quinta-feira, 13 de junho de 2013

DE ADONIS: UM CHEIRINHO



Um dos projectos que desenvolverei nos próximos tempos é uma (duas?) antologia de poesia africana. Do Magrebe à África do Sul. Por isso em algumas navegações na net deparei com um número da Courrier, da Unesco, com um entrevista a Tahar Ben Jelloun, que será um dos poetas que traduzirei. Mas o que li surpreendeu-me. Dizia ele, a propósito de grandes nomes da poesia árabe, que não aderia muito à poesia de Adonis, sírio, porque lhe parecia demasiado racional. Os homens nunca deixarão de me espantar. Seremos sempre os literatos de alguém, de vera incandescência romântica.

Bom, de Adonis recebi, por mão amiga, a antologia que dele saiu no Brasil, traduzida por Michel Sleiman (Companhia das Letras, 2012), que achei boa. Adonis, de quem tenho, felizmente, vários volumes, foi sempre um poeta que quis traduzir. Enquanto não o faço aqui deponho fragmentos e alguns poemas provindos desta antologia brasileira.

Atentem na extraordinária Celebração de Beirute, 1982.

Entretanto, para quem ainda não tiver percebido que, apesar dos media e da internet,  existem vários mundos de facto diferentíssimos, e como a queda da Europa pode trazer-nos (a todos) mais dissabores do que aleluias, transcrevo o que aconteceu a Adonis em Amã, em 1990, durante uma celebração duma Intifada palestina, onde leu um poema: «foi acusado por estudantes universitários de cometer blasfémia ao ler os versos “não sabe que deus e o poeta /são dois meninos e dormem na face das pedras”». E dali saiu vivo por pouco.

 
                                       (fragmento)

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
- que fará o amor quando eu me for?

 

 CANÇÕES PARA A MORTE

1

 
A morte quando passa por mim é como se
o silêncio a abafasse
é como se dormisse quando eu dormisse.

 
2

Ó mãos da morte, alonguem meu caminho
meu coração é presa do desconhecido,

alonguem meu caminho

quem sabe descubro a essência do impossível

e vejo o mundo ao meu redor.

 

 
CAMINHO

Caminho e atrás de mim caminham as estrelas
até seu próximo amanhã

o segredo, a morte, o que nasce, o cansaço

amortecem meus passos, avivam meu sangue.

 
Não iniciei a trilha, ainda

não vejo nenhum jazigo

caminho até mim mesmo, até

meu próximo amanhã

caminho e atrás de mim caminham as estrelas.

 

ESPELHO DO SÉCULO XX

Caixão revestido com rosto de menino
livro escrito nas entranhas de um corvo

fera que avança levando uma flor

rocha que respira nos pulmões de um louco

assim é

o século xx.

 
CELEBRAÇÃO DE BEIRUTE, 1982

 
O tempo avança,

na mão um cajado de ossos.

 
A lâmina da insónia
marca o pescoço da noite.

 
Crânios – uns servem sangue
outros se embriagam e deliram.

 
O fogo se suja?

O vento se infla?

 
Fumaça é nuvens.

Nuvens com a forma de cabeças.

 
Letras caídas

são impressões dispersas no chão

- pedaços de corpos.

 
Hoje o horizonte recomendou a seu filho

o vento que não saísse.

 
Como não se cansam as pedras do caminho?




Nem mesmo o sol consegue

iluminar este corpo que sangra sombra.

 
Dias cobertos de pó

têm feições de velhos.

 
Mariposas queimam

subindo a escada do sono.

 
A cinza, princesa,

toma assento e recebe as honras.

 
O míssil, rei,

arrasta a cauda

sobre os corpos dos súbditos.

 
Será a vida um erro

que a matança corrige?

 
Onde está a cova aberta para acolher as lágrimas?

e o buraco que acolherá a alma?

 
A coisa elimina a coisa.

 
Não terá outro seio´

este céu?

 
Esta rosa, de onde lhe vem tanta obstinação?

Está sempre lendo seu amor.

 
O dia tem medo do dia

e a noite se esconde da noite.

 
Agradeço

ao pó que se mistura com a fumaça e a abranda,

ao intervalo entre uma bomba e outra,

ao piso que sempre aguenta meus passos,

agradeço às pedras que ensinam a paciência.

 
Apagou-se a luz.

vou acender a estrela dos meus sonhos.

 
Leva-me, amor,

e me mantém trancado.

 


GUIA PARA VIAJAR PELAS FLORESTAS DO SENTIDO

                                                                      (fragmento)

 

 

O que é a árvore?
           lagoa verde cujas ondas são o vento.

 

O que é o vento?
            alma que não quer
            habitar o corpo.

       

 

O que é a onda?
           imagens em movimento
           na tela do mar.

 

O que é a praia?
           travesseiro para descanso da onda.

 

O que é o negrume?
             útero grávido de sol.

 

O que é a lágrima?
            guerra perdida pelo corpo.

 

O que é o leito?
           noite dentro da noite.

 

O que é o absoluto?
            mênstruo na cabeça.

 

O que é a história?
            cego a tocar tambor.

 
O que é a criação?

           selo na mão da coincidência.

 

O que é o abraço?
           terceiro de dois.

                                          

 

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