quarta-feira, 17 de abril de 2013

O SOFÁ OU TRÊS RAZÕES PARA SER, DE UM HERMÉTICO


                                                desfazendo mentes confusas> moi e Trindade


                                                                                  para o Capão e o Trindade, dois bonitoes
1

O meu telefone inventou
de tomar banho!”, lastima-se
uma rouca voz feminina atrás de mim
(“à minha atrás”, se diria

em escorreito moçambicanês),
na tasca onde sou um mero adereço
da Laurentina (- uma hospedeira
de bordo que conheci ontem!).

Melhor, só se alguém entrasse
para anunciar, foda-se, numas
escavações do Peloponeso, achou-se

a gravata do Aristóteles! Dada
a improbabilidade - até por uma questão
de sanidade - traz-me outra!


2

O MEU SOFÁ

O meu sofá, de tão coçado,
(- e tanta flor, para quê?)
é como um alfabeto inepto
que nunca reclamou
uma ideia justa
e antes se afadigou
a trocar uma ideia
pelo que as letras compram.

O meu sofá, tela
para nádegas tão ocas
como nozes que a paciência
de deus esgotou,
recorta, em tudo
o que está ‘scrito,
a imagem dos ventos
que desenham os lóbulos
do que tanto fede no Inferno!

Já foi o meu sofá, em novo,
terra de assobio & assalto
a ninfas e ondinas, era
‘inda o coração um sobrescrito.
E até amores teve,
por solene endereço.
Agora é uma bandalheira,
qualquer Trindade,
qualquer cabrito,
lhe acumulam o pesar.

3
E se Pessoa, na ocorrência, tivesse fingido ser Fernando Pessoa, perguntava Tabucchi no livro que lia há cinco minutos atrás.
Não creio que de outra forma tivesse sido Pessoa, o próprio, digo eu, no momento em que leio que um elefante achou que o abuso de dois chineses no Kruger Park devia acabar e, depois de tantas fotos - como Alberto Caeiro -, lhes cagou em cima.

terça-feira, 16 de abril de 2013

EINSTEIN E O DIÓXIDO DE CARBONO

Procurando “anedotas” de e sobre o Einstein para a minha filha Luna, de nove anos, que está a ler uma biografia do físico (daquelas para crianças, não se assustem) encontrei esta, deliciosa:

Um dia, perguntou-lhe um jornalista: O senhor pode explicar-me a Lei da Relatividade?
Einstein respondeu: E você, pode explicar-me como se frita um ovo? Um ovo?...- redargue atrapalhado o jornalista - Bom, sim... claro que poderia explicar...
Bem – tornou Einstein - então faça favor... mas imaginando que eu não sei o que é um ovo, nem uma frigideira, nem o óleo, nem o fogo.
 Eis a anedota que passarei a contar sempre que:
a)      alguém à minha frente justificar o seu péssimo gosto literário com a sentença gostos não se discutem…
b)      que alguém, inspirado pelo último best seller que leu, me perguntar mas afinal, que dificuldade tem a literatura?
 
Também achei graça a este episódio:
Conta-se que, nos anos 20, quando Albert Einstein começava a ser conhecido pela sua Teoria da Relatividade, ele era frequentemente solicitado pelas Universidades para dar conferências.
Dado que ele não gostava de conduzir, ele contratou os serviços de um motorista. Depois de vários dias de viagens, Einstein comentou ao motorista que já estava farto de dizer sempre a mesma coisa em cada Universidade que visitava.
- Se quiser, disse o motorista, posso substituí-lo por uma noite.
Já ouvi tanta vez o seu discurso que já o decorei palavra por palavra.
Einstein aceitou e, antes de chegarem ao local, trocaram as roupas e Einstein colocou-se ao volante.
Chegaram a uma sala cheia de pessoas, e como nenhum dos académicos presentes conhecia Einstein, ninguém descobriu o engano.
O motorista fez o discurso que já tinha ouvido Einstein fazer tantas vezes. No final, um professor fez-lhe uma pergunta.
O motorista não sabia a resposta e, teve um golpe de inspiração fantástico e disse:
- A pergunta que me fez é tão simples que até vou deixar que o meu motorista lhe responda.
 
Na mesma busca, a minha filha chamou-me a atenção para a que se segue. Sacrista da miúda, já reconhece o humor:
 
«Tentei rir-me pouco para não emitir muito dióxido de carbono, Al Gore

SEIS PÉROLAS PESCADAS EM BADIOU

                                                                   Flor Garduño

Pela terceira vez numa semana foi-me aplicado um castigo no Facebook, três dias de jejum, por postar imagens atentórias à moral. A última foi a que se vê em cima, uma belíssima foto da mexicana Flor Garduño. Enfim, esqueçamos o despudor dos censores e falemos do que é importante:


Seis pérolas encontradas no leito do livro de Alain Badiou, Para uma nova Teoria do Sujeito:
- Uma verdade é uma espécie de buraco no saber. Pode-se pensá-la mas não conhecê-la.
- O Mal é a vontade de nomear a qualquer preço.

- (…) uma verdade trabalha na retroacção de um quase-nada e na antecipação de um quase-tudo.
(aqui eu trocaria o termo «verdade» pelo de «poema»)

- Existe um pensamento do poema, um pensamento-poema?
   Eu digo um “pensamento”, e não um “conhecimento”. Porquê?
   É preciso reservar a palavra “conhecimento” para aquilo que está em relação com um objecto, o objecto do conhecimento. Há conhecimento quando o real vem à experiência sob a forma de objecto.

- Rimbaud: “Ah! A beleza dos salgueiros que uma asa sacode!”

