DOS JORNAIS
Mafalala blues: quando viu o puto de onze anos
enforcado na mafurreira das traseiras
foi tocado pelo desespero: afinal, nada, nunca,
mudaria na penúria da sua vida. Até
o secretário do bairro era o mesmo
inútil há trinta anos. Ele vira,
o miúdo topou tudo num relance.
Aquele suicídio confirmava:
tinha a consciência vegetal dum songamonga.
VALA COMUM, SINOPSE:
O estranho plano para férias de Licurgo, o primeiro depois do seu divórcio, aos quarenta e três anos:
- dar a volta à casa, arrumar papéis, livralhada, catar os cadernos velhos (guardava-os desde o ciclo, nunca deitando nada fora), coligindo as cintilações dispersas por mil canteiros (sempre quisera ser escritor mas nunca passara da primeira página nas milhentas histórias que esboçara),
- e dar vazão à curiosidade telefonando para os quinhentos números de telefone que amealhara de nomes que lhe pareciam agora anónimos, mergulhados na vala comum.
Não me lembro donde tirei esta frase mas acho-a magnífica: “o que me arrepia no cristianismo é a ideia desse Deus que poderia amar-me a mim!” De facto, que pobreza de espírito!
A fogueira deitou-se
Para que a noite estrelada
Se pusesse em bicos dos pés.
“Éramos como navios que se saudavam em alto mar, cada qual baixando a sua bandeira”, escreveu Jung, com grande compreensão da alma humana. E o afecto desata-se quando num pequeno escaler os tripulantes se visitam momentaneamente e confirmam: a vida é o amor da vida.
O seu olhar é como o fogo que carcome intimamente todos os campos de trigo que a placidez duma vida amealhou, mas eu já não estou virado para escaqueirar a minha vida num gesto, no gesto. Por isso quando voltou a espetar os mamilos na direcção das minhas íris e insistiu:
«professor, se eu tiver treze dispensa-me de exame, não dispensa?»
eu atalhei:
«Não!».
Creio que a evidente racionalidade que fui adquirindo, como uma conquista árdua com mortos e feridos nunca me fará descrer do mistérios, da experiência, infelizmente intermitente, em âmbitos transpessoais.
PARA DISCURSO DE UM POLÍTICO, NUM CONTO:
«o problema em África é que o pobre não é nosso – é de outro. É o pobre do outro. Das organizações humanitárias, dos direitos humanos, da opinião pública ocidental (isto é, dos países que nos colonizaram), da Unesco, não é nosso.
Daí que a minha proposta seja: que cada branco adopte um negro!»
O Museu do Prado apresenta a mais antiga cópia da Mona Lisa. Há que fazer um Museu com as mais novas cópias das telas famosas.
Consideram-se os ossos palustres
Quando acima deles
Ainda sonha a carne.
CRÓNICA SOBRE UM CERTO PASTOR DE INCERTA SURDEZ
A sua esposa pintava as unhas de amarelo
para se lavar da ausência de pecados
e exibia-as ao almoço, ao pôr-lhe a terrina
de arroz à frente dos olhos. Alardes
& Sacrifícios em vão – ele não erguia
os olhos do seu decoro mumificado.
A chuva é um rio que se partiu,
já não lembro onde li,
no caso dele o rio partira-se nos mil
cacos da banheira onde colidira
o meteoro da abstracção.
Ela tentara já outras abordagens,
depilara-se, aprendeu o cha cha cha.
Era inútil saracotear-se como Salomé
na sua presença, só quem acreditasse
na ressurreição ao quarto dia.
Quanto à sombra dele padece de diabetes,
como todas as que se vão fixando
na glabra conversa
do boletim meteorológico.
Por isso bocejam os coretos e os cultos
por onde passa: perpassa-lhe
em cada palavra uma freira seca
como a virilha de um gnu.
Mas todo ele é fé,
da unha ao bolor
que lhe tomam as laranjas
no cesto da cozinha.
Todo ele se desdobra em petições, cego
ao espaço que gota a gota
nos penetra. Ainda que haja
deuses para tudo, e a boca
possa acolher a glória dos temperos,
concluiu finalmente a sua esposa
em casa de Marcolino Tembe
onde fora ver um sacrário de marfim
e surpreendeu um viçoso botão de rosa
a meio dum corpo enxuto: pátrias há,
como o Desejo, que não cabem
na pequenez da carne, e se enlaçam
em pequenas cadeias e sismos. É o escândalo
da semana no meu bairro. E o pastor
repete, alheando-se dos gemidos que ouviu:
«O ouvido é o que mais tende à surdez!»
«Há o homem e há também a omelete…», garantia Lacan.
Braille: um bom nome para um volume que me antologie a poesia.
A maioria maus poemas e alguns assim-assim.
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