quarta-feira, 17 de outubro de 2018

DE ANATOMIA COMPARADA: UM RESUMO


A este livro, hoje nomeado finalista do prémio Pen Clube, apresentei-o assim,
num textículo na sua última página:

“Anatomia Comparada dos Animais Selvagens
– um título inspirado em Diderot, para quem «a poesia quer
qual­quer coisa de enorme, de bárbaro e de selvagem» –,
que tem o subtítulo irónico de Conversas em quadra, tercetos e sonetos,
é a um tempo um livro medidativo, lavrado pela tensão
entre as circunstâncias e a necessidade de um movimento ascensional
que tem o seu foco no vazio, na ausência de Deus,
e um livro de transbordo,
que tem no amor a única saída, pelo que fecha com um ciclo de sonetos
narrativos de feição lírica,
género que o autor só admitiu cultivar depois da maturidade.”



Para os que o leram: introduzi alteraçoes em dois dos poemas que aqui
deixo.


De Conversas em Quadra




7. (intermezzo para uma recordação feliz)

O trigo afinal rescendia a tigre, naquela
tarde em que as minhas mãos indefesas
julgaram encontrar entre as tuas pernas
um cristal. Era uma das minhas primeiras

idas ao campo e lera, na camioneta
da carreira, A Peste, mas nada quebrara
nos meus pulsos o desejo felino
que ali reaproximou o meu século

daquele poder angélico que as tuas pernas
perfilhavam. E ficámos mais felizes
do que a águia, que há milénios,
naquele lugar, roubava os anhos.



11.
O cego mira a flor, a flor
sorri. Alucinação que fende
um mar de luz, ou algo
que despende a vida, até

que pela ausência um trovão
lampeja? O céu não pode
impedir‑se de ladrar,
mas nós podemos calar.

Se de novo olharmos o mar,
humildes, e nos seus corais
dissiparmos de novo a crueldade,
como a flor que floresce

para o cego. O que nos sobressalta
é o apego das areias, esquecidos
do vento, até que a doença mostre
a glande? Voltemos ao mar.



de Conversas em Tercetos



1.       da arte
2.        
O essencial é estancar a hemorragia,
despertar no verso a pedra‑pomes
que se afeiçoava aos lanhos

no queixo quadrado do meu pai;
ou isso, ou rapinar, furtando‑me
à confiança e aos seus desastres.

Como em miúdo as castanhas
que surripiava na mercearia
do rés‑do‑chão enquanto o pigmeu

com cara de ovo (cada um tem o Virgílio
que pode) e orelhas de abano pesava
as línguas de bacalhau e os cartuchos

de rebuçados e a minha mãe se embuçava
de vergonha recurvando as costas
para não ser vista. Mas

na minha mão rebrilhavam
as apetecidas e a sua casca macia
era clemente. Na idade

em que os navios mirram ao longe
e a malícia não se submete ainda às leis
da gravidade. Nem as comia,

guardava‑as numa lata com botões,
pregos e alguns cromos dos magriços.
O fito era embalsamá‑la em susto,

expor naquele redondo resumo
o inatingível acanhamento de sua vida.
Não o saberia ainda, intuía

apenas que o mundo precisava
de impulsos, cansado do medo,
do cochicho, da decência

de aceitar a impossibilidade de lobrigar
nos intervalos da chuva a Lollobrigida
que me fascinara num cartaz,

da desvantagem de renunciar ao fruto
por indolência do arbítrio.
Repeti três quatro vezes o gamanço

e as chineladas em casa não
me desmanchavam o riso ou podiam
trazer receio a quem perseverara

na senda do delito, pois nomeava‑se
assim esse looping de gaivota
da criança que descobre

numa castanha uma intensidade
só sua, sem preço ou penhora
atribuíveis. Seria de sermos pobres

aquele terror a prestações
de minha mãe, das unhas
nos crescerem para dentro

dos panarícios e de não
sonharmos com viagens mas
com aerogramas que lembravam

guardanapos dobrados num abraço.
Mas naquela dúzia de castanhas rapinadas
para trespasse da alma de minha mãe,

que nunca mais foi a mesma
ou pelo menos me tirou da catequese
num assomo de vergonha, descubro

hoje o mútuo consentimento
com que a arte se disfarça
de irrelevante para poder capturar

o que não está à venda, o que nunca
se expôs e vibra quando se estala
a jarra e o ar de dentro sorve

o de fora
com a sua boca
silente.



