Acabei um livro de
poesia, As Flores do Náufrago, que
reúne algum do material que fui escrevendo em 2013/2014, e resolvi fechar a
loja. Não quero dizer que dentro de portas não continue a ebulição, não estará
é exposta na montra. E por isso se diz na nota final:
«Deixo na gaveta dois livros inéditos, que,
curiosamente, são os mais ambiciosos e os que mais estimo – As
Feridas de Heitor, de 2008, e Epílogo
Sobre a Morte dos Oceanos, de 2010, e estão na gaveta em trabalhos de plaina e lima e
a ver se resistem à traça (se não, nada se perdeu) –, e um livro no prelo, Harpo Marx na Cova dos Leões, que sairá
pela Abysmo.
Este, As
Flores do Naúfrago, é o último livro de poesia que organizarei, pelo menos no próximo lustro.
Agora chegou o momento da prosa que, como eu a
entendo, tem afluentes poéticos que se farta. A poesia fica muito bem entregue
– há gente magnífica e novas hidrografias a romper.
Se deste meu golpe de rins nada resultar, sempre
podemos dizer como o Nemésio: “A corça
virou-lhe as ancas/ E tudo o mais é destino”.»
Aqui deixo os poemas com que abro o primeiro
capítulo e o segundo e o poema que fecha o livro:
de ERRATAS
onde se lê
CREIA
QUEM LÊ, DIZIA:
Este
verso não garante escolta,
tão
pouco é a pousada espanhola
onde
os hóspedes trocam por mortadela
a
chuva que traziam na bagagem.
Nesta
quadra, ervada pela profunda
desconfiança
que o zen tem
pela
palavra, o bolor
alastra,
canino, rectifica.
Este
terceto não é de Dante
nem
nele um albatroz manco, toc
toc,
se alapa na retina de Baudelaire.
Pobre
soneto temperado no gume
da
pequena espada wakisahi,
prenhe
na hemorragia dos bambus.
leia-se:
CORPOS
DE VERÃO, CORVOS DE INVERNO
A
brecha entre as nuvens,
duas
brechas entre nuvens,
o
azul que flui pleno
como
um cetáceo,
uma
nuvem isolada
e
a esgarçar-se,
mais
grisalha
que
uma lágrima:
tantos
adereços que o tempo
mobiliza
para ser.
Corpos
de verão,
corvos
de inverno:
só
o ar admite a corporeidade.
Entretanto,
o pior de tudo
é
não habitar
num
mundo físico.
de
OS DETRITOS DE POMPEIA
Janela
roubada, a minha vida -
eu
que em miúdo assoava
o
nariz aos navios. Agora,
imagina-te
empenhado num duelo
de
esgrima. Se no tinir das espadas
te
assalta a dúvida, Terei regado
esta
manhã as begónias, a resposta
não
chegará a tempo de impedir
o
ferro de te atravessar as tripas.
O
bosque alça-se em negro fundo,
a
meio perla-se o prado -
enquanto
a minha cabeça
se
descasca para dentro.
Importa
saber se mantens intacta,
ferina
e imediata, a confiança na intuição.
Tantas
coisas que te atormentam são
a
montanha russa com que os teus fantasmas
se
divertem, os que gratos
pela
insistência com que familiarizas
no
mundo a tua irrealidade, te
cedem
fotogramas com os
detritos
de Pompeia - que nunca viste.
Se
bem que inestimáveis aras
do
desejo, para mim, para ti,
estes calendários têm o ar
dum tempo que já passou.
estes calendários têm o ar
dum tempo que já passou.
Nem
pestanejo, meto-os no lixo.
Como
estes versos que aqui deixo.
SHORT LIST?
para
o Cotrim, o Valério, a Inês, a Joana, a Teresa e o Helder Macedo, pelas razões que eles conhecem
Sentir o cansaço nos ossos:
a linha divisória,
o momento de passar à sabotagem
e de me abster de aliviar
Deus do tédio.
Novo rubor e desígnio.
Julgar que a serenidade busca os
clamores
da «luz absoluta» é uma tola ideia fixa
que tem de ser banida,
como a de cavalgar o crocodilo.
Preferia cavalgar o Shakespeare,
que mongo cavalga a besta
para demonstrar que tipo de sangue
lhe corre nas veias e um rudimento
de magia lhe veda os furos?
Quando muito, supor que em cada fissura
da realidade nasce um lírio,
a culminância do limo,
esse sim, pioneiro,
e que o negativo de Deus
é unicamente outro Deus em gestação.
Abdiquei de ser um homem de armas
por odiar os colectivos,
sou mais da dança, da espontaneidade
sem remoto controle, a sós
ou com a breve nata
do amor batida em castelo.
Escorregar no limo
e bater com as costas na pedra
é que promete o lírio.
Um rio com um kilt escocês.
Fino como este copo que me entranha.
Sem comentários:
Enviar um comentário