foto de ricardo martinho gaspar
E ao fim de dez anos reencontrámo-nos. Foi estupendo e rimo-nos muito, sobretudo de nós, pois estamos ambos naquela fase em que rimos mais com os outros do que dos outros. Chegámos exactamente ao mesmo tempo, uma hora antes do comboio para o Porto, a Santa Apolónia, e despachámos nestes dias algumas garrafas e um ror de memórias. Ambos os mesmos trafulhas que nos conhecêramos. Para se dar conta da inabilidade com que lidamos com a vida vou fazer uma inconfidência. A dado momento neste almoço no Cais de Sodré, depois de libertarmos o Cotrim para um almoço de família, o Paulo vê uma valquíria ruiva a entrar na tasca e diz-me abismado: Cara, eu fiz passagens de modelos com esta rapariga, quando tínhamos vinte e tal anos. A seguir à gargalhada de nunca o ter imaginado como modelo (já nos conhecemos nos trintas), instiguei-o a meter conversa com a senhora, pois seria engraçado conversarem trinta anos depois. O Paulo encheu-se de coragem, pôs-de de pé, esperou por ela cinco minutos, enquanto a senhora despachava a bica ao balcão, e quando ela saiu como uma brasa na algidez da tarde perguntou-lhe, com a voz mais suave que conseguiu: Desculpe, a menina onde estava há cinquenta anos? A senhora - altiva, bonita, senhora de si, os cabelos ruivos caídos até meio das costas - olhou para ele incrédulo, fez um sorriso fatal, como se diagnosticasse aí toda a tolice do interlocutor, e atalhou: Há cinquenta anos? E zarpou, abanando a cabeça por ter sido tão fácil desmanchar o figurão, sem dar tempo a que ele pudesse ripostar, Mas nós conhecemo-nos. Depois rimos como perdidos, com a inabilidade dele, que seria a minha, se fosse ao contrário. Só damos para a literatura, por isso aqui fica o texto que o Paulo leu sobre o meu livro, Éter, na Póvoa do Varzim, nas Correntes de Escrita, e a comunicação que aí fiz.
O texto que sobre o belo livro do Paulo, A Doença da Felicidade, li na Póvoa, postarei amanhá, pois tenho ainda de transcrevê-lo do caderno:
«Éter trata-se de um livro de
contos e que têm como leitmotiv a impossibilidade de se apreender o mundo, não
só porque ele mesmo é múltiplo, mas principalmente porque nós não somos
lineares como a aprendizagem imaginária que fazemos do tempo. Nós somos como a
nuvem electrónica de um átomo. Se sabemos onde estamos, não sabemos quem somos,
e se sabemos quem somos não sabemos de onde viemos, e se sabemos de onde viemos
não sabemos quem somos.
No primeiro dos contos, “Coração
Quase Branco”, o autor recupera um acontecimento real e trágico da Lisboa dos
anos 90 do século passado, o suicídio do alfarrabista, tradutor e surrealista
Ricarte-Dácio de Sousa (precedido do assassinato da sua mulher e filho), relato
que tem como fundo um certo underground literário da cidade, e de cernelha
espeta-nos a farpa curta da Maputo de hoje e das suas misérias. Uma miséria que
é extensível ao próprio narrador, e que com isso estabelece um paralelismo com
o acto do alfarrabista de Lisboa do século passado, e uma tentativa de
encontrar nas fezes dos actos de uma vida, a pista que nos conduza ao animal
que se pretende caçar. O conto é extraordinário a vários títulos, e o seu
melhor encontra-se precisamente na capacidade de transladação do corpo do morto
para a cidade de Maputo. Da miséria do objecto da narrativa para o autor da
mesma. E neste acção mostrar-nos aquilo que parece inevitável: ninguém é
ninguém, somos sempre migalhas de “por acasos”, e com isso temos de avançar,
porque a vida não tem narrador. A miséria é muito maior do que se pode
imaginar, mas a cobardia ou a coragem, ou apenas uma capacidade tremenda de
insensatez, nunca iremos saber, leva-nos sempre a ultrapassar o pior, nem que
seja com uma flor, como se torna de evidente beleza no final do conto: “Vou à varanda. Fumo, balançando o corpo
contra a amurada. No quarto andar da embaixada da Rússia há duas luzes acesas.
