
extraviou-se, mata-se
por cinco
segundos de emissão e enterram-se crianças
vivas no
arabesco dos abismos - desapontar
horizontes é por
ora a pedra angular.
E lapidam-se
mulheres. Só a esperança
de que a
reminiscência das estrelas mortas
se perpetue no
canto dos grilos não
estiolou. Sim,
há que voltar ao mar
para que o homem
divagante esqueça
o perímetro da
crueldade.
Aí, mesmo que a
morte e vida façam
Um - chiça para
os números - a alegria
é ainda o nó com
que a porta
se abre ao vinho
e ao amor
e escuda a casa
do olvido, da térmita.
Porque hoje até
no crime já há enfado.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 7
Pelo que sei os
náufragos
um instante
antes de tomarem
ares de carta
selada
dão conta da
extrema acústica
dos oceanos. Nem
sequer dá tempo,
entre vagido e
velório, de se recordarem:
que origem os
desovou. É
o que me agrada,
a inexistência
de uma ruga entre
mim e
o
desencadeamento do som,
puro derrame nas
tintas
p'ras margens
que o comprimem.
Que uma gaivota
me arrepele
o ombro, na
unção
de quem bica
escória
na oleosa cidade
de passagem
fascina-me; o
silêncio verde
com que as algas
descalçam
o meu olhar dá
sentido
a tantas
palavras gastas
como carvões a
que não aflorou
lume... mas
faz-me compreender:
não é verdade
que as palavras
apenas
encadernem o silêncio.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 8
É bifronte o meu
espanto, nem sei
porquê, se
também é lúbrico o liame
entre anjos e
asas, se entre beijo
e olho transita
o oxigénio,
a mesma nuca
branquíssima. Talvez
me pareça uma
violência aceitar
que a palavra
prazer ilumine
a trajectória
térrea da minha boca
no teu mamilo
azul. Julgo chegar-me
o espanto da ignorância
sobre
a verdadeira
natureza dos oceanos,
justamente no
seu epílogo.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 9
Umas vezes como
Ariel, outras
como Caliban:
não chegamos
a ser humanos.
Mas enreda-me
o vento na
esplanada como o touro
ao toureiro, e templa-me, congruência
súbita, o
destino. Percebo finalmente
porque sempre me
atraíram
os filhos de
Eolo: o ar que gazua
no coração do
pombo pulveriza
o azul, deslocaliza a atenção de Deus.
A verdade é um
tigre com inúmeros
cornos, uma vaca
desprovida
de cauda, o par
de girinos que agita
alacremente a
cauda dentro do frasco
de compota –
fomos prevenidos.
Mas é assim que
vejo as coisas,
meu amor: as
câmaras captam
a nossa fuga mas
não podem impedi-la.
Abracemos o
vento, como Ariel,
ou como Caliban.
Radiantes.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 10
O cego mira a
flor, a flor
sorri.
Alucinação que fende
um mar de luz,
ou algo
que despende a
vida, até
que pela
ausência um trovão
lampeja? O céu
não pode
impedir-se de
ladrar,
mas nós podemos calar.
Se de novo
olharmos o mar,
humildes, e nos
seus corais
dissiparmos de
novo a crueldade,
como a flor que
floresce
para o cego. O
que nos sobressalta
é o apego das
areias, esquecidos
do vento, até
que a doença
lampeje?
Voltemos ao mar.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 11
Quem lançando a
flecha
não vai nela? O
fito
não era
burlar-me quando
ateei a fogueira
mas aquecer-me
no breu, invadir
a realidade
inteira. Se os
poemas já não são
o dragão em
visita, problema
dos poetas. No
que me cabe,
não quis
encardir-me ao sol
num apeadeiro
fantasma, onde
até a memória
dos comboios
se obstina em
calar.
Quem caído no
visgo
do poema
desgruda sem dor?
O pássaro que
cai dentro do canto
afoga-se no
cântaro e palavras
há que abrem um
postigo
enquanto outras
ejectam
a paisagem.
Restituir o sangue
ao sangue é que
é mais caro.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 12
Cria-se, este
mundo, à medida
que nos
orientamos para ele.
Jonas
desarrolhou o Leviatã
e Melville
serviu-lhe o vinho.
Não é uma
questão táctica
mas de
desencadeamento
da crença: arder
como algas
num convés é que
não.
Cria-se o mundo
mas fica
imerso se o
conservamos
aquém da sua
intensidade,
e lhe preterimos
o sujo.
É do que me
culpo, de não ser
Macwhirr para
aferir
a grandeza dos
tufões,
de não ser
tubarão lancetado
pela beleza dos
corais.
Esta rédea curta
foi-me
afastando dos
oceanos,
das suas cartas
e fossas
abissais (e até
na mesa,
interditou-me a
gota:
peixe, frutos e
sereias),
e criou um mundo
portátil,
de canivete-suiço,
que se recorta
à medida do meu
extravio,
na vã esperança
de que o rio
não se dissolva
no mar.
PLANETA DA
INSÓNIA/ 13
Olho perdido nas
pregas da obediência
ao vento. Com
que idade se deixa de cantar,
Victor Hugo, e
se dissimula na paródia
a cobardia?
Versos pós-modernos,
estes, onde a
terra capitula sob os nomes
como um campo
sob as moscas.
Vem o homem a
nós da parte do deserto,
lia-se, e
acreditava-se, sentia-se-lhe
o hálito de
gafanhoto, a aura verde
com que ele
matava a sede das areias.
O mar não era
então a plácida Delagoa Bay
em carneiros aos
pés dos veraneantes
e o infinito
deixava-se empurrar
como uma porta.
Eu sou como aquele
que encontra uma
esmeralda, dizias,
e a inveja
dribla-me três vezes
sem conseguir ao
menos travar-te
em penalti.
Porta entornada
aos soluços é
mais o meu esti-
lo, oblíquo,
gaguez de ébrio
que se agarra à
garganta da noite
para não cair no
vácuo das estrelas
de papelão. A
fábula
é o meu domínio
mas amo
os guindastes
com a fraqueza
dos anémicos,
certo de me faltar
a astúcia pronta
da raposa, o liame
que surpreende
na agudez da sua garra
o clamor dos
vivos. Viver à véspera
dos epílogos não
ajuda, no planeta da insónia,
sobretudo quando
se pressente
inacabado o
gosto do cravinho na língua.
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