7. Excídios

Devoram ovos de formiga, escreve
Cabeza de Vaca sobre os sioux.
Assim matavam a fomeca.

Sobre o tamanho das formigas
ou se, em cachos, fariam sombra
ao caviar, nada adianta. Continua,

«e comem terra e madeira e esterco
de veados, e outras iguarias que deixo
de contar…» – e cresce‑nos a água

na boca. Problemas que os brancos
atalharam exterminando‑os ou pondo‑os
ao fiapo, muito atrelados ao fundo do gargalo.

Já o excídio dos astecas era intrínseco,
com facas de sílex e varas de fogo
desorbitavam os corações.

Julgavam‑se tão responsáveis
pela mansuetude do clima
e dos corpos celestes

que não aceitavam a clemência
e Tlacahuepan rejeitou até a honra
de ser vice ‑rei, exigindo a pedra

do sacrifício. Isto não contou
o australiano, no seu filme,
onde mentiu a troco

de pequenas intensidades.
E afinal lê‑se nas tábuas enceradas
dos astecas como a graça não chega,

efémero trevo, e não são dispensáveis
a coragem, a doçura e a renúncia.
Quinhentos anos depois a palavra

de ordem é não ao sacrifício
e a minha vida é um pequeno seixo
que um deus menor chupa

na canícula para sentir na boca
o frescor das azedas, um deus
manco a quem já falta o delírio

dos bagos. E as fitas estão aí
tão ocas que nenhum punhal
lhes encomenda o coração.



De Conversas em Soneto, três Trípticos Tropicais (ou sonetos com contexto)




2. A palafita assustada

«– Pai, como se processa um soneto?
– Como se processa? Bom, é uma palafita assustada que corre em catorze pés…
– Catorze, nem mais uma?
– Bom, o Rimbaud fez tudo com vinte pernas… mas isso é já um compromisso e por isso, como dizem no brasiu, “se escafedou”. Devemos espreitar os quinze, mas pingar antes, no catorze…
– O “Catorze” não era aquele teu amigo?
– O “rei da lerpa”, e vai nos cinquenta e quatro…
– Vês?
– Tens razão, as pernas das palafitas reproduzem‑se…
– Como é que se chama o que estás a escrever?
– Tristeza.
– Pai, a tristeza só tem uma perna…
– Tens razão, por isso vou mudar‑lhe o nome, vai‑se chamar:

DA FALÊNCIA DE RILKE

Do ar que nos sufoca
somos o cais de embarque.
Nem mais nem menos, cereja
imaculada antes do picanço

a bicar. A sede que nos move
é a dor em viagra
por mares de um desejo
que só o vendaval sagra.

Secreta, lancinante, e nunca
cicatrizada esta fuga de ar
de um fole que não ressuscita

nem em manobras de boca‑a‑boca,
nem na alusão esquecida
por um anjo que já só cita.

– Quero pagar…
– São dois copos…
– É, mais um que acho que te devo…
– Ah. Esse “lá…”
– Ainda…»



3. Coisas que não se extraviam

«– Não te enganes, sou de uma fertilidade acabrunhante e por isso não olhemos a lua...
– Falas de quê?
– Se tu me pedires para namorar contigo… dediquemo‑nos a ler o Du Fu…
– Isssh! Olha o mulungo… ia lá querer um velho!
– No ocaso, há quem bata latas!