- Mallarmé: “Ali, onde quer que seja, negar o indizível, que mente!”.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

EM DEFESA DA OPACIDADE

Magritte

Os que escrevem com claridade têm leitores: os que escrevem obscuramente têm comentaristas”, escreveu Camus, e é uma daquelas fórmulas de boca cheia que se condena a si mesma ao ser repetida até diluir-se todo o sal que lhe cabia, a pouca razão que lhe assistia.
Camus é um escritor de quem sempre gostei, sempre que o releio não lhe encontro rugas, e adoro os seus cadernos, mas às vezes foge-lhe a mão para o design e escreve umas frases-efeito que condensam, como os slogans, a vontade que temos de não pensar, a nossa propensão a quedarmo-nos tão tranquilos como os mais sonhadores pântanos.
Eu não quero leitores, só quero comentadores. Por vários motivos e até ecológicos.
Faltava a Camus conhecer aquilo que Bruner, um dos renovadores da psicologia da percepção veio confirmar: somos incapazes de nos contentarmos em ver sem inventar, entre outras razões, porque sem inventar não vemos nada. Não existe uma boa leitura e compreensão das coisas sem inventarmos um pouco, i. é, sem acrescentarmos algo ao texto com que lidamos. O verbo da tauromaquia, lidar, parece-me o mais exacto para definir a nossa relação frutuosa com um texto, dado implicar-nos: não é possível face ao touro ficarmos sem reacção.
Mesmo para compreender algo, dizem-nos os estudos da psicologia cognitiva, temos de inventar, temos de integrar a informação recebida num mapa mais geral que é o da nossa interpretação do mundo, ou seja, temos de improvisar como no teatro ou face ao paquiderme na arena e nos redesenharmos nisso, a fim de percebermos intrinsecamente algo.
Decorre daqui que não existe leitura sem a inscrição do leitor, a sua imersão no texto que, afinal, “completa”. A identificação não é, por conseguinte, apenas plasmarmo-nos numa personagem ou num enunciado que nos é modelar mas também a sensação de que colaborámos para a construção do texto.
Só é passiva a nossa leitura quando o texto se encerrou em si, estabeleceu os seus limites e se apresenta como túmulo e até como póstumo.
Vou buscar dois exemplos que já coloquei num texto mas que, por servirem exemplarmente o que quero dizer, não me cansarei de repetir:

«Já dos versos do poeta renascentista espanhol Garcilaso de la Vega se dizia serem tão obscuros que havia que entrar neles com archotes, para entendê-los.
Na verdade, a poesia aponta o seu binóculo a um conteúdo comum para pesquisar uma nova escala e falar do desconhecido. Tentar dar uma forma inteligível ao desconhecido não terá naturalmente tradução simultânea para a linguagem coloquial. Aliás, apenas a comunicação publicitária é que faz uso de uma linguagem já testada. O que é que nos dá a comunicação publicitária? Flamengo, com embrulhos extraordinários, mas Flamengo.
Outra dificuldade se apresenta. A poesia do século XX, realiza uma segunda operação que cansa o leitor: o poema auto-reflecte sobre os seus processos criativos e a linguagem. No entanto, repare-se: o prédio do 33 não se ergueu sem andaimes. De igual modo, o poema não comunica sem montar os seus andaimes, a estratégia de como comunicar: daí que todos os poemas, apesar de veicularem um conteúdo, só respirem pela relação que estabelecem connosco, tentativamente.
Poemas que nos comuniquem a emoção causada pela morte de um filho, a beleza da namorada ou o desgaste do tempo são aos milhares, raros são os que nos transmitem também essa nova que é a experiência do poema e nos projectam como leitores para um outro lugar onde pressentimos, pela palpitação do verbo, uma superação do tempo e da contingência que provocou o poema.
A arte nasce da contingência (das coisas que acontecem à nossa volta, das alegrias, sarilhos, dramas e situações em que a vida nos atola) mas opera uma sublimação e não uma mera transcrição. O poeta surrealista Paul Eluard revela-nos o que é a sublimiçao ao definir o mecanismo do poeta deste modo: «o poeta quer falar da mulher que ama e fala de pássaros, quer falar da guerra: fala de amor, tão pouco conhece o poeta o título do seu poema senão após tê-lo escrito...».
Deduz-se obrigatoriamente daqui que não se fazem poemas sobre o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, as escolhas sexuais, mas com o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, o amor ou o ódio. Esses fluxos emocionais desembocam no poema como um feixe de energias e não como conteúdos em moldes pré-formatados. Aliás, o poeta distingue-se – diz o filósofo Rafael Argullol, e nós concordamos - por ser, não exactamente o homem mais sensível, mas antes aquele que atraído pela voragem do acontecimento consegue distanciar-se até poder articular em palavras que lhe sejam próprias.
Voltemos agora ao problema sobre a dificuldade de leitura dos poemas, ao seu hermetismo e ininteligibilidade. Talvez o problema radique noutro lado. Esperimentemos ler um trecho de um poema sofrível de José Miguel Silva, poeta de quem habitualmente até gosto. O poema chama-se Feios, Porcos e Maus, e diz assim:” Compram aos catorze a primeira gravata/ com as cores do partido que melhor os veste./ Aos quinte fazem por dar nas vistas no congresso/ das juventudes, seguem na caravana das bases,/ aclamam ou apupam segundo o mandato das chefias (...) Aos trinta e dois e bem o momento de começar/ a integrar as listas, de preferencia em lugar elegivel,/ pondo sempre a vileza em primeiro lugar. A partir/ do parlamento tudo pode acontecer: director/ da impresa municipal, coordenador, assessor de (….) No final, para os mais afortunados, pode haver nome de rua,/ com ou sem estátua, e flores, fanfarras de formol». Assim que acabamos a leitura, podemos voltar a cabeça no travesseiro e adormecer, absolutamente indiferentes à sorte do poema, que verteu o seu conteúdo sem estabelecer connosco uma relação. O poema deu-nos a sua mensagem, mas como num comunicado, no momento seguinte está esquecido. O poema não passa de uma “coisidade” exaltada.
Se, pelo contrário, lemos este trecho de Herberto Helder (que também tem poemas menos conseguidos): «Minha cabeça estremece com todo o esquecimento./ Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. / Falo, penso./ Sonho sobre os tremendos ossos dos pés./ É sempre outra coisa, uma/ só coisa coberta de nomes./ E a morte passa de boca em boca/ com a leve saliva,/ com o terror que há sempre/ no fundo informulado de uma vida.» somos sensibilizados por uma significação radiosa, mas dupla, que nos escapa à primeira e obriga a reflectir e a passear com o poema nos escaninhos mais arejados do cérebro até conseguirmos que o tempo nos dê a resposta a cada uma das metáforas que nos intrigam no poema.
A inapreensão ou a incompletude da nossa leitura vai perfazendo um trajecto, onde nós e o poema fazemos «um», no perpétuo vaivém de uma relação. E como a nossa inteligência sofre da ilusão entranhada de que temos de ver «tudo claro» voltamos ao poema que nos intriga várias vezes, dando conta de que em cada leitura obtemos uma resposta diferente para o mesmo. E então subimos várias vezes as escadas do 33 só com este poema a jogar xadrez conosco no nosso íntimo, e de cada vez que tornamos a descer as escadas a configuração fisica das escadas está diferente porque o poema, com as inúmeras perguntas que nos colocou, nos transformou, provocando uma mutação, a tal conversão semiótica.
O poema absorve-nos, transforma-nos, vai incubando em nós que tudo é outra coisa para lá das aparências e em cada limiar abriu novas janelas. A mesma janela que se abre quando dançamos e não somos mais nós que dançamos, e a dança que dança em nós, ou a mesma janela que se abre quando tocamos piano, e damos conta de que não somos mais nós ou as nossas mãos que tocam, mas é a música que se serve das nossas mãos para acontecer. Por muito que nos custe, tanto a beleza como a arte ou o amor acontecem mais quando o “eu” está ausente. Agora para isso precisamos de estarmos desnudos, e e necessário estarmos implicados na relação – na que, por exemplo, o poema estabelece connosco. Temos de participar.
Julgo ser nesta diferença que tudo se joga, não no facto do poema ser acessível ou não, simples ou complicado. Um poema que não altere a nossa percepção do mundo, do corpo, do tempo e dos outros, que não incuba em nós, serve para quê – para além de servir a vaidade do seu autor? O que é complexo não pode deixar de ser complexo – e para visitarmos esses “novos mundos” apenas precisamos decidir se queremos ser leitores exigentes, que admitem a longa duração, ou voláteis frequentadores do shooping, se queremos ser velhos de espírito vivo e gaiteiro ou jovens que o tempo gastou como as borrachas.»

