Esta época que precede o Natal é de alguma folga, o que me permite ir aos cadernos catar alguns textos para o lote de salvados. Este é o primeiro, o lençol que li em Novembro passado em Lisboa para a apresentação da segunda novela do Valério Romão. Cá fica:
Num
conto magnífico de Ray Bradbury narra-se como a mulher mais gorda do mundo vai
ao psicanalista e roga, carente, sr. doutor preciso absolutamente de engordar,
o meu marido já olha para as outras mulheres. O psicanalista fica tão
desconcertado que lhe pede para precisar as suas motivações. E então ela conta,
o meu marido trabalha no circo, é o homem que é disparado no canhão, mas na
verdade ele é um artista, um pintor de paisagens. O suporte para as suas
pinturas é a minha pele, e assim que ele me viu percebeu que tinha em mim a
superfície para a sua obra magna, algo tão complexo e rico como a Capela
Sistina… e então durante sete ou oito páginas ela descreve a obra do marido, as
suas imagens, com uma minúcia como só se encontra no escudo de Aquiles, em
Homero, onde os horizontes se sobrepõem, encantando-nos, com o seu suceder sem
fim, e, depois da descrição que nos deixa sem fôlego, lastima-se porque já não
tem uma réstia de pele que esteja por tatuar e daí que necessite de engordar
para que a superfície da sua pele dilate e volte a ter espaços em branco, antes
que o marido se proponha continuar a sua obra na pele das mulheres gordas que
já catrapisca na duração da sua elipse como homem-bala. O psicanalista fica tão
fascinado pela descrição da pintura que pede, Mostra-me a obra do seu marido.
A
paciente anui ao pedido e despe-se e diante dos olhos do psicanalista
apresenta-se uma pele incólume, nua, sem um único traço, cor ou desenho
tatuados.
E
o conto acaba no momento em que os olhos do psicanalista desfazem a sua crença,
enrolado, como nós leitores, pelo transe da narrativa, ainda que não saibamos
se ele foi também tomado pela alucinação.
Este
conto é uma das mais magistrais provas do sortilégio da ficção e age em nós
como um truque de ilusionismo, poucas vezes repetido com esta perícia.
Pois
começo por ousar dizer que o Valério nos conduz com a mesma habilidade,
conseguindo construir diante do leitor “bolsas de espaço intersticial” onde se
desdobram figuras, numa poderosa cenografia da miragem – sendo este, para além
dos assuntos de que trata, o seu primeiro condão: ler um livro do Valério é um
jogo que nos agarra do princípio ao fim, num acto de sucção. Como é que isto
nos acontece?
Havia
um grande editor francês, o Jean Paulhan, que um dia recusou um manuscrito a
Henri Calet nestes termos: “É genial, mas é liso!”. Esta é uma particularidade
de que o Valério Romão não padece: nenhum dos seus livros é liso, como a maior
parte da literatura de hoje, que confunde a novelização com o romance. A
novelização é o género com que dantes se adaptava a livro alguns filmes de
êxito, e cujo fluir narrativo era naturalmente condutivista como o cinema,
carecendo as suas personagens de espessura. Pelo contrário, tanto Autismo, como este O da Joana erguem-se contra a lisura e apresentam picos, pregas,
rugosidades, descidas verticais ao íntimo das personagens ou das cidades, zooms
e travellings, zonas de opacidade e esclarecedores flash-backs, num trânsito de
duplo sentido que faz com que as criaturas e a urbe sejam um mútuo reflexo
especular invertido.
Este
mecanismo narrativo - o jogo da inversão - é aliás exposto pelo autor que por
duas vezes no texto convoca a Alice, de Lewis Carrol, como no momento em que
Joana pensa: «gostaria de ter uma faca
para poder fazer uma incisura no corpo frágil e plástico desta miúda confusa e,
entrando nela aos poucos, pelas costas, magicamente, como no espelho da Alice,
até lhe ocupar o espaço todo do corpo, numa invasão de parasita, carregá-la
como uma segunda pele…».
Que
conta pois O Da Joana? Simplesmente
o percurso mediante o qual uma mulher habituada «a preparar sempre tudo»,
grávida de uma criança que espera com tal afinco que já tem um quarto mobilado
para ela há oito anos, quarto este limpo todos os dias, e que já foi remodelado
quatro vezes e pintado todos os anos, uma mulher tão prevenida que até já se
familiarizou com a vista aérea da maternidade pelo Google Maps; o livro,
afinal, conta a inversão especular de uma mulher que estava grávida e que acaba
por ficar dentro do seu útero, inconsútil com a sua placenta.
Claro
que falamos figurativamente, ou seja, psiquicamente esta mulher fica em
clausura dentro da placenta que gerou – é uma Alice que passou para o outro
lado do espelho e que vive uma metamorfose truncada.
Então,
nessa condição, Joana descobre que toda a realidade é espúria porque é
irrigada, tal como as placentas, por pontos de fuga que nos minam qualquer
ilusão do controle, pelo que à beira de perder o seu, Joana, numa verticalidade
trágica agarra-se à única palavra que lhe serve de salvo-conduto para que «a
realidade não lhe fuja por inteiro»: a palavra morrer, que agónica repete como
um mantra. Eis um dos momentos mais fortes do romance e dir-se-ia que nele,
Valério Romão, que vem da filosofia, responde a Descartes e à sua dúvida
metódica, da forma mais inesperada e paradoxal: “eu morro, logo sou…” - única
certeza daquela mulher a quem a loucura submerge num discurso ininterrupto que
a vaza para o “neutro”, a tal ponto que até os
tectos lhe falam.