Nunca vi tantos cemitérios juntos
como nos poemas do checo Vladimir Holan:
o homem não é mais do que um erro
«cometido no censo dos mortos», escreve,

e lembra‑me um deus que conheci
em Namuli, nas montanhas do Gurué,
chegado dos Carpátos e volta, que
fazia rodar os planetas ao som da sua ocarina.

Negro‑dourado fauno com vespas nos olhos,
o aéreo peso da transumância engrossava‑lhe
as veias nos calcanhares. Assustado

pela luminescência que lhe sulcava
as pegadas, perguntei, Quem és, e respondeu‑me
num assobio, Sou o pastor de cemitérios.


– Posso?
– Sente‑se.
– O senhor está sempre a ler? Que lê?
– O mar entre as vírgulas…
– Não entendo…
– Coisas que não se extraviam.»



6. Retrato oblíquo da Jenny

«– Uuuuih! – e adiantou – Não é bom, isso aí!
Uma mulher de trabalho que não teme
os machos, os bêbados que aderem
ao balcão do bar como velcro.
Admiro a energia com que demove
as mentes mais conspícuas com um Iiiissch!
de mármore que colapsa a veia mais atrevida,
a de bode que aspire à ruminação de fêmea.
Como ao boomerang, nem a chuva a detém.

Um vez quis prosseguir estudos e pediu
perdão senhor antónio me aconselhe e lá abri
o herbário que consentia ligar o pouco
que ela aprendera à ocasião. Gostas de sonetos,

perguntei, um misto de alfazema e agrião
que reponta numa escadaria de catorze degraus
que podem conduzir à lua? Prefiro ciências,
explicou ‑me, com a mão acariciando a lotaria

da minha, Minerologia era o meu sonho, ouro
e platina…as açucenas são brancas,
não são, indagou, e podem levar ‑nos à luz,

não é – olho castanho a furar ‑me a pupila.
Branco era o teu avô, e preveni: cruzar anel
de noivo de ouro com açucena dá ovo de avestruz.

– Como diz? Acha‑me hoje mais ácida?
– Nem todos os sonetos são perfeitos…
– Quer outro copo de preta, senhor António?
– Lembras‑te que uma vez te falei de rimas?
– Naquele felatio, senhor António, fiquei grávida...»


Quem quiser ler o último poema do livro, um longo poema lírico, pode encontrá-lo aqui:



quinta-feira, 26 de julho de 2018

JE SUIS OXANA SCHACHKO



JE SUIS OXANA SCHACHKO
Tinha o nome de uma princesa maia, de leve
reminiscência ucraniana: Oxana Shachko.
Nos seus olhos havia watts
para abastecer os luzeiros, da terra ao céu
e volta, embora lhe fosse triste
o sorriso. Aos doze anos cismou entregar-se
a um convento e pintar ícones
como André Rublev. Aos vinte e dois,
num idêntico fervor místico,
desnudava os seios e gritava
em lugares públicos palavras de ordem
contra a violência falocrática e
os esbirros de Putin. Era sua
a cara da República e admita-se finalmente
que a sua beleza foi quem tentou
a serpente no Paraíso, insistir
no contrário é pura ideologia.
Aliava à voz macia a decisão
de uma mártir e, benza-a
Deus, possuía uma fotogenia
que a fazia tremendamente única, mesmo
se a acompanhasse pangolim.
Por isso bebo há dois dias inconsolável,
ensaiava uma declaração e
o Edgar Pera gravar-nos-ia a boda.
Adorava enforcar a corda
com que se suicidou, aos trinta e um anos,
a diva do Je suis Femen. E nem sequer
falo do esplendor da luz na sua pele
ou das suas pinturas da Virgem
porque, bárbaro como sou,
fico embargado.