Vemos então como a frase de Camus é não apenas terrorista como, em nome da clareza, premeia a facilidade e todos os equívocos.
Cada texto conduz a uma “clareza” natural, dentro da sua constelação. A clareza de Camus não é a mesma de Blanchot, a obscuridade em Herberto não é a mesma que em Gôngora. E obviamente que não desejamos a clareza de Dan Brown porque a esta – como a toda literatura montada em fórmulas e estereótipos – lhe faltam as sombras.
Por isso, contra o meu querido Camus, nesta frase tão acarinhada pelos burocratas da língua, sempre que vejo algo que não percebo fico todo contente, engancha-se aí um porvir, um novo relacionamento. Não entender algo faz dilatar o meu horizonte, desoprime-o dos meus parcos limites e até da vaidade destes. Evidentemente que se trata de não entender algo que, não obstante, irradie uma inteligibilidade que me escapa ainda, como uma luz entre frinchas – e não de um texto que à partida seja uma burla, uma coisa que a prática detecta facilmente.
Por exemplo, durante anos, o enfrentamento da erosão africana levou-me a um afastamento em relação a dois autores que em Portugal gostava muito, Char e Gamoneda. Aquela mescla metafórica parecia-me de repente artificiosa face à realidade que se me opunha (percebi aí que os lugares e as contingências acabam por ter muita importância em relação às leituras que escolhemos). Tive de ler uma biografia de Char e de me comover com a particular dignidade daquele percurso de vida para sopesar cada metáfora na sua poesia, grave e necessária, e não um mero jogo ornamental – tendo redescoberto o poeta com outro gosto e até outro proveito.
O Char, tão obscuro, e de que até o Camus, ironicamente, foi um dos primeiros comentadores, abriu-se-me então em matizes de uma claridade que não prescindia das suas sombras para ser.
Por isso, ao arrepio de Camus, eu confio mais na interpelação de um comentarista do que na passividade de um leitor, embora, neste universo pós-simbólico, a literatura tenda a uma literalidade que ofusca e afinal nos faça não ver por nos aproximar do amorfo.  

 

domingo, 14 de abril de 2013

COLÓQUIOS COM A JADE 17


Mãe, o omo… o omo… o omo… o omo? – repete ansiosa, a jade.
Para que é que queres o omo, pergunto eu intrigado…
Quero lavar roupa?
Tu, filha? A um domingo?
É a minha cueca favorita…
Mostra?
Passa-me a cueca para que eu a examine…
Tem buraquinho… - verifico.
… achas que se a lavar bem lavo também o buraco?
Não sei… mas se ela for só buraco fica limpa…
E as minhas cerejas?
As tuas cerejas…
Não vês, pai maluco?
Ah, estas duas cerejinhas estampadas… e já um bocadinho debotadas… que têm?
Se ficarem rasgadas parece que já foram comidas…
O melhor é comprarmos outras calcinhas…
Não pode, pai… em Maputo não há cerejas…
Pintamos…
As cerejas não se pintam, crescem…
Então estas, nas tuas calcinhas, cresceram?
Achas? Mas quando era pequena pensava que sim, e isso é que interessa…


sábado, 13 de abril de 2013

LAVRADOR: A PALAVRA QUE COMEÇA A FALTAR

                                                       Yves Bonnefoy, o lavrador

A Maria João Cantinho, no Facebook, num gesto carinhoso, dizia que gostava muito do meu surrealismo. Ela não sabe o que me irrito sempre que me associam ao surrealismo. Não tem mal. As pessoas não sabem como encaixar-me e então procuram aparentar-me. É “normal”. O que não quer dizer que a coisa não se deva esclarecer, como nesta nota que escrevi no meu diário, na véspera do lançamento do meu livro Piripiri Suite:

