Um dos projectos que desenvolverei nos próximos tempos é uma (duas?) antologia de poesia africana. Do Magrebe à África do Sul. Por isso em algumas navegações na net deparei com um número da Courrier, da Unesco, com um entrevista a Tahar Ben Jelloun, que será um dos poetas que traduzirei. Mas o que li surpreendeu-me. Dizia ele, a propósito de grandes nomes da poesia árabe, que não aderia muito à poesia de Adonis, sírio, porque lhe parecia demasiado racional. Os homens nunca deixarão de me espantar. Seremos sempre os literatos de alguém, de vera incandescência romântica.
Bom, de Adonis recebi, por mão
amiga, a antologia que dele saiu no Brasil, traduzida por Michel Sleiman
(Companhia das Letras, 2012), que achei boa. Adonis, de quem tenho, felizmente,
vários volumes, foi sempre um poeta que quis traduzir. Enquanto não o faço aqui
deponho fragmentos e alguns poemas provindos desta antologia brasileira.
Atentem na extraordinária Celebração de Beirute, 1982.
Entretanto, para quem ainda não
tiver percebido que, apesar dos media e da internet, existem vários mundos de facto diferentíssimos,
e como a queda da Europa pode trazer-nos (a todos) mais dissabores do que aleluias,
transcrevo o que aconteceu a Adonis em Amã, em 1990, durante uma celebração
duma Intifada palestina, onde leu um poema: «foi acusado por estudantes
universitários de cometer blasfémia ao ler os versos “não sabe que deus e o poeta /são dois meninos e dormem na face das
pedras”». E dali saiu vivo por pouco.
Nasci e nasceu comigo o deus do
amor
- que fará o amor quando eu me
for?
1
A morte quando passa por mim é
como se
o silêncio a abafasse
é como se dormisse quando eu
dormisse.
Ó mãos da morte, alonguem meu
caminho
meu coração é presa do
desconhecido,alonguem meu caminho
quem sabe descubro a essência do impossível
e vejo o mundo ao meu redor.
Caminho e atrás de mim caminham
as estrelas
até seu próximo amanhão segredo, a morte, o que nasce, o cansaço
amortecem meus passos, avivam meu sangue.
não vejo nenhum jazigo
caminho até mim mesmo, até
meu próximo amanhã
caminho e atrás de mim caminham as estrelas.
ESPELHO DO SÉCULO XX
Caixão revestido com rosto de
menino
livro escrito nas entranhas de um
corvofera que avança levando uma flor
rocha que respira nos pulmões de um louco
assim é
o século xx.
na mão um cajado de ossos.
A lâmina da insónia
marca o pescoço da noite.O vento se infla?
Nuvens com a forma de cabeças.
são impressões dispersas no chão
- pedaços de corpos.
o vento que não saísse.
Nem mesmo o sol consegue
iluminar este corpo que sangra sombra.
têm feições de velhos.
subindo a escada do sono.
toma assento e recebe as honras.
arrasta a cauda
sobre os corpos dos súbditos.
que a matança corrige?
e o buraco que acolherá a alma?
este céu?
Está sempre lendo seu amor.
e a noite se esconde da noite.
ao pó que se mistura com a fumaça e a abranda,
ao intervalo entre uma bomba e outra,
ao piso que sempre aguenta meus passos,
agradeço às pedras que ensinam a paciência.
vou acender a estrela dos meus sonhos.
e me mantém trancado.
GUIA PARA VIAJAR PELAS FLORESTAS
DO SENTIDO
(fragmento)
O que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento.
O que é o vento?
alma que não querhabitar o corpo.
O que é a onda?
imagens em movimentona tela do mar.
O que é a praia?
travesseiro para descanso da onda.
O que é o negrume?
útero grávido de sol.
O que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo.
O que é o leito?
noite dentro da noite.
O que é o absoluto?
mênstruo na cabeça.
O que é a história?
cego a tocar tambor.selo na mão da coincidência.
O que é o abraço?
terceiro de dois.
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