 

sábado, 14 de julho de 2018

ESPALHAI A PALAVRA!

foto de ana cristina rodero 


As minhas crónicas desta semana, a do Savana e a do Hoje Macau, que é claramente neste momento um dos melhores jornais em língua portuguesa. Se ainda não deu conta, veja aqui: https://hojemacau.com.mo/. No Savana, seguindo o exemplo de Maradona, fundei uma igreja. Claro que esta semana já se acumularam os dissidentes.

ANATOMIA DAS RELIGIÕES
Ao Maradona ia-lhe dando um treco por ver que o seu bispo Messi não deu xeque-mate no relvado. E eu, pesaroso porque lhe batia a asa resolvi ler sobre a Igreja Maradoniana, que tem meio milhão de adeptos repartidos por vários países, inclusive no Japão. E numa reportagem flagro esta passagem:  
«“Que a minha mulher não me ouça, mas eu gosto mais do Diego do que dela. É mais forte o que sinto por ele. Eu morro por ele. Calculei que a minha filha nasceria perto do Natal e decidi batizá-la primeiro na Igreja Maradoniana”.
Outro crente, Lionel Díaz, sabe tanto de Maradona que ganhou um concurso num programa de TV da ESPN no qual foi submetido a todo o tipo de perguntas sobre Maradona. A final do concurso era uma disputa contra o próprio Maradona, para ver quem sabia mais sobre a vida do ex-jogador. Lionel respondeu mais rápido que o seu próprio “Deus” - e ganhou.
O casal de namorados Fabián da Silva e Elizabeth Galvani observa todo o folclore em torno do futebol com um brilho nos olhos. No meio de tantas canções de louvor a Maradona, pouco mais podem fazer - ambos são surdos.»
Eis porque resolvi fundar a minha igreja. A Igreja do Lobo Que É Filho do Homem, de Inspiração Cabritiana.
Fui campeão nacional de pingue-pongue em todas as categorias até que tive um treinador japonês que me fez descobrir o saké e o primeiro postulado da minha religião: «se fazes algo muito bem é porque ainda não descobriste algo que farás ainda melhor!».
É o meu caso, neste momento em que me invisto como Deus.
Todos os que são humildes e mais querem sê-lo e maior felicidade não concebem do que serem finalmente um selo numa carta para Tampico, no México, têm agora o seu cenáculo de Inspiração Cabritiana, na Igreja do Lobo Que É Filho do Homem. Justifica-o a bondade dos fiéis e eu ter decidido que irei ao México buscar uma profetiza. A primeira. Nos meus templos só perorarão as mulheres. O homem entra calado, dado estudar para navio e ser apenas transporte da fé. A mulher é quem oficia e ama, o seu Deus. Vou ter cinco profetizas – uma por cada continente, doze Apóstolas e Quarenta e Nove Bispas, o número dos degraus a que são sujeitos os neófitos na sua iniciação.