Às três da manhã, alguém lê uma biografia de Laika, a cadela. Os tiros não
param; quantas crianças baquearam nesta rajada? Os motins na cadeia terão
vingado? É caso para recear o pior. Até as buganvílias se apagam no escuro, no
muro lá em baixo. Adoro buganvílias. Está uma noite óptima. Inclino-me.”
No quarto conto, “O Beijo no
Arame”, a narrativa abre-se, deixando ver o mundo da criança a tornar-se maior,
onde tudo é mito, principalmente o sexo, que a mais das vezes não passa de uma
palavra estrangeira. Estes mundos diferentes, diria mesmo mundos paralelos,
pois é o que melhor se aplica à técnica narrativa de Cabrita, explodem em nós
só pela presença de um rio e tudo o que ele separa, como no caso desta passagem
em “O Beijo de Arame”: “Uma tarde magnífica foi a que nos fez deambular por
Cacilhas e imediações. Estava um sol radioso mas um calor brando e metemos pelo
cais do Ginjal, dispostos a vasculhar os meandros, pátios e becos daquele
casario à beira Tejo, com Lisboa, para nós outro mundo, do outro lado.” Esta
obsessão por escrever o mundo em camadas, como se o mundo fosse vários em
simultâneo, encontra o seu paroxismo no conto “Kamasutra para Rouxinóis”,
também ele o conto mais extenso do livro, onde a narrativa convive em
simultâneo com tempos e espaços diferentes. Nós mesmos somos mundos paralelos
para nós mesmos ao longo da vida e em cada instante. Se em “O Beijo de Arame” tomamos
uma consciência táctil do mundo em que atravessámos o rio que nos leva da
infância à adolescência, em “Kamasutra para Rouxinóis” a consciência de sermos
vários, de que atravessamos diariamente rios entre um e outros uns que somos,
chega a levar o leitor à náusea, ao desconforto de se ver a ser sem região
demarcada, de se ver como a nuvem electrónica de um átomo. E nem o final
brilhante e belo nos deixa mais aliviados. Mas “O Beijo de Arame” mostra-nos ainda
um outro lado da realidade, bem mais pertinente neste livro: a de que em
pouquíssimas décadas o mundo mudou de tal forma, que temos dúvidas se esta
narrativa será alguma vez entendida pela carne de alguém nascido depois da
década de 1980. Este conto, que em outras décadas atrás poderia muito bem ser
entendido como um conto de formação, na sua metade, hoje é apresentado quase
como uma provocação. E isso, em quem como eu nasceu na década de sessenta do
século passado, transforma-se em mais um corte no coração. Os mundos das nossas
infância e adolescência estão definitivamente em outra galáxia, perdida para
sempre no espaço e no tempo. Pois quem aqui pode imaginar isto: “(...) queriam ir ao cinema para verem pela
primeira vez uma vagina. Como nós. Pena o rigor da entrada, proibida para
menores de 21. Mas nos cafés, nas paragens de autocarro, nos ajuntamentos de
rapazes, não se falava de outra coisa, dos mirabolantes formatos que podia ter
uma genitália feminina. Em gancho, com a forma de um prato, ou do bico de um
polvo, da cor de melancia, ou prateada, com dentes, algumas tinham por dentro
as cataratas do Niagara e outras apresentavam-se mais secas do que nozes;
instalara-se um charivari diabólico. O Falua garantia que parecia uma ostra,
mas nenhum de nós havia visto uma ostra, pelo não podíamos medir a
plausibilidade da comparação. Alguém de repente murmurou que na cervejaria
Farol, em Cacilhas, havia ostras, e descemos em corrida dois quilómetros até à
montra preciosa. Éramos cinco. Embasbacados, porque as ostras na montra estavam
fechadas e parecia-nos impossível que o Falua se referisse à forma exterior da
concha, laminada e brutal. E que feia, como disse o Spencer, quem teria a
coragem de olhar uma cona pela segunda vez, se fosse igual? ”
E embora haja aqui e ali algumas
pinceladas de ternura, não é esta que vamos encontrar no conto, mas o escândalo.
