É incrível que se tenha esquecido e que de novo seja
necessário repisar a lição dos antigos. Mas aí vai…
Quando Grabato Dias escrevia, no Lourenço Marques
colonial, Guerrilha em Horas Extraordinárias:
«A mulherinha estava a
pedir pega-me
naquele olhar de corna
mansa, e então
fiz das tripas menores
um coração
embrulhei-o em luxúria
e num béguin
impetuoso e urgente,
qual salame
perverso a mugir
trinca-me glutão
abalei a voar no avião
rotativo daquele olhar.
Eu chame-me
cão gravata se não
valeu a pena!
Ó licor da vingança, ó
bruta cena!
Tinha, enfim, sob a
espora, sob a mão
soba espúrio, soba
ex-puro a esposa
grata do chefe, e sob a
esposa a musa
ingrata dum tinteiro da
nação».
ou em Introdução a um pedido de asilo poli ético:
«Olho zanaga olhizaino
e duro
labrusco joalheiro de
praguedo
inventa o oligarca o
medo. O medo
guarda o medo, e o
escuro esconde o escuro.
Apreensão de apóstata prematuro
romeu repeso ansiando o
ledo
quieto canto matutino,
medo
urna do medo, eis-me
(...) ».
está a ser muito mais subversivo que o
chileno Angel Parra quando escreve em Canção
nº3:
«Dirijo-me
a si, General, que nasceu neste solo,
a si, legítimo filho da puta chileno.
A si que se orgulha de ser o Grande Carcereiro,
de ser o grande Traidor, traidor e embusteiro.
A si cujas mãos gotejam sangue humano,
a si que tem a vida e a alma condenadas.
Porque receia tanto o povo pelas ruas,
os seus passos, o seu ímpeto, o seu grito, o seu canto?
(...)»
No segundo poema Grabato vai aos próprios fundamentos da
repressão, que se radica no estado normativa da língua, e vira-a do avesso. O
miolo do poema está aqui: «O medo guarda
o medo, e o escuro esconde o escuro», e alude à repressão (colonial),
interiorizada pelo próprio carcereiro. Mas o poema fá-lo de uma forma que se
torna socialmente irrecuperável, dado
que “os tinteiros da nação” só entendem a linguagem mais chã e patinam como um
peru sobre o gelo quando um poema se diz de outra maneira.
E chegamos aqui ao fulcro do que faz dos poemas de Grabato
grandes poemas e do de Angel Parra matéria volátil: o conteúdo do poema deste
podia ser veiculado por distintos suportes, não precisava de ser num poema,
enquanto os conteúdos de Grabato são indissociáveis da forma em que foram
vazados, não existem fora deles.
Grabato não deixou o seu comprometimento como homem por mãos
alheias, não podia era trair as exigências que a poesia convoca. Para Grabato
uma ética da dicção substantiva uma estética da resistência e Parra fica-se
pela metade. É esta a lição que um jovem “poeta” não pode esquecer.
O resto, se a época está de realismos ou de botijas na cama,
e o nome do chefe da caravana que conduz momentaneamente homens, camelos e cães
naquela rota pelo deserto, é indiferente. Até pelo motivo mais concreto:
estamos sempre perdidos. Vem a morte e fará o seu trabalho. Mas convém não
esmorecer e atravessar o deserto como a faúlha que não deixa que as brasas se
apaguem.
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