Estes cargos só se ocupam por nomeação. Para Pastoras é que abro já as inscrições. Paga-se 5000 meticais de joia. E cobram-se uma geleira e uma máquina de lavar roupa pelo primeiro Aprendizado: Ajuste às Naturais Emanações de Deus, com Drink e Ar Condicionado, em vinte sessões. Só se aceitam moças com certificado do Physical, que estejam no pino da forma. Na nossa igreja não aceitamos uma fé com osteoporose – é tudo a doer.
Na nossa Igreja não mentimos e devolvemos todo o Amor aos Fiéis. É o Fiel que tem de ser Portador do Amor, o Portador da Credulidade, o Portador da Paciência. Nós, como Deus só cobramos! Se sente uma grande necessidade de servir, a maior necessidade em ser servil; se sente que precisa que tomem as decisões por si; se necessita desesperadamente de delegar as suas responsabilidades em entidades abstractas; se não vive sem ritos e se pensar lhe causa os pruridos do feijão-macaco, nós EXIGIMOS O SEU MAIOR ESMERO! Se costuma ter pesadelos quando tem a sua bexiga cheia, nós PROVIDENCIAMOS O DESPERTAR! Se desconhece o nome das árvores e das plantas que lhe atravessam quotidianamente o caminho, nós SOMOS A SUA MORADA. Se já lhes conhece o nome nós SOMOS A FELIZ MORADA DO ESQUECIMENTO.   
Na nossa igreja não existe a noção de Pecado. Gastar as palavras em vão? Somos a primeira Igreja a compreender que SE NÃO PROIBIRMOS AS COISAS ELAS DESAPARECEM POR SI.
Pelo mesmo motivo não certificamos Milagres nem apoiaremos qualquer candidato à Câmara de Maputo, e como damos a César o que era de César não lhe chamamos Dízimo: não, nós Cobramos a Fé Sem Recato Porque o Amor Custa.
Os nossos Dez Mandamentos:1. Para quê ser só pobres se também podemos ser tolos!? 2. Se vir que alguém já roubou o suficiente dê-lhe também a sua filha. 3. Ter sempre gémeos, para não descurar as estatísticas da mortalidade infantil. 4. Se vir que o seu filho quer ser um Cristiano Ronaldo compre o Real Madrid. 5. Se a sua filha estuda por gosto entregue-a à Igreja Cabritiana, nós agenciamos o seu futuro. 6. Na Igreja do Lobo Que É Filho do Homem não se aceitam ursos. 7. Toda a violência será revogada pela obrigatória redacção de Epitáfios. 8. Se encontrar um gato parecido com um guarda-chuva troque-o por uma cautela. 9. Nesta Ordem Celeste aceitam-se Adeptos mas não Discípulos.10. Em dando conta que o programa para a roupa de lã chegou ao fim desligue a máquina de lavar.
Esta igreja só reconhece outra igreja: a da Missa Paga. Perdão, Pagã.
Donativos e contributos podem ser enviados para o NIB 212121 05344 14560001, do BIM. Advirta-se que, depois do donativo, se se sentir “maltratado de miolo” este é um primeiro efeito benéfico. Dúvidas: tirem-se junto da primeira secretária, Teresa Noronha (que gosta mais de mim que do Maradona). Reunidos os primeiros 200 milhões de meticais informaremos sobre o paradeiro do Templo.    
  