O escândalo de ficarmos face a face com um mundo perdido, o escândalo de estarmos
vivos e nada existir para provar de onde viemos. Aquilo que vivemos já não
existe. Nenhum dos nossos descendentes poderá encontrar aquilo que foi a nossa
vida. Estamos vivos neste planeta, mas como se tivéssemos descido de uma nave
espacial mais obsoleta do que este planeta Terra. Tornámo-nos numa geração sem
passado. Um dia nós mesmos iremos duvidar de que isso tenha acontecido. Quem
sabe não nos aconteça em relação às nossas vidas, o mesmo que acontece ao
francês, herói do conto “Cemitério dos Navios”, que indo enterrar o seu cão
morto, encontra um autóctone a quem pergunta:
“– Conhece o Cemitério dos
Navios?
O outro fica
um instante a pensar, antes de encolher os ombros e lhe responder:
– Não existe.
– Não existe.
– Não
existe? – interroga Raoul, aflito.
– Não –
sentencia o outro –, nunca existiu.”
Já no segundo conto do livro,
“Chinas e Matraquilhos – um réquiem para três gerações”, onde dois irmãos
visitam o pai, ao fim de muitos anos, e ao levarem-no numa viagem em que ele
morre no banco de trás, ficamos prostrados de comoção e metafísica, como se só
depois de não estarmos cá, nos fosse possível uma centelha de atenção. No
fundo, toda a vida acaba sempre num banco de trás de um carro, parece dizer-nos
o autor, na maestria com que nos leva nesse conto.
A escrita de António Cabrita, ao
longo dos contos, vive acima de tudo da preocupação com o uso que as ruas dão à
língua, a chamada linguagem coloquial. Estamos diante de alguém que quer cristalizar
as palavras que formaram pessoas, as palavras que fizeram parte de um tempo,
que pode ser o de hoje, e que se vão inevitavelmente perdendo. Por outro lado,
de que modo poderia António Cabrita mostrar-nos o que não existe, se não com
inexistentes palavras, inexistentes expressões? Inexistentes no sentido em que,
na maioria dos casos, já não são mais empregues no uso dos nossos dia-a-dia, ou
são usadas em regime de excepção, contrariamente ao que já foram. São os casos
exemplares de “aldra”, “zuca”, “sarapitola”, “escarumbas”, “turras”, “embarcado”,
“salgalhada” “à pinha”, “chavascal”, “catrefada” e muito outros.
Há também ao
logo do livro frases de esplendor, frases de poesia, como são os casos de: “Nunca tinha encontrado uma miúda assim, com
uma asa de avião em cada palavras.” (O Beijo de Arame); “O Falua estava lívido, faziam-se oito
camisas com a sua brancura (...)” (Ibidem); “(...) Deus não olha as coisas como elas são, mas como elas eram. Por isso é
que para Deus é sempre verão...”; “(...)
não sabes como achar dinheiro para dar ao teu filho a educação de casta que
sempre imaginaste (Columbia, Oxford, oito anos de piano e quatro línguas
mobiladas por dentro)” Ou esta que é simultaneamente poesia e um risco
teórico, indicando-nos com bastante precisão o que podemos esperar deste livro:
“(...) voltava a escorregar para o
negrume da literalidade (...)”. Negrume da literalidade, que fica quase
sempre lá fora, fora das páginas do livro.
Termino por
salientar a pertinência, e o feliz achado, do título do livro: Éter! Pois é
precisamente aqui, na insubstancial matéria pensada da antiguidade, que estes
contos se passam. Naquilo que em cada tempo não existe, nem nunca existirá, mas
será sempre o mais importante.»
E aqui posto a comunicação que fiz, nas Correntes de Escrita:
«A PALAVRA E O
SILÊNCIO: CONVERSA DE TIAS
Talvez não seja
o melhor modo de começar, reconhecer que às vezes se desprende uma uma tal
solenidade no uso e na evocação do silêncio, como este se fosse um espelho
demasiado límpido, que me vem logo à cabeça, em contraponto, um verso de Haroldo
de Campos: “O redondo oceano ressona
taciturno”. E por isso, para apalpar o território movediço do silêncio sem
nos colocarmos em bicos de pés, vou contar a história de duas tias. Vamos à
primeira.