20 de Janeiro de 2007:
«Novo livro publicado, toujours en retard. Je suis en retard dans la vie, escrevia o esquecido Rene Guy Cadou, frase que eu inscreveria sobre o pórtico do meu sempre adiado “Clube dos Procastinadores”.
Na verdade, a terra de Piripi Suite (que, não fora a homenagem a Grabato Dias, eu chamaria Cadernos de Reportagem) já foi revolta duas vezes mais, com livros que apontam outros horizontes e novas escarpas estilísticas mas a velocidade das edições não permite auscultar o processo na sua devida sincronia.
Alimento alguma curiosidade sobre a recepção deste livro pois escrevi-o com o sentimento de ser um artesão que por maleita do espírito só esculpe Cristos corcundas, e páginas mais felizes me chegaram posteriormente. 
Às vezes mais vale o silêncio do que falarem de nós equivocadamente. Eduardo Prado Coelho, numa crónica, fez-me comparecer ao lado de Al Berto, como exemplos de novas brasas num surrealismo já julgado extinto. Eis-me atado ao imago de um rapaz um pouco estouvado e com um niquinho de anacronismo, de inclassificável.
Na generalidade, ao invés, sou um leitor apaixonado de todos os que ou romperam ou permaneceram nas margens do surrealismo: Michaux, Alain Jouffroy, entre outros, poetas que viveram, de facto, uma aventura do espírito. A maior parte dos poetas que hoje tenho à cabeceira: Yves Bonnefoy, Hugo Claus, Thomas Tranströmer, Marc Blanchet, Edmond Jabès, Christian Bobin, Jenaro Talens, Ángel Crespo, Gonzalo Rojas, Nicanor Parra, Mario Luzi, Jorge Riechmann, Homero Aridjis, Robert Duncan, Charles Simic, John Ashbery, Miroslav Holub, estão ligados a uma tradição mais vasta que inclui o surrealismo como um dos seus ramos - e não ao contrário.
Para ser breve, os meus autores de cabeceira descobriram todos o mesmo: à poesia surrealista faltava-lhe o fraseado, é como o jazz antes de Charlie Parker, que assentava luxuosos tijolos uns sobre os outros mas não tinha ainda o cimento que os unia.
E o que é, palpita-me, que agradava tanto aos poetas novos em Mário Cesariny? Aquilo que o brasileiro Carlos Filipe Moisés detectou no poeta português: a asa dissimulada do racionalismo. Ainda que nele fosse trans.
Diga-se: prefiro que a minha dívida seja atribuída a Daumal e aos poetas do Le Grand Jeu. Agora, explicar as diferenças, profundas, em terra dominada pela lógica taxonómica?
Mas, onde afinal me situo eu? Talvez percorra a esteira dos que cismam na reminiscência do próprio daímon: “Tal conhecimento, aventa Eugenio Trias, não é epistémico mas sim gnóstico, e não se acha mediado nem pela consciência representativa nem pela livre vontade (ou livre arbítrio), posto que se implanta na existência como um conhecimento existencial. Tal conhecimento existencial deve em rigor chamar-se gnose: o conhecimento que se alcança de si mesmo em virtude do acontecimento existencial que preside ao encontro ou ao desencontro do sujeito com o seu daímon.  Este sulco é antigo como o mundo.
E, contudo, até acho que no caso específico de Piripiri Suite contrario um pouco tudo o que foi dito no parágrafo anterior. É um livro onde espreita consecutivamente o “não poético” e onde surde o que Gabriela Llansol expõe, categórica, em Um Falcão no Punho: “Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros”.
Aproveitemos é para desfazer de antemão o próximo equívoco: o que é que me separa dos (tardo) românticos? O facto de para mim as fontes se situarem à minha frente, e não atrás – por mítico que seja. Detesto os mitos da origem, quedas e paraísos & a culpa adjacente. Face a esse cenário sou, pelo contrário, bastante construtivista.
Na verdade, lido o livro surgirá a tentação de dizerem que me aproximo dos poetas da geração de 90. Mais vale encolher os ombros. Nunca estive longe. Nunca estive perto. Entre é o meu estado. Entre-pernas.
A minha filha Luna hoje faz anos, três. É o meu estranho-próximo mais caprichoso. É a única coisa que importa.»

A minha filha Luna tem hoje nove.
O livro claro que passou no mais absoluto silêncio. Ou passou a ter a forma dele.
Entretanto, ontem, relendo um magnífico livro de ensaios do libanês Salah Stétié, Hermes Défenestré (José Corti, 1997), encontro isto, com que concordo do coração e que é mais uma nota ao que me separa do surrealismo:
«Não se terá sem dúvida compreendido nada da poesia sem que se tenha dito, em alto e bom som, da poesia que ela é inimiga do sonho, que ela é, para dizer de outra maneira, o gato do cão do sonho e vice-versa. Sim, tão cão e gato como os outros, e enfrentam-se arreganhando o dente, tal e qual. O sonho é a tapada de caça do psicanalista e não é esse tipo de caça que o poeta persegue. O poeta, aquilo que ele quer forçar é a realidade, toda a realidade, nada mais do que a realidade e se ele tropeça no sonho, como nos calhaus do caminho, é porque o sonho, esse calhau, também ele faz parte da realidade.»
Tão simples, tão exacto, tão urgente.

 

Num poeta que li demasiado novo e que agora redescubro com outro gosto, Yves Bonnefoy (há idades para se ler devidamente certos autores e pressinto que não passarei sem traduzir Bonnefoy pois a leitura ao ralenti que é a tradução é a melhor forma de nos sintonizarmos num verdadeiro encontro), encontro o seguinte: "O único herdeiro possível do lavrador é o artista (…) a esperança que deposito na linguagem é o que faz que pareça que não me interesso pelos problemas contemporâneos. A minha reflexão, o meu trabalho, consiste em dar prioridade a tudo o que possa ajudar de maneira mais radical e directa a melhorar a situação no mundo: não ataco os conflitos ou debates do momento, um a um, mas antes optei por ir sondar a raiz do mal; o desastroso emprego que a nossa modernidade faz da linguagem.
Não tendo embora uma visão tão catastrofista, sinto uma grande afinidade com esta posição. Ainda que matizadamente, pois por vezes urge o murro na mesa

SOMBRAS DE VELHOS COMETAS VELHOS COMO O MUNDO

                                                                   francesca woodman


Descubro ao acaso, abrindo um livro na minha propensão petisqueira, esta citação de Marx: ”Da mesma maneira que Lutero proclamou o fim do laico e do padre também a sociedade nova superará a distinção do Estado e do homem privado.” Teria Marx consciência da perversão com que as sociedades novas tomariam à letra a sua previsão?

 

Escrevi isto em 2006, no meu diário da altura, O Vento e a Escolta:

«A fraternidade está morta, posto a vileza, como previu Baudelaire, ter tomado o coração dos humanos: «O mundo vai acabar (...) (um dia) a mecânica ter-nos-à americanizado a tal ponto, o progresso terá atrofiado tanto em nós toda a parte espiritual, que nada, entre as fantasias sanguinárias dos utopistas, poderá comparar-se com os seus resultados positivos. Não será através das instituições políticas que se manifestará a ruína universal ou o progresso universal (pois o nome pouco importa), mas através do aviltamento dos corações» (citado por Octavio Paz no seu diálogo com Castoriadis).
Neste desnorte, engendra-se a vileza como o efeito colateral a perversão dos dois primeiros princípios.
Absolutamente fora de hipótese pensar noutro regime social que não seja a democracia e os seus enganos, mas não devemos fechar os olhos ao desolador e exaltante estado das coisas – oximoro comum a todas as épocas em que o definhamento da crítica antecipa uma mutação profunda, uma conversão semiótica (conceito a que voltaremos).
Mas é muito pobre a democracia que receia as diferenças e o reconhecimento de valores de intermediação.
África, neste aspecto, é hoje, a contrapelo, um extraordinário laboratório para estudar o que será a sociedade europeia daqui a 20 anos, quando o liberalismo triunfante tiver destruído os resquícios de uma regulação social nascida dos três princípios que a Revolução Francesa consagrou.
A sociedade africana é asperamente estratificada, lancinante nos contrastes, e dissemina-se em sistemas paralelos, quer de vida, quer económicos.
Em Maputo, sobrevive-se com 200 dólares mensais e com 500 ou 1500. Não se viverá evidentemente com o mesmo desafogo, mas o preço dos bens e da alimentação é muito variável, consoante o bairro e o comprador alvo. O preço de uma porta de grades varia, consoante estejamos no bairro do Xipamanine, na periferia, ou em Sommershield, o bairro rico. Os materiais, o trabalho e o resultado são o mesmo, o preço é que diverge.
Outra coisa se pressente, nestas compensações por estratos. É uma sociedade que devido às restrições orçamentais impostas pelos organismos monetários internacionais perdeu quaisquer veleidades de uma futura equidade social. O progresso social está estabelecido pelas quotas que favorecem a boa consciência da hipocrisia internacional, mas não excede esse quadro. Quando a educação devia ser a aposta preponderante para se semear o futuro, as imposições do endividamento internacional dão lugar a paradoxos tonitroantes, como o de se abrir um ano escolar com metade das vagas de professores por preencher, por falta de orçamento para pagar aos docentes, como aconteceu o ano passado em Moçambique. Que o jornalismo internacional não denuncie estas contradições que o FMI gera dá a medida do servilismo em que se acantonou a maior parte da comunicação social.  
Combater a pobreza em África, no figurino actual, é um enorme alibi para milhentas negociatas. Os programas de combate à pobreza branqueiam as verdadeiras intenções do que se congemina na sombra: domínio e saque. Não sou eu que sou cínico, é a realidade, ainda que não esqueça que, “desviado” algum do dinheiro para as funções que o justificaram, se se salvar uma só pessoa que seja temos razões para nos congratularmos. Mas temo que da mesma maneira que os programas para erradicar o HIV/Sida fomentam hoje em África uma gigantesca rede de negócios que demasiadas vezes se esquece da meta - o que explica a boa-consciência com que se acha normal que 80 por cento do orçamento atribuído anualmente ao CNCS (Comissão Nacional de Combate à Sida) seja gasto em salários da estrutura, sobrando 20 por cento para os objectivos – , temo que aconteça algo de semelhante com a questão da pobreza.
Aliás, só há um modo seguro de um país pobre se saldar num sucesso a prazo: apostar numa indesmentível educação de qualidade. Exactamente o contrário do que se pratica hoje em Moçambique. Como se estivessem deliberadamente a preparar um país para a servidão. Entretanto, concretamente, na sua sanha liberal, o governo demite-se de quase tudo, entrega a iniciativa à sociedade civil (leia-se empresários de conotação próxima do poder, os mandantes) e apesar desta se mexer pouco o governo alheia-se.
É o que se passa na cultura.
X foi convidado para organizar uma edição em Moçambique do Festival de Cinema da CPLP, pois este ano passado cabe a Moçambique a sua organização. Perguntou, muito bem, que dinheiro é que há para gerir? E responderam-lhe. Isso é você que tem de o obter. Eu?, perguntou o espantado. Claro que a edição do Festival desta vez não se cumpriu, mas se ele tivesse puxado pelos brios e ido arranjar umas massas aos doadores…
Este debilitamento da consciência de uma responsabilidade social já se verifica actualmente, segundo as teses do sociólogo Michael Freitag, no subsolo da dinâmica que rege as sociedades europeia e americana, mas nestas existe ainda uma série de mecanismos e de instituições cujo carácter retardam ou amortecem o choque. Mas a onda de choque acentuar-se-á logo que tiverem entrado em colapso a segurança social e os fundos de reforma, e que as leis laborais conseguirem contornar todos os direitos adquiridos ao longo dos últimos duzentos anos. Então o fosso entre classes conhecerá um novo patamar e quebrar-se-á um certo equilíbrio burguês, que calibra ainda a vida comunitária na Europa.
Ressaltarão aí as assimetrias sociais que hoje se patenteiam no continente negro, e quando as pessoas para sobreviver se virem obrigadas ao uso intensivo das manhas e dos subterfúgios das economias paralelas (não raramente mascaradas em módulos micro-económicos), por uma vez África estará tristemente na vanguarda.
África é hoje uma imensa comunidade que vive da gorja. Quando a Europa acordar no meio da necessidade de viver da gorja dará conta da insídia de carácter que impôs aos outros, àqueles a quem saqueou, e, anestesiada pelos ‘esquemas’, sentar-se-á sobre os seus furúnculos.»
Deprime-me saber que 7 anos depois a Europa começa a viver da gorja e senta-se sobre os seus furúnculos.

 

Leio em Traité du Tout-Monde, de Édouard Glissant: “Douve tocou-nos, enquanto primeira palavra de um poeta da nossa geração que sugeria, sem o afirmar, que a poesia é conhecimento, mesmo se este conhecimento passa por aquilo a que Bonnefoy chamará mais tarde “o Improvável”. Creio que este foi também, o primeiro livro de poesia contemporânea que nós elegemos como sendo ao mesmo tempo total e tão pouco totalitário, e tornou-se evidente que o corpo de Douve, objecto da poesia, obscuro e iluminado, dividido mas constantemente recomposto, afigurava-se-nos uno e transfigurado pela multiplicidade que o atravessava. “ (  )
A mim também me toca, e até mais que o livro de Bonnefoy, a ideia de que a poesia e conhecimento sejam indissociáveis, mesmo que improvavelmente. E este pequeno ou grande desaire parece-me mais conforme ao poema do que a gentilíssima arte do protocolo em que se vem transformando. 

 

Mercado do povo. Há uma mosca dentro do gelo que me aclimata o uísque. Nada que se assemelhe às ratazanas que vi numa reportagem televisiva sobre as cozinhas do Hospital Central. Afinal, o que é uma mosca, pequena, das que cabem na cova de um dente? Carbono. E o gelo não derreterá até ela, enquanto eu acabo a dose. Pode ainda ser reaproveitada e ir adornar outra pedra de gelo posterior. É uma questão de design. E estará morta ou, exposta ao sol, reanima?   


 
Uma fábrica de anjos albinos: escreve Jacques Lacarrière. Que não conhecia as ruas de Maputo, se não saberia como esta sua imagem tem nela um surpreendente esplendor. 

