tapiès
Um filme que o Virgílio de Lemos adoraria:
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Com o habitual atraso que me dá “o exílio” vi esta noite L’Amour, de Michael Hanek. Um filme que hoje seria impossível de ser feito nos EUA e que, por reconhecimento dessa vergonha, só poderia ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro.
Há claramente um texto a fazer sobre as relações subterrâneas entre este filme e Viagem a Tókio, de Ozu, no que toca a uma idêntica visão do que seja a dignidade de “desaparecer” deixando que o fluxo da vida permaneça intacto - de que a música e a sua persistência pelas “bagatelas” (para glosar a sonata de Beethoven que “enche” o filme) que cada interpretação traz é aqui a metáfora.
Há vários momentos extraordinários neste filme sóbrio e justo, que me faz lembrar uma frase memorável de Camus: "sofrer não te dá direitos", mas quero referir-me a três:
- a cena inicial do concerto musical, onde Hanek nos mostra a plateia em vez do palco, com o casal de idosos protagonistas já anónimos no meio da mole humana, o que imediatamente nos diz que o drama a que vamos assistir é transitivo e há de desencadear-se em cada um de nós, no seu momento próprio;
- a cena que começa quando o marido num acto de vida esbofeteia a sua acamada mulher que, em querendo morrer, rejeita a água que ele carinhosamente lhe dá, e se desdobra numa sequência de pinturas bucólicas (as que pontuam nas paredes da casa) nos quais a figura humana se vai gradualmente diluindo na paisagem, até se tornar invisível ou rarefeita, como um efémero sinal entre dois infinitos: o da escarpa e o do mar do quadro final;
- a cena do pombo, quando Trintignant no afã de agarrar a vida e de a sentir pulsar entre as mãos, o abafa (com uma manta) como havia feito com a sua mulher (com a almofada) ao dar-lhe a morte (horror que neste filme é uma forma de dádiva), simetria ambígua em que se joga toda a complexidade do amor e da vida.
Três momentos fortes de um filme que merece os encómios de que vem laureado.
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O Virgílio de Lemos, homem de naturaleza "leve", matérica, que nunca conheci pessoalmente (- ele em Nantes e eu em Maputo, a falta de taco nunca nos deixou cumprir a vontade profunda de nos conhecermos) mas com quem troquei centenas de emails, alguns divertidíssimos, para concretizarmos a antologia dele que preparámos juntos, A Invenção das Ilhas, era um homem que ria da metafísica para lhe opor os acenos da sensualidade e do riso, e gostava de uma boa irreverência. Por isso, ao arrepio já das solenidades, que ele odiaria, lhe dedico esta pequena narrativa que escrevi ontem:
A LIÇÃO DE HISTÓRIA
Depois de bater uma boa sorna, nada como acordar com a Sónia ao nosso lado a bater-nos uma punheta.
A Sónia tem seis dedos em cada mão, como de resto os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que somos quatro a testemunhar o mesmo facto: "aprés" uma punheta batida pela Sónia ficam-nos a doer os colhões.
Eu tinha comprado uma rede, em Fortaleza, no Brasil, onde fiz uma exposição de fotografias cuja receptividade foi nula, e habituara-me a bater um choco todas as tardes depois do almoço, não mais do que uma hora para não ficar mole. Ontem, convidei a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso. Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, com uma pívia. Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner. Adoro mostrar os meus dons, justificou.
Do vinho passámos à sonolência, na rede, até que ela, com a precisão de um metrónomo, uma hora depois, quis justificar a fama.
Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a 50 m de profundidade, ainda que me tivesse deixado o cavername a zunir. Confirmo o que dela me foi referido pelos três amigos comuns que desfrutaram duma idêntica experiência angular. A quem não acreditar que da associação duma boa sorna com a Sónia possa nascer um deleite que é em si mesmo uma arquitectura da dor, a tais cínicos, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra - a morte que, em nosso nome, já faz uma batida.
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