A minha mulher teve
uma tia, a dona Escolástica, que aos vinte anos, viajou de Goa para Lourenço
Marques no fito de casar com o noivo que a família lhe arranjara. E, após três
semanas de mar aberto, assim que da amurada do paquete ela assestou os
binóculos no cais e se apercebeu do sujeito ridículo, um caga-tacos bexigoso e
barrigudo, que esperava por ela, tomou a decisão de entrar no quarto de núpcias
para só sair dali para a tumba. O que cumpriu. Nos 40 anos seguintes nunca viu
sequer, por uma vez, as acácias vermelhas a florir, nunca. E durante 40 anos só
falou com a concisão necessária para repudiar a sua sorte. Obedecera aos ritos
e à lei – em contrapartida o seu gesto silenciou o mundo à sua volta,
obliterou-o.
Já se fizeram
inúmeras narrativas em torno desta personagem que pôs uma pedra sobre a sua vida.
Todas as tentativas falharam, pelo mesmo motivo: adoptam um ponto de vista exterior,
o do marido e das figuras em torno da que se emparedou em vida, e mesmo que
polifónico o enredo manca, ou fica rapidamente saturado, sobra-lhe algo. Porque
afinal a densa experiência do silêncio é intransmissível, do mesmo modo que não
se comunica pelo telefone a espessa experiência do sarampo (Wittgenstein).
Pior, pressinto
que os poderes do silêncio podem ser devastadores, como se verifica nesta
parábola que nos mosteiros zen se conta aos iniciados.
Havia
um monge budista famoso pela sua imensa sabedoria, coroada por um silêncio
inquebrável. Todos os noviços do mosteiro o reverenciavam, mas, cumpridos os 85
anos, ao verem que declinava a sua saúde, decidiram pedir-lhe que, por fim,
falasse.
- Explique-nos,
antes de morrer, o que em todos estes anos haveis aprendido e contemplado. Não
vos ides sem deixar-nos uma pista que nos oriente.
E o
ancião, respondia a tudo com um sorriso. À medida que a saúde lhe empalidecia,
a impaciência crescia entre os noviços. A um ponto que, no seu leito de morte, desataram
aos berros, para que ele reagisse. - Não sejais egoísta e cruel! Para quê levar
para o túmulo tudo o que pode servir-nos como luz e guia. Porém, o ancião
continuava emudecido, imperturbável entre os jovens que começavam a
maltratá-lo. E foi só no momento de exalar o último suspiro que disse uma
palavra, a sua única palavra: - Fogo!
E o
mosteiro começou a arder. O mosteiro ardeu até aos caboucos.
Nem sempre, como
aqui, menos é mais, e não creio infelizmente que estejamos à altura de recuperar
para o silêncio esta medida incandescente, pois temo que não passamos de
ociosos bombeiros dominicais que, como diria o Montale, até para sonhar o fazem
a dez por cento. Contudo, contei esta história a seguir à outra porque suspeito
que a suposta renúncia da tia Escolástica se alimentava da expectativa de que a
força do seu sacrifício desencadeasse nas parcas palavras que emitia um poder
mágico, o tal menos que é mais; e que um dia ao sussurrar Fogo o desamado
caga-tacos do marido fosse imediatamente consumido pelas chamas, carbonizado.
Ora, a tia Escolástica, para conservação da sua sanidade mental, devia ter
feito aquele espectral exercício que o encenador Peter Brook inventou para os
seus actores quando os mandava para um canto da sala de ensaios e recomendava:
«vai, e não penses no urso branco!», pois aí ter-se-ia dado conta da fatuidade
de pensar que podemos comandar o silêncio.
Façamos agora um
intervalo, antes de irmos à segunda tia, para lembrar que em todo o século XX
houve uma valorização estética do silêncio, seja pelo lado da desconstrução
como no movimento Dada, seja pelo inescapável fascínio que fazia da arte uma
disciplina para o silêncio, condensando-se neste uma meta inatingível mas
sempre almejada, como se o silêncio fosse o propulsor que nos projecta na
região inefável do indizível. O mais difícil nesta equação julgo que se prende
com o facto de sermos portadores da palavra e de estarmos
convencidos que o pensamento é linguagem, esquecidos de que não pensamos
exclusivamente por palavras, embora pensemos às vezes em palavras, sendo
estas arquipélagos flutuantes e esporádicos.
