O que parece impossível pode acontecer: na Abysmo
reuniram-se uma série de amigos escritores que em vez de rivalizarem entre si
dialogam, em vez de competir riem mutuamente, em vez de serem egoístas discutem
os livros uns dos outros, na tentativa, muitas vezes ainda em embrião, de que
cada um dê o melhor de si na senda do seu projecto. Isto é raro e deve ser
mantido, e vale mais que contractos milionários em editoras que só têm para
oferecer relações de utilidade.
Pior, estamos todos evidentemente irresignados com as nossas
situações pontuais, mas não com o mundo, o que nos leva a todos – e esta é
outra característica comum – a afirmar e a agir, em vez de nos confinarmos à
energia do ressentimento.
Não somos nem queremos ser “marginais profissionais”, ou “revolucionários
façanhudos”, com morais bicudas que não admitem transigir com a ética,
unicamente escritores que fazem aquilo em que acreditam, convicta e com o
máximo de verdade e persuasão possíveis.
Parece que isto dá azo a todas as interpretações malsãs e
equívocos. Paciência.
É engraçada a minha história com o Cotrim e como ela tem
dado azo a tantas desembocaduras.
Não me lembro exactamente do dia em que o conheci e que
entrámos imediatamente em empatia. Sei que já convergimos maduros na amizade e
que sempre nos divertimos juntos. Fomos cúmplices várias vezes: tentámos vender
histórias às televisões, em várias edições que publiquei sobre indicação dele
quando tive uma pequena editora, a Íman (olá Vera Tavares, olá Pedro Nora, olá
João Chambel, olá Daniel Lopes, olá Jaime Rocha, olá Vicente Franz Cecim, olá
Nicodemos Santos, olá Nuno Torres, olá António Rodrigues, olá Vergílio Alberto
Vieira, olá José Mário Silva, olá Teresa Aica Barios, olá Diniz Conefrey, olá
Ondjaki, olá João Jesus de Paes Loureiro, olá Vasco Baptista Marques, olá Celso
Martins, olá Paulo Ramalho, olá Maria Velho da Costa, olá Rui Tavares, olá Helder
Moura Pereira, olá José Amaro Dionísio, olá Teresa Noronha, olá Amadeu Baptista, olá José Teófilo Duarte… - meus cúmplices,
autores, tradutores, sócios da Íman), em projectos e desânimos vários… mas
divertíamo-nos sempre como brutos. E às vezes divertíamo-nos de uma forma tão
desproporcionada que um dia o nosso almoço, regado como soía acontecer na corte
de Salomão, acabou comigo com a cabeça do úmero esmigalhada.
Em consequência do qual passei um semana no hospital,
assistindo a todos os bombardeamentos de Cabul. De onde saiu um dos meus melhores poemas de
sempre (um ribeirinho de dezoito páginas em que endereço uma carta ao poeta
sírio Adonis, e que depois seria publicado no livro «Combate de Flautas», pela
&etc.).
Não. Não foi um caso de violência doméstica. Eu havia
comprado uma ópera brasileira «Guarani», e discutíamos a ópera italiana contra
a alemã. Ele queria à viva força levar o CD para gravar, sem eu o ter ouvido, e
eu insistia na devida necessidade de eu ter a primazia. E a meio da praceta do
Camões ele, de brincadeira, agarra-me no cd e dá-me um piparote com a anca. Eu
surpreendido pelo inusitado encosto da nave Apolo 13 dei um mau passo para o
lado, tropecei numa pedra da calçada e caí desamparado sobre a caldeira de uma
árvore tendo batido com o ombro numa esquina da caldeira.
A única coisa que tenho a lamentar é que nunca ouvi a ópera
Guarani.
Portanto, devo ser o único autor no mundo que parte os ossos
sempre que almoça com o seu editor.
Isto liga.
Mas isso não me dá direitos de propriedade. Portanto ao
contrário do que diz a Isabel Coutinho (por amabilidade, o que me alegra) não
sou co-proprietário nem co-editor da Abysmo.
Aquilo é mesmo dele, do má-raça-Cotrim, e nós, os seus
amigos e autores, estamos todos interessadíssimos em que resulte, e por isso
falamos uns com os outros, mas os livros saem como saem porque é ele quem os
faz e porque ele os faz como o poeta que é – o resto são balelas.
Claro que a amizade pode ser uma espécie de
proporcionalidade que é indeterminável e que vou tentar arrastá-lo para o
casamento da minha irmã (pá, temos gim, grappa, uísque, uma piscina e uma
cantoria infindável), mas isso são outras favas por contar.
Famílias
ResponderEliminarMuito bonito mas a minha parte simplória suspeita que a escrita não passa de uma expressão feliz do medo. Será isso que vos une? Pessoalmente, se não fosse tão cobarde quanto os mortais, pelo menos cinco mil ossos estariam - deliberadamente - esmigalhados. Sem moralizaçõezinhas a categorizar e procurando conter a raiva do órfão, acho que, quem tende a eito na via do erro, deve piscar o olho à marginal. Porque não?
Viva Cabrita. Foi com muita satisfação que ainda à pouco li um artigo no Diário de Notícias sobre a Abysmo. Só o mentor espiritual deste novo projecto do João Paulo Cotrim partiria os ossos num jantar desabrido e salomónico. Estou feliz pela editora e pelas escolhas que tem feito... a coisa promete e com ou sem ressentimento urge que as pessoas se encontrem e saibam estar à volta daquilo para que vivem e não o que as sustenta nesta parvónia materialista e uniracionalista. Claro, com o nome da editora veio-me logo à memória Os Abysmos da Mão, é que os poetas tocam-se... onde menos se espera.
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