cristina rodero
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OS CONTOS DO TRÂNSFUGA


Ruben Dario (1867-1916), praticamente, nasceu trânsfuga, numa Nicarágua natal que só lhe conheceu a infância, o começo da juventude e o ocaso.
Pelo meio, foi educado pelos tios, por extravio do núcleo familiar, e novo saiu da aldeia natal para visitar El Salvador; no trespasse da adolescência passa a residir no Chile – um pé em Valparaíso e outro em Santiago -, após o que assentou arraiais na Costa Rica e no Guatemala, aportou várias vezes ao Panamá, viajou até Espanha – dando então o primeiro salto a Paris; a errância fá-lo instalar-se ainda na Argentina, em Buenos Aires, (como cônsul da Colômbia), sem dispensar uma transumância permanente entre a América e a Europa, aonde igualmente visitará a Itália e Maiorca. Em 1910 desloca-se ao México, que está no umbral da grande revolução; seguir-se-á Nova Iorque, antes de regressar à Nicarágua, à sua aldeia natal, Chocoyos (hoje Ciudad Darío), morrendo aí em 1916 com apenas 49 anos, embora muito calcinados pelo vinho e o uísque que vazou a rodos.
Todo este cosmopolitismo fê-lo um partidário ferrenho da unidade centro-americano, utopia política de alguns e nunca cumprida, e a enjeitar os nacionalismos, declarando com humor: porque «ao homem, como aos cogumelos, não exige Deus a escolha de uma pátria» (frase colhida no conto Arte e Gelo, incluída na antologia que é pretexto desta prosa).
É desta criatura plectórica e vital no dealbar de um século para outro e que rompeu com o provincianismo colonial para se revelar um dos aríetes da literatura em qualquer coordenada em que tenha tomado assento, que agora se edita uma genicosa coletânea de contos, o volume Curiosidades Literárias e outros contos, com selecção, versões e notas de Rui Manuel Amaral, na colecção por si dirigida, a Colecção Avesso, para a editora Exclamação!, do Porto.
Curiosamente, muitos contos estão identificados com os locais que visitou, literalmente ou através de leituras, e temos o conto parisiense, o conto hebraico, o conto russo, o conto grego, o conto passado em Londres, a lenda mexicana, etc. Embora não haja nestes contos apenas um impulso mimético em relação aos lugares e aos diferentes estilos que evocam, antes se certifica neles, muito para lá da feição simbolista que de comum se lhe associa, o profundo ecletismo do autor. E temos narrativas de cunho simbolista, de cunho fantástico, de recorte realista, fábulas e até anedotas de amplexo mitológico. É isso que o torna uma fonte de surpresas e profusamente actual – isso e um humor subterrâneo que de vez em quando aflora:
«O asno (embora nunca tenha conhecido Kant) era especialista em filosofia, como se costuma dizer» (pág., 48);
«Orfeu saiu triste do bosque do sátiro surdo, disposto a enforcar-se no primeiro loureiro do caminho.
Não se enforcou, mas casou com Eurídice.» (pág. 52)
«Que doutor Z seja ilustre, eloquente, conquistador; que a sua voz seja ao mesmo tempo profunda e vibrante, e o seu gesto avassalador e misterioso, sobretudo depois da publicação da sua obra A arte do sonho, talvez se possa discordar ou aceitar com reservas; mas que a sua calva é única, insigne, bela, sone, lírica se preferirem, oh!, isso é indiscutível, estou certo!» (pág.93)
Darío é tão fascinantemente eclético que até antecipa Lovecraft, em O pesadelo de Honório, que, coitado, num sonho revisita todos mas todos os rostos, perfis, caretas, esgares, e máscaras que tiveram lugar numa sucessão formigante desde o princípio do mundo e que se guardarão no provável armazém que configurará o inconsciente de Deus – multidão que devém a interminável soma de singulares que aterrorizaria qualquer mortal -, ou antecipa os artifícios dos experimentalistas do OuLiPo, no conto que fecha esta antologia, Curiosidades Literárias, e que transcreve uma narrativa – deliciosamente intitulada Para Fracassar Basta Amar – que dá um bigode a Georges Perec, pois constrói-se a partir da interdição do uso não de uma vogal mas de quatro, só sendo autorizado o recurso ao a.
Para se perceber a riqueza do conjunto e como em Darío até as anedotas têm duplo sentido, citemos esta:
«No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios.
– És bela.
– Sou – disse a rosa.
– Bela e feliz – prosseguiu o diabo – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas…
– Mas?
– Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detém sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco…
A rosa – tentada como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura.
Passou o bom Deus, depois do romper da aurora.
– Pai, disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil.
– Seja minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo.
E o mundo viu então a primeira couve.»
É extraordinário esta anedota. Não somente pela sugestão de que não há funcionalidade desejável para além daquela que concerne a cada forma, mas também pela ideia herética de que cada ser, criatura, entidade, planta ou nuvem pode ter sido tentada no paraíso. O que pessoalmente, perdoe-me o leitor, acho uma ideia retumbante.
Para além dos contos referidos outros realçam, como a curta fábula Febea, na qual a pantera “domesticada” não mente a Nero sobre os seus dotes artísticos, até ao auto-irónico O último Prólogo, corrosiva diatribe contra a condescendência literária com um desfecho surpreendente, ou não, se o associarmos às contradições dalguns escritores do actual friso dos escribas portugueses que se querem “malditos”.
Reconheça-se por fim que a fluidez e eficácia destes contos devem muito à imperiosa qualidade da tradução de Rui Manuel Amaral, sem a qual esta diversidade e tensão frásica manquejariam.