Será o silêncio
a substância dessa ondulante consciência oceânica, a que voltamos sempre, carenciados
de sigilo, como a um útero? É uma hipótese. Mas vulgarmente a nossa relação com
o silêncio está viciada ainda pelo dualismo, o ou é menos ou é mais, e isso abstrai-nos
do facto de que as suas manifestações são múltiplas, intermináveis, oraculares,
no sentido em que o silêncio só indica uma probabilidade e não traz respostas
prontas, e, no fundo, prefere bifurcar-se numa deriva sem fim.
Mais: o paradoxo
é que não existe silêncio sem contacto, pois não será o silêncio isoladamente
tão pouco perceptível como o vento, que necessita de uma árvore, da rebentação do
ar nas suas ramagens?
Portanto, resumindo,
há uma linhagem de criadores para quem a palavra não passa de uma sombra mitigada
do silêncio, atribuindo-lhe uma dimensão transcendental, uma espécie de
polinização do Absoluto, que só na nossa fusão com o silêncio, se deixa
entrever. Deixem-me confessar-vos que, pelo meu lado, não sou tão ambicioso e
deixo essa acareação com o Absoluto para os místicos, aceitando para mim uma
formulação de um aliado improvável, o Melo e Castro, quando escrevia, que “o
silêncio é comunicação sem mensagem”.
Bom, agora, em
minha defesa, tenho de puxar à liça a outra tia prometida e contar que durante
a minha infância convivi diariamente com uma pessoa surda-muda, que vivia em
minha casa e me levava à missa. O verdadeiro enigma para mim, naquele caso, não
era a mudez dela mas o enigma da distribuição da Palavra de Deus. Como é que o
Sopro de Deus lhe chegava aos ouvidos? E, se ela lia nos lábios do padre, como
mensurar o quilate da Palavra nessa comunicação semi-adivinhada?
Porém a partir
desta minha experiência deixei de considerar o silêncio como algo de mítico
para o qual toda a palavra deve confluir, ou de reduzir a palavra a um trampolim
deficitário para a expressão do inefável. Eu tive uma educação pelo silêncio,
como uma experiência material, inapelável, concreta, que ainda por cima se
mesclava com o afecto, e essa relação fez-me perceber que existem modos de
comunicação que estão fora da consciência, no sentido de prescindirem de
verbalização, tendo intuído aí o que dizia o Bateson sobre a impossibilidade de
existir a não-comunicação. Esclareceu-se-me
aí que o silêncio pode ser uma comunicação ainda sem mensagem, da mesma forma
que há pensamentos que procuram os seus pensadores-veículos.
Por outro lado,
a circunstância de ter vivido com alguém que fazia as consoantes com o corpo e
as vogais com os olhos mas a quem não saía uma palavra claramente articulada,
ainda que movesse os lábios, em imitação dos outros, ensinou-me que a palavra é
um luxo que não se pode desperdiçar, nem pela mentira, nem pela frivolidade, e
que nos cabe a responsabilidade ética de não deixar por formular uma única
palavra que seja necessária.
Esta experiência
prematura de contacto com a presença do silêncio na comunicação fez-me adoptar,
já adivinharam, uma relação com o silêncio que se aproxima mais da polarização
oriental, onde o silêncio não é o oposto do som ou da palavra mas antes uma
posição embrionária, que prepara e antecede a expressão.
A partir daí o
que me interessa não é tanto o esforço de definir o silêncio, mas, de modo mais
prático, como acomodar a cama, o percurso e o estuário que o silêncio faz em
nós. O americano David Thoreau iluminou tudo o que eu desejaria dizer quando
escreve: «Não é a forma que o escultor dá à pedra que importa mas o que a
escultura faz ao escultor».
