As três Graças, Rubens
Vasculhando materiais antigos descubro este ciclo, que me agrada.
As três Graias: o Tempo, a Memória, o Sono.
Já terei usado um verso ou outro noutros poemas, refundindo, não importa. A coisa surge-me como uma unidade que merece a sua contemplação à janela.
Para ilustrar escolhi o quadro do Rubens sobre as Três Graças, porque estas, ao contrário do artista, me parecem Três Graias.
O TEMPO
1
Gosto, no Tempo,
que me dispa
em contramão.
Se me aperalto,
Ele, num aceno
açula os mastins,
arma no desejo
de Teseu
a labirintite.
2
O simples: estria
que difere
por natureza –
a despeito
dos liftings do amor,
alguma coisa
que difere.
Agarrado ao galho
do Tempo,
sou o último
fiapo
que o rato
ainda não
visou.
3
O meu corpo é o
corrimão
onde se coçam as
calças
da valiosa
criança
do Tempo.
4
Era assim quando
fui cão.
O orgasmo?
O McGuffing da
morte.
E hoje cheira-me
que transijo
em solo
desconhecido,
que o Tempo se
devota
a polir a vigota
do temor.
5
Não é matéria de
calendarização.
O Tempo, apenas,
num desnorte,
treme treme no
luxo da tsé-tsé.
Desaba de si e
dos seus como
ninguém,
ou talvez a
térmita.
6
Fanados por um
mistério mais vão
que o das Fossas
Marianas,
chegamos a
confiar nele,
a incutir:
você é quem sabe,
você faz o preço!
O Tempo,
de sorriso a
tiracolo
tira-nos as
divisas:
o seu troco
de alfaiate é o
nosso luxo.
7
‘Complicas em
demasia
a tua vida, se te
preocupas
com a acústica do
caixão!’,
confiou-me Ele,
na única vez
em que
partilhámos
beata &
aguardente.
8
É um princípio
de borra-botas, matar
gratuitamente
para que a vítima
não chegue a
distinguir trufas
de miosótis.
Por isso,
enternecidamente,
me escama
o Tempo,
alheio a que eu
não seja
sequer
o travesti
de um peixe
.
9
As varizes do
Tempo
(coisa feiota de
se ver)
renovaram
em mim os brotos.
Nada a fazer.
O temperamento
do bruto
fatiga-me,
dois pontos,
embora a fadiga
me faça crescer, escoucear.
Julga ele que m’ensandece:
que tomarei a
baba
que decorre
por cogitação dos
fósforos.
Vai uma aposta?
10
As nádegas do meu
tempo
que foram rijas
como bilhas
de gás
já não enxameiam.
11
Não há psicologia
que suporte
o pleno
de uma cabeça
peneirada
no vidro,
nem a palpitação do
sinistro que irisa
e avermelha o
empeno do para-brisas.
A alta
velocidade,
o Tempo é o olho
das três Graias,
polinizado de mão
em mão,
até que, sem
raiz,
pira.
A
MEMÓRIA
1
A memória, a
cento e trinta à hora
nos cromados
novos
e acossados pela
extensa,
tangível,
crepitação dos girassóis,
de meu só anseia
o escalpe.
Que a goiva -
insculpido o pó
nos sulcos da
madeira –
não descure a
sede da galinhola.
2
A memória, a
ocasião falida,
respira como o
chacal
apodrecido pelo
amor.
3
Com a
imparcialidade que perfura
a ferrugem - sonha
a memória
pôr à tona dos
dedos – xamã
em viagem – a
mão.
4
Na acerada ponta
da palavra
confluem as aves
e o dardo.
5
Desvairo
lancinante, o nome,
assim que o lobo
do silêncio imobila
a palavra
pelo cachaço.
6
Inescrutável, nas
carótidas do Indiviso,
a dor da terra apátrida
– há ração
provisória p’ró indulto?
Corvo: fuliginosa
tatuagem
da insónia no
coração de Noé?
A memória, hesitação duradoura
entre fogueira e litoral.
9
Infértil o faro
do cão qu’esgaravata
o pisca-pólos sob
o asfalto.
A memória que,
com uma grua, alça
a lua afogada do
lago
orbita em que
domínio?
A pele, o sorgo, os ratos, o sisal:
quatro momentos
de estupor da pedra.
12
Aturdidamente, os
galos ganham
à noite - num fullen de duques –
o combate pela
transigência.
13
Restituída, em
nome da orfandade,
a memória
entricheira-se.
14
Gastou-se, a lixa
da caixa de
fósforos. Paul
onde a incandescência
da imagem
fundiu alma e
asma.
15
O mais nítido
pavor,
veia que pulsa
por msn
e cinzela a
respiração do osso.
16
Quem estanca o
pipilar
das aves
nocturnas?
Quem aguarda,
inebriado,
por detrás da roldana da tristeza
até que chegue o mar,
que chegue a luz?
Incorrespondido o
enigma,
a memória
desprende-se
da pele que
ladrilhou
- reminiscência
tão pura
que, saciada, a
veia
bebe aos goles.
NOTA: este poema corresponde a
uma leitura de Antecedentes Criminais, de Amadeu Baptista; os versos em itálico são deLE.
O SONO
Cansada de enfiar
o dente nas penas
dispersas, a
terceira Graia dorme.
Sileno ri e coça
o casco.
A minha filha
Luna interrompe:
Pai, que bodega,
hoje sonhei
outra vez com o
galo amarelo.
É contra as
séries.
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