sábado, 22 de novembro de 2014

E QUEM NÃO TRABALHA NO CIRCO? VALÉRIO ROMÃO


Esta época que precede o Natal é de alguma folga, o que me permite ir aos cadernos catar alguns textos para o lote de salvados. Este é o primeiro, o lençol que li em Novembro passado em Lisboa para a apresentação da segunda novela do Valério Romão. Cá fica:



Num conto magnífico de Ray Bradbury narra-se como a mulher mais gorda do mundo vai ao psicanalista e roga, carente, sr. doutor preciso absolutamente de engordar, o meu marido já olha para as outras mulheres. O psicanalista fica tão desconcertado que lhe pede para precisar as suas motivações. E então ela conta, o meu marido trabalha no circo, é o homem que é disparado no canhão, mas na verdade ele é um artista, um pintor de paisagens. O suporte para as suas pinturas é a minha pele, e assim que ele me viu percebeu que tinha em mim a superfície para a sua obra magna, algo tão complexo e rico como a Capela Sistina… e então durante sete ou oito páginas ela descreve a obra do marido, as suas imagens, com uma minúcia como só se encontra no escudo de Aquiles, em Homero, onde os horizontes se sobrepõem, encantando-nos, com o seu suceder sem fim, e, depois da descrição que nos deixa sem fôlego, lastima-se porque já não tem uma réstia de pele que esteja por tatuar e daí que necessite de engordar para que a superfície da sua pele dilate e volte a ter espaços em branco, antes que o marido se proponha continuar a sua obra na pele das mulheres gordas que já catrapisca na duração da sua elipse como homem-bala. O psicanalista fica tão fascinado pela descrição da pintura que pede, Mostra-me a obra do seu marido.
A paciente anui ao pedido e despe-se e diante dos olhos do psicanalista apresenta-se uma pele incólume, nua, sem um único traço, cor ou desenho tatuados.
E o conto acaba no momento em que os olhos do psicanalista desfazem a sua crença, enrolado, como nós leitores, pelo transe da narrativa, ainda que não saibamos se ele foi também tomado pela alucinação.
Este conto é uma das mais magistrais provas do sortilégio da ficção e age em nós como um truque de ilusionismo, poucas vezes repetido com esta perícia.
Pois começo por ousar dizer que o Valério nos conduz com a mesma habilidade, conseguindo construir diante do leitor “bolsas de espaço intersticial” onde se desdobram figuras, numa poderosa cenografia da miragem – sendo este, para além dos assuntos de que trata, o seu primeiro condão: ler um livro do Valério é um jogo que nos agarra do princípio ao fim, num acto de sucção. Como é que isto nos acontece?
Havia um grande editor francês, o Jean Paulhan, que um dia recusou um manuscrito a Henri Calet nestes termos: “É genial, mas é liso!”. Esta é uma particularidade de que o Valério Romão não padece: nenhum dos seus livros é liso, como a maior parte da literatura de hoje, que confunde a novelização com o romance. A novelização é o género com que dantes se adaptava a livro alguns filmes de êxito, e cujo fluir narrativo era naturalmente condutivista como o cinema, carecendo as suas personagens de espessura. Pelo contrário, tanto Autismo, como este O da Joana erguem-se contra a lisura e apresentam picos, pregas, rugosidades, descidas verticais ao íntimo das personagens ou das cidades, zooms e travellings, zonas de opacidade e esclarecedores flash-backs, num trânsito de duplo sentido que faz com que as criaturas e a urbe sejam um mútuo reflexo especular invertido.
Este mecanismo narrativo - o jogo da inversão - é aliás exposto pelo autor que por duas vezes no texto convoca a Alice, de Lewis Carrol, como no momento em que Joana pensa: «gostaria de ter uma faca para poder fazer uma incisura no corpo frágil e plástico desta miúda confusa e, entrando nela aos poucos, pelas costas, magicamente, como no espelho da Alice, até lhe ocupar o espaço todo do corpo, numa invasão de parasita, carregá-la como uma segunda pele…».
Que conta pois O Da Joana? Simplesmente o percurso mediante o qual uma mulher habituada «a preparar sempre tudo», grávida de uma criança que espera com tal afinco que já tem um quarto mobilado para ela há oito anos, quarto este limpo todos os dias, e que já foi remodelado quatro vezes e pintado todos os anos, uma mulher tão prevenida que até já se familiarizou com a vista aérea da maternidade pelo Google Maps; o livro, afinal, conta a inversão especular de uma mulher que estava grávida e que acaba por ficar dentro do seu útero, inconsútil com a sua placenta.
Claro que falamos figurativamente, ou seja, psiquicamente esta mulher fica em clausura dentro da placenta que gerou – é uma Alice que passou para o outro lado do espelho e que vive uma metamorfose truncada.
Então, nessa condição, Joana descobre que toda a realidade é espúria porque é irrigada, tal como as placentas, por pontos de fuga que nos minam qualquer ilusão do controle, pelo que à beira de perder o seu, Joana, numa verticalidade trágica agarra-se à única palavra que lhe serve de salvo-conduto para que «a realidade não lhe fuja por inteiro»: a palavra morrer, que agónica repete como um mantra. Eis um dos momentos mais fortes do romance e dir-se-ia que nele, Valério Romão, que vem da filosofia, responde a Descartes e à sua dúvida metódica, da forma mais inesperada e paradoxal: “eu morro, logo sou…” - única certeza daquela mulher a quem a loucura submerge num discurso ininterrupto que a vaza para o “neutro”, a tal ponto que até os tectos lhe falam.