 

Em Le Roman Vécu, Alain Jouffroy narra, com a inconsciência dum verdadeiro cabotino, um episódio que surpreende quem se habituou a ver neste poeta um homem lúcido e avisado. Viveu cinco anos perfeitos com uma mulher, até que a filha dela, que ele ajudara a criar, foi morta em Los Angeles, para onde tinha ido estudar. Vítima de violação. O desconcertante, para Jouffroy, é que a rapariga não seguira o lema de Lao-Tsé que ele e a mãe tantas vezes haviam recomendado, “Se a violação é inevitável, folga e goza!”. E põe ênfase no espanto: «Non seulement Nina était d’acord, mais elle était capable, par son intrépidité, sa fougue, son indépendance, de mettre en pratique ce très sage conseil. Rien ne nous a jamais expliqués ces cris…» (pág.51). Fala dos gritos com que Nina tentou resistir ao violador e que o levaram ao impulso de a matar. Jouffroy esqueceu-se de uma coisa fundamental: da dignidade do gozo!

sexta-feira, 12 de abril de 2013

QUATRO VELAS DE RECATO

Georges de La Tour

Quatro velas íntimas. As versões são minhas. Algumas palavrinhas não tem acentos pois estou a ser boicotado por um teclado sul/africano


Vivo para devotar-me
a uma ou duas palavras
nuncas ditas,
impronunciáveis –
essas que se adivinham
uma hora antes da alba
no olho do antílope
que lentamente se espreguiça
entre duas arvores sonolentas.
                                Joel Bosquet



RETRATO DO EQUILIBRISTA

Primeiro que tudo a arte de não
                           se cansar,
de trocar de pé com graça
                          sobre o abismo
e ter um andar airoso.
Amigos e inimigos nivelados
                             e repartidos
como pesos invisíveis
na orla do guarda sol.
Voe a pena no meio do coração.
E sirva a mesma linha central para desejar
                                 e pensar –
sorrir sobre os abismos.
                                       Harry Martinson



ARRABALDE

No arrabalde infinito
há uma árvore ratada.
Aguentam-na em pé as folhas
que só ao vento ressoam.

Um álamo no pó,
desfiado por casas em uniforme.
Brincam os miúdos em seu redor
o jogo da vida mínima.

Compram areia por farinha.
Vendem pedras por pão.

]E quase verão.
                           Gunnar Ekelof



ENTRE NENÚFARES

Escrevi um prólogo ao que ia dizer
mas perdi-o. No entanto,
antes que a noite me cubra
gostaria de dizer o seguinte -
seja um punho cerrado entre nenúfares
a ultima imagem que de mim se veja,
a ultima palavra que de mim se ouça
as borbulhas subindo do fundo.
                          Erik Lindegren

quinta-feira, 11 de abril de 2013

A PÁSCOA, SEGUNDO OZO


Maputo acordou gelada, não mais que vinte graus, e com um vento que vem da Antártida. Quem puder acreditar, acredite. Tirito. Mas salvou-me o ânimo um mail com uns versos que o meu amigo Ozo me mandou do Caribe, onde foi de núpcias. Casou, mas continua um herético.
E enviou-me o poema que fez no dia da Páscoa.
Algumas notas para quem não é de Moçambique. O Museu, nas imediações do célebre Museu de História Natural de Maputo, é um mercado popular encravado num dos bairros nobres da cidade, e com centenas de tascas em madeira e zinco onde as bebidas são pela metade do preço do resto da cidade. Um Xiconhoca é um tretas que só faz confusão; o pito é uma expressão popular local para designar a genitália feminina; a Inhaca é uma ilha, para aí a sessenta quilómetros da costa, perto de Maputo; o Bairro Estrela é, em Maputo, um mercado de rua onde se podem comprar as peças de automóveis que foram roubadas no dia anterior; um Ministério é como as raparigas chamam a um amante ocasional que lhes paga algumas despesas; Mueda é a localidade onde se deu um massacre perpetrado pelas tropas portuguesas e que, embora seja um símbolo da luta armada, continua tão pobre como antes; o Francisco é aquele que a gente conhece. Julgue quem queira, eu deixei-me disso!

 
A UMA DAMA QUE PERDEU OS TRÊS
NO MUSEU E MORREU VIRGEM

O mundo perdeu o andor.
Perdeu o andor. Perdeu…
E já não distingue estufa de braseiro.

“Quem não ensandeceu, morreu!”,

 
buzina ébrio nas barracas do Museu -
olhos biscos no bizness - o xiconhoca.

E eu peguei na Senhora e fui-lhe ao pito…

à Nossa! E sossegada enfim a minha moca

 
confirmo: não presta a dama. Mais valia rever
o Trinitá ou um fim-de-semana na Inhaca

entre tartarugas e pornochanchadas,

que voltar-lhe aos cueiros, uma caca

 
que só vista, como a da paisagem inundada
que afogou os cocos e que de tão blindada

encheu os caroços de alzheimer. Fediam-lhe

a cona mais de mil negros no porão!
 


Juro! O andor era o seu ponto G,

e perdeu-o. Eu fui apenas um dador!

Não sei que vos diga, as procissões, só

as há por idolatria ou falta de leite primor,

 
pois, na verdade, nem um ladrão ladrou

quando o cão se me abeirou dos colhões!

Porque, não era dentada, a dita? Fedia,

tinha pra cima de mil negros nos porões!

 
Procura-se agora no bairro do Estrela,

entre matrículas, faróis e pisca-piscas,

mas a esperança apagou-se – foi-se

o andor, só da verdade faço sela!

 
O andor desandou o andar

e deslassou na desgraça a novidade.

O futuro di-vagou o andor

e eu, da varanda do quinto, cuspo:

 
 - Lágrima que arde!

Queres Ministério? ‘das!

Não lhe desejo mal, mas não era já tarde,

prá Santa continuar a ser um floco de neve?

 
Queria tanto, como o meu amigo Joseph

que a lua fosse uma moeda

para lhe telefonar, da pobreza de Mueda,

num domingo, 31 de Fevereiro,

 
Lhe lembrar, a ela, à mãe de Cristo.

a nossa antiga morada - do seio

ao peito, qu’eu do meio pra cima

ou abaixo a tudo assisto, independente,

 
e quando chupo sou mui decente

e até, dependendo do labor, docente!

Andor! O sol está a pôr-se

e o mundo ficou sem andor.

 
Dá-me um White Horse!

(Que rima tão mal parida!)

Pena, já foi um esplendor

e até, dizem, virgem aparecida.