Mas
por que é que isto funciona tão bem? O romancista turco Oran Pamuk explica:
“O prazer real de ler um romance surge com a
capacidade de ver o mundo, não a partir de fora, mas pelos olhos dos
protagonistas que habitam esse mundo. (…)”.
Portanto,
a cartografia do espaço interior às personagens reproduz-se na cartografia do
espaço exterior, e as paisagens dentro do romance convertem-se, como quem não
quer a coisa, numa extensão, numa parte do estado mental dos protagonistas, e
isto acontece, repito, como quem não quer a coisa – daí que que o romance nos
agarre, o sermos capturados.
Mas
há outro mecanismo de captura nos processos técnicos do livro. O Valério faz
progredir a narração em frases longas, que não separam os eventos das
descrições, as reflexões das situações ou dos diálogos, e que sabem entrançar
as emoções e os pensamentos dos protagonistas com os objectos que os rodeiam.
Este processo narrativo torna-nos mais íntimo das personagens porque se desenrola
como se conversasse com o leitor.
Em
Portugal, este modo de urdidura polifónica da frase, que introduz vários planos
temporais, várias lentes e vários movimentos de câmara no fluxo de uma frase,
foi realizado com perícia por José Saramago e às vezes por Lobo Antunes, e isto
coloca-nos diante do assombro técnico que este pequeno livro é.
O da Joana
aparentemente tem uma estrutura mais simples que o primeiro da Trilogia, o Autismo, mas é uma ilusão. Tecnicamente
é um livro mais ousado porque não só consegue condensar em 150 páginas uma rede
infinita de sinais e de memórias, ao arrepio da simplicidade da sua trama – uma
mulher a quem rebentam as águas vai para o hospital ter a sua criança -, como a
sua unidade temporal – o enredo passa-se em poucas horas da vida das
personagens – obrigava a um muito maior prova de fôlego quanto à perícia
romanesca de Valério Romão. Ora a sua habilidade para o detalhe ampliou-se, e
aquelas duas exigências foram plenamente superadas.
Há
ainda uma outra qualidade elencada por Pamuk e que se patenteia em O da Joana. Diz o romancista turco, “Num romance bem construído, tudo está
relacionado com tudo, e essa rede de relações forma a atmosfera do livro e, ao
mesmo tempo, aponta para o seu centro secreto”, de modo, que “achamos os indicadores desse centro em toda
a parte e que o centro conecta todas as partes do romance”. Isto é muito
nítido neste livro, dou como um exemplo entre dezenas, o teor do documentário
que Jorge, o marido, vai espreitando numa sala de espera, e que se debruça
sobre a vida dos cegos e a sua condição, dificuldades e superações, num pequeno
aparte cuja significação se avolumará. O que Tchecov explicava numa lei
dramatúrgica: se uma espingarda aparece sobre uma chaminé no primeiro acto a
arma terá de ser utilizada no terceiro acto.
Quero
frisar ainda um último aspecto. Um bom romance rouba-nos o tempo da sua leitura
mas compensa-nos com uma intensidade que não experimentaríamos sem ele. Ou seja
rouba-nos um fragmento do nosso tempo linear mas restitui-nos um naco de tempo
magnificado, ao contagiar-nos com o seu campo de forças. Ainda que o seu tema
nos agrida a sua energia enreda-nos, vivifica-nos. Daí que não concorde com o
tom pesaroso com que algumas crónicas comentaram esta novela, com críticos a
referirem-se ao seu realismo cru, selvático até. Não sei porque no cinema
aceitam tudo e face à literatura reagem como puritanas galinholas. O livro,
sim, convida-nos a enfrentar temas duros mas a sua integridade, o seu ritmo, a
ressurreição narrativa com que a sua leitura nos cavalga, são banhados por uma
luz que cura.
Por
outro lado, esta ficção, o que ainda não vi referido, polvilha-se aqui e ali de
algum humor que matiza o trágico. Vou dar três breves exemplos:
Pág.,
52: «pondo à mostra a barriga que parece
um daqueles pães-de-ló extraordinários, que mirram imediatamente assim que
apanham uma corrente de ar»;
Pág.
97: «…a miúda suspende as lágrimas por um
instante, o tempo de indagar, pelo olhar, as intenções de Joana, detém-se nela,
ciclicamente, como se auscultasse a frescura de uma alface…»;
E
diz-lhe o tecto, na pág 91: «…tu devias
estar no controle da situação, ser dona do teu tempo, o filho é teu, por mais
poder que esta gente detenha sobre a maneira de o teres, tu tens o poder da
identidade e da maternidade, e pareces indefesa até ao tutano, até um tecto te
dá lições de moral, Joana…»
E
podiam-se ir buscar mais uma dezena de bons exemplos.
Enfim,
dizia o Godard, uma bofetada só é bofetada à segunda, à primeira é unicamente
espanto. No caso do Valério, a bofetada repete-se e confirma-o como um dos
melhores novos valores da narrativa portuguesa… mas no caso de O da Joana também se repete o espanto,
pois creio ser este de novo um dos melhores romances do ano. Basta pensar-se
que o facto de podermos conhecer, sinopticamente, o seu assunto, a sua trama,
ao contrário de tantos romances de hoje, não lhe invalida o interesse, pelo
contrário, pois o seu desafio, para além da qualidade humana da história e das
suas soluções, está no «como» – qualidade que é para poucos. Como o Bradbury…
ou o Valério.
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