Mas por que é que isto funciona tão bem? O romancista turco Oran Pamuk explica:
O prazer real de ler um romance surge com a capacidade de ver o mundo, não a partir de fora, mas pelos olhos dos protagonistas que habitam esse mundo. (…)”.
Portanto, a cartografia do espaço interior às personagens reproduz-se na cartografia do espaço exterior, e as paisagens dentro do romance convertem-se, como quem não quer a coisa, numa extensão, numa parte do estado mental dos protagonistas, e isto acontece, repito, como quem não quer a coisa – daí que que o romance nos agarre, o sermos capturados.
Mas há outro mecanismo de captura nos processos técnicos do livro. O Valério faz progredir a narração em frases longas, que não separam os eventos das descrições, as reflexões das situações ou dos diálogos, e que sabem entrançar as emoções e os pensamentos dos protagonistas com os objectos que os rodeiam. Este processo narrativo torna-nos mais íntimo das personagens porque se desenrola como se conversasse com o leitor.
Em Portugal, este modo de urdidura polifónica da frase, que introduz vários planos temporais, várias lentes e vários movimentos de câmara no fluxo de uma frase, foi realizado com perícia por José Saramago e às vezes por Lobo Antunes, e isto coloca-nos diante do assombro técnico que este pequeno livro é.
O da Joana aparentemente tem uma estrutura mais simples que o primeiro da Trilogia, o Autismo, mas é uma ilusão. Tecnicamente é um livro mais ousado porque não só consegue condensar em 150 páginas uma rede infinita de sinais e de memórias, ao arrepio da simplicidade da sua trama – uma mulher a quem rebentam as águas vai para o hospital ter a sua criança -, como a sua unidade temporal – o enredo passa-se em poucas horas da vida das personagens – obrigava a um muito maior prova de fôlego quanto à perícia romanesca de Valério Romão. Ora a sua habilidade para o detalhe ampliou-se, e aquelas duas exigências foram plenamente superadas.
Há ainda uma outra qualidade elencada por Pamuk e que se patenteia em O da Joana. Diz o romancista turco, “Num romance bem construído, tudo está relacionado com tudo, e essa rede de relações forma a atmosfera do livro e, ao mesmo tempo, aponta para o seu centro secreto”, de modo, que “achamos os indicadores desse centro em toda a parte e que o centro conecta todas as partes do romance”. Isto é muito nítido neste livro, dou como um exemplo entre dezenas, o teor do documentário que Jorge, o marido, vai espreitando numa sala de espera, e que se debruça sobre a vida dos cegos e a sua condição, dificuldades e superações, num pequeno aparte cuja significação se avolumará. O que Tchecov explicava numa lei dramatúrgica: se uma espingarda aparece sobre uma chaminé no primeiro acto a arma terá de ser utilizada no terceiro acto.
Quero frisar ainda um último aspecto. Um bom romance rouba-nos o tempo da sua leitura mas compensa-nos com uma intensidade que não experimentaríamos sem ele. Ou seja rouba-nos um fragmento do nosso tempo linear mas restitui-nos um naco de tempo magnificado, ao contagiar-nos com o seu campo de forças. Ainda que o seu tema nos agrida a sua energia enreda-nos, vivifica-nos. Daí que não concorde com o tom pesaroso com que algumas crónicas comentaram esta novela, com críticos a referirem-se ao seu realismo cru, selvático até. Não sei porque no cinema aceitam tudo e face à literatura reagem como puritanas galinholas. O livro, sim, convida-nos a enfrentar temas duros mas a sua integridade, o seu ritmo, a ressurreição narrativa com que a sua leitura nos cavalga, são banhados por uma luz que cura.
Por outro lado, esta ficção, o que ainda não vi referido, polvilha-se aqui e ali de algum humor que matiza o trágico. Vou dar três breves exemplos:
Pág., 52: «pondo à mostra a barriga que parece um daqueles pães-de-ló extraordinários, que mirram imediatamente assim que apanham uma corrente de ar»;
Pág. 97: «…a miúda suspende as lágrimas por um instante, o tempo de indagar, pelo olhar, as intenções de Joana, detém-se nela, ciclicamente, como se auscultasse a frescura de uma alface…»;
E diz-lhe o tecto, na pág 91: «…tu devias estar no controle da situação, ser dona do teu tempo, o filho é teu, por mais poder que esta gente detenha sobre a maneira de o teres, tu tens o poder da identidade e da maternidade, e pareces indefesa até ao tutano, até um tecto te dá lições de moral, Joana…»
E podiam-se ir buscar mais uma dezena de bons exemplos.
Enfim, dizia o Godard, uma bofetada só é bofetada à segunda, à primeira é unicamente espanto. No caso do Valério, a bofetada repete-se e confirma-o como um dos melhores novos valores da narrativa portuguesa… mas no caso de O da Joana também se repete o espanto, pois creio ser este de novo um dos melhores romances do ano. Basta pensar-se que o facto de podermos conhecer, sinopticamente, o seu assunto, a sua trama, ao contrário de tantos romances de hoje, não lhe invalida o interesse, pelo contrário, pois o seu desafio, para além da qualidade humana da história e das suas soluções, está no «como» – qualidade que é para poucos. Como o Bradbury… ou o Valério.



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