Até porque no
meu entender só há inefáveis relativos e não absolutos, ou seja impõe-se uma nova
dimensão indiscernível em cada ciclo da nossa evolução ontológica, dado
acreditar que começamos de uma maneira e acabamos de outra. Passamos da
madeira, ao ferro, para usar uma metáfora, e nesta passagem, por termos mudado
de configuração atómica acontece não reconhecermos as constelações e precisarmos
periodicamente de uma nova carta astral. Alvitro, assim, como dizem alguns
antigos que o caos é quase sempre uma ordem por decifrar, a ventania que despenteia
a estatística. E sublinho o «quase» porque, por uma questão de sanidade mental,
devemos conservar uma margem de liberdade para o aleatório e para nunca nos
esquecermos dos limites da racionalidade.
Do que advém, no
meu caso, que o silêncio seja o outro nome que damos ao acto mediante o qual a
concentração nos esvazia. Do mesmo modo que a dança se intensifica quando se
apodera do corpo, ou a sonata soa mais expressiva quando o seu intérprete se
esquece de si mesmo no acto, o silêncio é o acto de esvaziar, e de nos pôr à
escuta, e a partir daí a palavra e o silêncio retroalimentam-se e todo o real potencia-se
no processo desse engendramento recíproco, diria até, desse entusiasmo
recíproco.
Entusiasmo que
legitimou males-entendidos e que Platão escrevesse: «o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e
não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o
uso da razão». Confesso que só lhe perdoo porque, quando por trabalho o
tenho de ler, em seguida vou invariavelmente ao talho e, apontando a máquina do
fiambre, peço com Nicanor Parra “dê-me cem gramas de Platão mal passado, por
favor!”.
Abra-se
um parêntesis para referir que se até aqui ainda não falei do tópico da
liberdade isso decorre desta estar implícita no estado de exaustiva evasão de
mim que ocorre de imediato sempre que me esvazio para deixar que aconteça o
poço da escrita. O que não dizer que este esvaziamento seja um estado de mudez,
pode haver vozes e até algazarra, pois o silêncio orbita também na alegria visível
nos almoços dominicais que víamos no cinema italiano, onde o silêncio se
manifestava pela teatralidade duma comunicação que flui sem ruído, irmanando.
Neste
sentido, e incompatibilidades (com o Platão) à parte, por muito que quisesse não
posso escamotear que sou agido pelo silêncio de uma forma concreta, fertilizadora,
sendo que nesse estado de fluidez só existe o perigo de o entravar, quando estupidamente desato a perguntar pelo
porquê do que estou a escrever. Para que nos continue a nutrir, o silêncio necessita
de encontrar em nós um pouco de inocência e diria até de idiotia. Dado haver um kairos do silêncio, um sentido de oportunidade em relação ao
momento exacto para apanharmos o varão do eléctrico do silêncio que desliza à
nossa frente, no começo da subida. Não se julgue porém que o apanhamos à nossa
vontade, embora depois de muito adestrados possamos por vezes conjugar a
oportunidade.
Lamento
não ter mais nada a dizer sobre tema para além do que relataria a sela suada de
Lord Byron, que era um óptimo cavaleiro e se lixou quando, por vício da rima,
quis ser marinheiro.
Uma
última nota para lembrar a aliança entre o silêncio e o desejo.
Acontece
interrogar-me como nos expressaríamos se não houvesse uma palavra para designar
o silêncio e fico receoso. Mas o desejo liberta-me destes sarilhos. Pelo menos,
tal como aparece neste poema de Brecht:
REMO;
DIÁLOGO: «Fim de tarde. Passam
deslizando/duas canoas, dentro/ dois jovens nus. Lado a lado remando/
Conversam. Conversando/ Remam lado a lado.»
Nada
é dito, tudo permanece na sombra do sugerido, na ambiguidade que o silêncio
também requer e, contudo, que a minha tia surda desvie os olhos neste momento
grave, imaginem os meus amigos, como se pega nos remos, e na pesada analogia de
tal gesto, embora o poema explicitamente silencie o que mete em presença.
Por
isso quando este simpático auditório se vir à brocha com o peso do silêncio,
aconselho-lhe que reme o possível, ou, se por índole ou educação for mais
austero, que se dedique à vela. »
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