 
Gaspar, Baltasar e Melchior

é que lhe tiraram o retrato.

Se a estrela invernou, pior,

se era já só fuligem…

 
ou se, na erupção de um vulcão,

desfrutou, eles é que viram

a embriaguez do cume, a tesão

do lume na maior das bisgas.

 
Agora o stress é do andor,

que se foi. - Francisco não corras

não, a seta não pára!

E se te restar depois alma & pudor

 
que bebas, da concha das mãos,

o lodo! Cristo é que – ó Sara,

‘presta-me o binóculo – não morreu de sarna

na cruz! E quem a galinha choca a esmo,

 
afinal, não é o ovo mas o dólar,

o desfibrador do metical.  

O sol está a pôr-se e talvez não tenha mal

visto que o mundo perdeu o andor.

 
Põe-se o sol, o sol está a decompôr-se.

Dá-me outro White Horse!

Andor, andor! Sheet! Grande estupor!

Não há? Dá-me um Black Label!

 
OZO/ páscoa de 2013


quarta-feira, 10 de abril de 2013

DESPERTARES: 10 DE ABRIL DE 2013

                                                                  Flor Garduño


EMIGRAÇÃO
Mais uma que se vai, grávida. Depois de ser atropelada, duas vezes, por um compressor de estradas. Ele fica, o compressor. Agarrado à chinesa que compra no Bairro Estrela. O primeiro filho já foi feito entre uma chinesa e outra, com a cabeça na prata. O segundo, imagino, entre um protesto e outro, dela, que se foi enfartando da nhurrice dele. Ele, como bom compressor de estradas, voltou a fecundá-la.
Ele era uma boa contadora de histórias, ele não se percebe o que viria a ser porque a prata cilindrou-o, encheu-lhe de furos as sinapses.
Dois tugas vencidos pelas amenidades tropicais.


Em que filme ouvi isto, de que gostei tanto: “Como aguentar ainda esta tarde tão longa e adentrarmo-nos noite fora?”. Terá sido no Lincoln?

 Epitáfio:
“Não guardo rancores à morte, E raramente pude dizer o mesmo de alguém”.

 
A cicatriz que tem na bochecha fica-lhe a matar.
Emprestava-lhe o meu x-acto sem parcimónia.
E ri como se fora a foz de um rio, primeiro tímida,
Depois envolvente, arrastando no seu passo os juncos
E os lírios da margem. O que aquela cicatriz fez por ela!

 
De Deus não se diga mais que é inapreensível ao homem - esqueceu-se simplesmente de si mesmo sobre os ombros humanos. Pobre Francisco, um songamonga entre brutais…

 
Observava Hegel sobre Diógenes: “Diógenes, no seu tonel, está condicionado pelo mundo que procura negar”.
Assim me vejo eu em África – constrangido pelas adelas que fui construindo contra um mundo que me parece inapelável, predatório. Mas não é sempre assim, e em qualquer lugar? A realidade não acaba sempre por agredir-nos? Suspeito que a nossa percepção, em refocagens contínuas, nos leva a movimentos alternados de contração e de dilatação, seja qual for o horizonte em que nos situamos. E de vez em quando há que romper o perímetro do tonel, pois ninguém pode viver dentro de um periscópio.

 
ACUSANDO A RECEPÇÃO DE UM CERTO BOI NA LÍNGUA
José-Emílio Nelson é um dos poetas portugueses que gostaria de ter sido (é mais ou menos treze, o número do meu galo). Mas cada um nasce para a falta que lhe acena e, inacabadamente, não sou Nelson, nem mesmo Trafalgar Square.
Entretanto, ser adulto é aceitar que nem sempre o fluxo nos corre bem e que a evidência nos desapropriou de algo que deu aos outros. Por isso, como Jarry, depois de lhe ler os livros só me cabe, como ao criador da Patafísica à beira da morte, “pedir um palito” – pois que mais se pode suceder ao festim da vida?
Olhar uma página com o sentimento de que a pedra avança na direcção da vidraça que nos protegia, eis muitas vezes o que me acode ao lê-lo. Ainda bem que ele nos sabe desproteger assim.   
Por isso escrevi uma carta ao mafarrico, carta que tinha nó, e não era desinteressada, mas que procurava imitar o respeito que lhe tenho. E o respeitinho é muito bonito. E foi assim:

CARTA AO ALMIRANTE JOSÉ EMÍLIO-NELSON,
EXILADO NAS BARBAS DO CAMARÃO DE ESPINHO

Temendo embora que se te gaste a borracha
em pívias vãs, aí te mando matéria
para o degredo, a despeito
da melhor ejaculação. O mau passo
que dei ao coligir um book de sonetos
de que nem conta dei de ter escrito
e que resume trinta anos
da mais estulta inconsciência,
‘inda que, num vislumbre ou outro,
observada. Gostava agora
de publicar esta gaita (mais esburacada
que a frauta de Pã) em Portugal,
terra espúria e onde até o traque
é de exportação, mas que guarda,
sepultos, os ossos de minha mãe
(- Deus, que é ateu, a tenha em descanso!).
Pensei na Afrontamento, alunagem
em território onde nobody me
(re)conhece e o livro poderá ser lido
com o exacto peso com que pisa
a passerelle e não por do meu simpre
nome ressumarem espumas ou urtigas.
A que grada figura hei-de eu dirigir
o envelope para que o meio quilo
de grilos não se fritem em casa
do porteiro? Esse alguém, o til
de tantas águias en telle maison
d’edition, capaz de dizer não
em vez de encapsular o incauto
na vagem do silêncio, que nome tem?
Sabes que a oito mil milhas, neste tesoiro
de regurgitada penúria, nada transpira
da manhosa dança das cadeiras
no reino da edição. Cismo
porém, neste alcoolizado dispêndio
de nada saber, que uma secretária
ao lado (atchim!)… e eis-me trajado
de pijama para o túmulo!
A quem pois dirigir a missiva
de exilado, desd’ estes recônditos
trinta por cento de Oriente do Pessanha?
Poder-me-ás tu socorrer, meu
glabro e grisalho galagala
de prepucial gabardina,
em ínvia e inatazanada esgalha?
E mais não peço e defiro:
um beijo e duas berlaitadas!

sábado, 16 de fevereiro de 2013

GLADÍOLOS E LUCÍOLOS


                                                           um gladíolo e um lucíolo?

