Mário Quintana
Macedonio Fernández, um amigo do pai de Jorge Luís
Borges e um curiosíssimo escritor, escreveu um livro onde jocosamente reúne
primeiros capítulos de obras virtuais e nunca completadas.
É um espantoso “jubileu do fracasso”.
Nunca terei fôlego para tamanha contenção… é como
os haikus, o mais difícil não é fazê-los mas ter a coragem de não os estragar
com a tagarelice, o que raramente acontece.
Porém, semanalmente, lá pinga um primeiro
parágrafo de um conto ou livro, que na maior parte dos casos esqueço
rapidamente, na desarrumação dos cadernos.
Ontem veio-me este:
«Quando
o seu carro embateu a alta velocidade na roda do camião, ainda Pedro Aires não
tinha reflectido sobre se o erro ou pecado natural aos homens resultaria da
perda de uma condição pristina original. Pedro Aires era até aí um homem de
acção, que decidia instintivamente, como se cada situação não passasse de um
implante no seu corpo, todavia distante da promessa do raciocínio. Mas, enfim,
a proximidade da morte actua como um aguilhão e por isso Pedro Aires acordou do
seu coma disposto a ponderar todos os seus actos, desde Adão até ao oitavo uísque
que emborcou na borga com que comemorava a sua eleição como deputado.»
A
propósito de haikus, capturei dois numa Canção do Mário Quintana. Ei-los, vão a
amarelo:
CANÇÃO MEIO ACORDADA
Laranja! grita o pregoeiro.
Que alto no ar suspensa!
Lua de ouro entre o nevoeiro
Do sono que se esgarçou.
Laranja! grita o pregoeiro.
Laranja que salta e voa.
Laranja que vai rolando
Contra o cristal da manhã!
Mas o cristal da manhã
Fica além dos horizontes...
Tantos montes... tantas pontes...
(De frio soluçam as fontes...)
Porém fiquei, não sei como,
Sob os arcos da manhã.
(Os gatos moles do sono
Rolam laranjas de lã.)
Se
eu fosse o Mário Quintana, acabaria por transformar o poema em dois haikus, mas
ainda bem que ele nos deu a alegria de me contrariar.
No
outro poema que cito em baixo também só ficaria com o que pus a colorido:
CANÇÃO DE OUTONO
PARA SALIM DAVI
O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...
Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De carícia a contrapelo...
Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!
Mas
isto sou eu a ler dois poemas de 1940. E o Mário acabou por fazer uma obra magicamente
enxuta, cristalina, e bem-humorada como em poucos. Não sei porquê, cheira-me
que a feliz “leveza” do Jorge de Sousa Braga, teve aqui um mestre.
Partilho
esta ideia de Montale: «Toda a arte que não renuncia à razão, mas que nasce do
choque da razão com algo que não é razão, pode também chamar-se metafísica». Esta
tensão existe, e acho piada que no horizonte da aporia se abeire a metafísica.
Arguto
Valéry: “Todos os políticos leram a História, mas ficamos com a impressão de
que só a leram para daí retirar a arte de reconstituir as catástrofes” – lê-se,
pasme-se, num poema inacabado.
“O
racionalismo mantém com a superstição uma relação de complementaridade”,
defendia Jung, e isto é claríssimo nas ideias-feitas (mágicas) que precisamos
de urgentemente abandonar para reconstruir uma ideia de futuro que construa
virtualidades que, embora sem ferir o fluxo e o ritmo das coisas do presente, rompa a barreira dos artifícios retóricos - os quais habitualmente degeneram em
superstições.
Por
exemplo, a justa ideia de que os homens devem ter todos as mesmas
oportunidades, desencadeou a superstição que infere que os homens são todos
iguais.
Só
quando uma ideia faz nascer uma sensibilidade, um novo discernimento, é que
deixamos de ser apenas intérpretes de projecções passadas e reféns da sedução
da inteligência que naquelas se arma.
ESTUDAR
A NATUREZA
O
girassol não delata.
Não
há peças sobressalentes
Para
a polinização.
Necessitamos
da nostalgia de Deus. Deus já seria um excesso.
Em
frente à paragem do chapa tem uma tasca atamancada – cimento cru e grades
sobre bandas de vermelho pintadas para anunciar uma marca de cerveja - como são
quase todas na periferia de Maputo, ladeada por duas garagens, uma que parece o
Museu do Escape, a outra especializada na recauchutagem de pneus. Engraçado é
os nomes escolhidos para as garagens: a Auto-Motora Passarinho e a Auto-Motora
Passarão. Explicam-me na tasca que ambas pertencem a dois cunhados desavindos,
e que a primeira, a dos escapes, é de alguém de apelido Passarinho, o
que determinou o nome da outra garagem, escolhida por pirraça e sarcasmo.
Mas
a graça completa-se porque descubro este mimo - e isto configura aquilo a que o Jung chamava uma "sincronicidade" - no dia em que começo a ler a obra
completa de Mário Quintana, de onde pesco esta delícia:
POEMINHO DO CONTRA
Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
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