E o dia nasceu aziago e o computador não despertou com ele, avariado, lixando-me os planos para a semana, entre os quais postar os diversos materiais que vinha a preparar para uma simulação de um segundo número da minha revista Construções Portuárias.
Tinha traduzido Gonzalo Rojas e Charles Olson, além de Rabearivelo, que felizmente vertera noutro computador. Teremos de ter paciência e aguardar um dias.
Jean-Joseph Rabearivelo, nascido Joseph-Casimir (1991- 1937, Tananarive), foi um poeta malgaxe, considerado o primeiro poeta africano moderno. Teve de tudo na vida: cinco filhos, dívidas, a prisão, a paixão do jogo e o vício do ópio. Leitor voraz e autodidacta, as suas ambições foram sempre torpedeadas pela canalha de secretaria do estado colonial. Acabou por suicidar-se.
As versões são minhas,
a partir de Traduit de la nuit, recolha de poemas escolhidos e apresentados por Gonzague Raynaud na
colecção Orphée , de La Différence
I
Gira uma estrela
púrpura
na profundidade do céu
- que flor de sangue
desponta na várzea
nocturna
e gira, gira
como o escaravelho que
a mão de um menino
adormecido soltou?
parece aproximar-se e
afastar-se, alterna,
e perdida a sua cor
como a flor que já definha,
torna-se translúcida
nuvem, reduz-se:
flébil ponta do
diamante
que estria o espelho
azul do zénite,
donde já se aprecia o
proveitoso
engodo da mais núbil
manhã.
Que se passa debaixo da
terra,
no nadir longínquo?
Se te inclinares rés à
fonte
na margem de um rio
ou de uma nascente:
surpreenderás a lua
a desaguar num ralo
e ver-te-ás a ti mesmo,
luminoso e calado,
entre as árvores sem
raízes,
donde surdem os
pássaros mudos.
V
Dormes, minha
bem-amada;
dormes nos seus braços,
tu, a última a ter nascido.
Estão-me vedados os
teus olhos carregados de noite
que por hábito se
irisam como autênticas pérolas
ou uvas maduras.
Uma rabanada de vento entreabre
a nossa porta
enfuna a tua túnica
e agita o teu cabelo,
depois revolteia um papel
sobre a mesa, quando o
agarro
já roça a batente da
porta.
Levanto a cabeça,
o poema começado na
mão:
nos teus olhos
pestaneja o azul
e eu chamo-lhes
“estrelas”.
da edição inglesa
VI
Um pássaro sem cor e
sem nome
despenteou as asas
e feriu o único olho do
céu
Agora pousou numa
árvore sem ramos,
cravejada de folhas,
que nenhum vento
estremece,
e cujos frutos, olhos
abertos, ninguém colhe.
Que incumba o pássaro?
Quando ele retomar o
seu voo,
não sairão dos seus
ovos senão galos:
galos de todas as
aldeias
que terão vencido e
dispersado
os outros que cantavam
nos sonhos
e se alimentavam dos
astros.
XI
Quantos gémeos são, os
ventos?
São todos acostumados
diabretes
que se perseguem logo
que saem da erva
rasa e galgam os muros
que se imaginavam
duplos, saltando por
cima dos telhados
onde recolherá o
orvalho,
para se curvarem sobre
as colinas
e aí sacudirem as mais
colossais e inextricáveis árvores,
das quais, num estampido,
debandam pássaros
com olhos de vidro
e que em sítio nenhum fazem
ninho,
ou as bagas oblongas
como gemas de quartzo
que, à falta de se
reproduzirem em terra,
se fundem nas estrelas
cadentes.
XIX
E o dia chegará, em que
um jovem poeta
realiza o teu voto
impossível,
por ter somente
conhecido os teus livros
raros como as flores
subterrâneas,
os teus livros escritos
para cem amigos,
e não para um, e não
para mil.
Sobre o golfo de sombra
onde ele te lerá,
à única luz do seu
coração
onde o teu voltou a
latir,
ele não te imaginará
pastor
de uma pacífica
ondulação
que continua a adensar
os ignotos
abismos submarinos,
onde o sol não chega,
como não chega à areia,
nem à terra vermelha,
nem abaixo dos
penhascos devorados por líquenes,
que se estenderão até
ele
até ao país dos vivos
cegos e surdos desde o
Génesis.
E levantará a cabeça
pensando que é ali, no
céu,
entre as estrelas e os
ventos,
que se ergue a tua
tumba.
manuscrito de rabearivelo
XXV
Películas de água, cristais reluzentes
- óculos para míope ou
para cura? –
veludos da pupila
lisa como o cútis
branco das açucenas
e mais frágil do que a
unha de um recém-nascido.
Os ventos nascem para
lá das montanhas
e deslizam até aqui
onde dormem as plantas
cujo reino saqueiam e
logo abandonam.
Ímpeto de luz que os
persegue
até ao deserto sideral
coberto de películas de
água, de cristais,
e dos veludos da pupila
que resplandecem
silenciosamente
e indicam uma senda por
desmatar
e entrecortada por um
rio de seixos,
até essa lua vesga
que nele ondula
e que alucinaria o
menor movimento dos seus cílios.
XXIX
Existe uma água-viva
que mana do
desconhecido
mas que também encharca
o vento
que bebes,
e tu aspiras à sua
descoberta
por detrás desse penedo
maciço
desgarrado de qualquer
astro sem nome.
Inclinas-te
e os teus dedos
acariciam a areia.
De súbito rememoras a
tua infância
e as imagens que a
enfeitiçaram – sobretudo
a que encimava estas
palavras ingénuas mas intrigantes:
“A Virgem dos sete
Dólares.”
Eis outra água-viva,
como flui, intérmina,
sob os teus olhos
como atiça a tua sede:
agora que a tua sombra
- a sombra dos teus
sonhos –
se cinde em sete partes
e, emergindo de ti,
agrava a noite já
densa.
XXX
Vãs, todas estas
antecipações
que nos querem dar asas
e nos prometem
que um dia seduziremos marciana?
Vã também a quimera
que perdeu a Ícaro
mais que ao sol
que bebeu a esplêndida
cera?
Mas que triunfo seguro
me anunciam já todos
estes signos
que terra e céu se
enviam
na orla do sono:
nas nossas cidades de
vivos
até as mais humildes
choças
respondem aos apelos do
fogo,
que jorram das estrelas
nascentes.
Antóniooooooooo gosto tanto
ResponderEliminarTanto tantissimo.
Obrigada. Mt. Pk não conhecia.
Estrelas . Pérolas .
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