Escrevo:
«Não me cansarei de me lamentar por este triste limite: leio, “as noites de verão que inflamam os lucíolos, entre o rio e a Via Láctea” e veem-me à cabeça, vagamente a forma dos lucíolos, mais a sua cor, mas fico rapidamente turvo, sem a certeza se não os confundo com os lanceolados gladíolos, por exemplo, e esta indefinição (que digo: ignorância) desgosta-me porque simplesmente sinaliza que me fui afastando da natureza, um dos males do século, segundo Camus, que regista nos Carnets: «Voltei a ler todos estes cadernos, desde o primeiro. O que me saltou à vista: as paisagens desaparecem pouco a pouco. O cancro moderno corrói-me a mim também».
Depois olho bem para a frase, e desconfio. Vou ver o que significa exactamente lucíole em francês e dou conta que é vaga-lume pirilampo, o que dá outro propriedade à frase: “as noites de verão que inflamam os pirilampos, entre o rio e a Via Láctea”…e pior, que nunca houve qualquer flor chamada lucíolo. C’est fini, c’est Capri.

 
Todos os dias espreito A Bola on line. Espanta-me uma tendência dos últimos tempos que é a de apresentar raparigas supostamente em poses eróticas, com a inscrição em baixo, A DIVA DA PORNOGRAFIA X. Portanto, é esta a noção que hoje os responsáveis de A Bola fazem da sexualidade dos seus leitores: uma força que os impele para os bordéis. Ou isso reflecte apenas o estereótipo do que se associa aos jogadores de futebol: putas e vinho verde?
Há qualquer coisa de doentio no critério editorial desses senhores e que mostra a pobreza mental, a venalidade sem remédio, em que se acantonou o país, onde uma ida ao Elefante Branco já passa pelo melhor que os media são capazes de oferecer à imaginação das pessoas.
Estranho, que a Leonor Pinhão nunca tenha feito uma crónica sobre esta nova tendência do jornal.
Gosto sempre de ver uma mulher nua, ou semi-nua, mas… acho que a nudez pode provir de formas mais saudáveis de relacionamento e não me parece que esta “atitude de proxeneta” dignifique nem o leitor nem o jornal.

 
Leio um dos livros mais bonitos que me passou pelo estreito desde há uns meses a esta parte, o ensaio do sino-francês François Cheng, Cinq méditations sur la beauté (Albin Michel, 2006), para quem a dicotomia, inusitadamente, não é a do Bem e do Mal, mas a da Beleza e do Mal.
E encontro aí uma sugestão deliciosa sobre as rosas. A de que o perfume nasce do ritmo da rosa, emanado como uma melodia que uma onda rítmica desencadeou.

 
Num velho caderno encontro esta citação de Kafka: «Há possibilidades para mim, de certeza; mas por baixo de que pedra é que elas se encontram?». Ainda hoje sinto vibrar aqui as afinidades, e debaixo dela, depus esta outra observação:
19 de Setembro de 1912, Kafka nos Diários escreve assim: «Esta história, O Processo, escrevia-a eu de um jacto durante a noite de 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã».
Eis aqui a mesma bazófia olímpica que usou Pessoa para se gabar que escrevera na noite de 8 de Março de 1914, de pé, encostado a uma cómoda alta, todo o ciclo do Guardador de Rebanhos, mais a Chuva Oblíqua e a Ode Triunfal, como refere em carta para Casais Monteiro. Claro que esta mistificação é-lhe merecida, mas mais tarde encontraram-se, desde 1912, se não me falha a memória, vários rascunhos datados do que viria a ser o poema chave de Alberto Caeiro.
Não há dúvida, dois favorecidas pelas Musas. A proeza de Kakfa equivaleria à facecia de Tolstoi jurar a pés juntos que havia escrito A Guerra e Paz, numa semana.
Bom, se Deus criou o mundo em seis dias e o colapso do sétimo ainda não acabou!

 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

PARA QUE SERVEM OS ELEVADORES?

                                    Eis outro António: o Quadros, que homenageio neste livro

E pronto, chegou da tipografia. É um pequeno livro de ensaios, Para que servem os Elevadores, e outras indagações literárias, 200 páginas, publicado pela Alcance, sobre literaturas. Metade incide sobre literatura moçambicana e o resto são textos volantes, uns inéditos, outros não, como o Respiro (que teve uma edição de 80 ex.), o Que Histórias Conta o Ouriço à Baleia? (uma edição de 300 ex., se bem me lembro, no Pico), os meus prefácios à tradução de Juan Luís Panero ou à antologia que organizei do Virgílio de Lemos, ou o meu texto sobre o Grabato Dias, mas no essencial é uma primeira antologia onde se evidenciam os passos em falso que tenho dado na área.
Tenho uma segunda já preparada, Dá-me Cem Gramas de Camões Mal Passado? mas esta fica para o fim de ano. Por agora, deixo o títulos dos capítulos:
- A sós com os meus botões
- Que histórias conta o ouriço à baleia?/ travessias no imaginário
- O passe vertical/ poesia e futebol
- Como se desmama o crocodilo?/ cartas a um jovem poeta
- O homem com gatos nos pulmões/ Grabato Dias
- Quem cala a raposa e o grilo/ Ted Huhes e Alexandre O´Neill
- Carta ao poeta Alberto Lacerda
- José Craveirinha: um polígamo da mostalgia
- Consentimento da Neve/ Panero e eu
- Lírios, flamingos e o sentimento do tempo/ Fernando Couto
- Para que servem os elevadores?/ da “inutilidade” social da poesia
- Três novas chaminés fumegantes/ Mbate Pedro, Tânia Tomé e Florindo Mutender
- Cidade dos Espelhos, um excurso/ João Paulo Borges Coelho
-  A buganvília que ri/ Virgílio de Lemos
- Respiro/ poesia e não-dualidade
- Desejar mas não Fundir

 Como se vê: é um zoológico. Ou uma zoologia dos fluidos.
E para que se perceba como a coisa não pode ser muito séria, aqui vos deixo as três epígrafes escolhidas para encabeçar o livro, demonstrativas de que por ali pouca coisa será potável:

 «A minha vocação é desenhar o que vejo e não o que sei»
William Turner 

«Eu pinto os objectos como os penso e não como os vejo»
Picasso

«Direi, salvo o vosso devido respeito, que ele faz milagres, pois tem o cu redondo e faz os dejectos quadrados»
Nicolas Poussin

 O desenho da capa é do João Lucas, que é brilhante em tudo o que toca.
Ah, sim, os elevadores. Como em Maputo é o segundo andar alto em que vivo (agora um nono) com os elevadores a conta-gotas (quando funcionam) a fúria aca(l)mou em metáfora.