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| o beijo, robert doisneau | 
`As vezes perguntam-me, porque foste tu para Moçambique? Eis a resposta:
1
Só de um estado se entra 
e se sai. Em ti, 
contigo, ouço 
a batida do meu sangue.
Julgo-te atrás de mim 
e desfechas à minha frente 
um mar de assoalhadas, 
és o pavão que abre 
o leque e recolhe 
a paisagem. 
As formas 
encobriam 
a realidade.
Antes de ti. 
2
Antes de ti 
tentava mudar a vida
e o mar era a viseira
que resguardava o rosto.
Antes da compreensão 
de que a pele 
é a ombreira 
onde se recosta 
a que mira o horizonte 
e trinca a maçã 
reineta. A tua 
dentada 
na polpa 
que me adoça.
3
Não há memória 
nem passado. 
Há a forma 
como cantas 
e o aceno 
de te escutar.
Modos de evasão 
que crescem 
para dentro.
4
Antes de ti, 
só nos objectos 
despertava.
Na extensa respiração 
dos talheres.
No bocejo dos anéis.
No jogging dos ponteiros.
Antes de ti, 
na ponta dos dedos 
nascia uma ilha.
Ataduras que isolam.
5
Dois cientistas trabalham num laboratório
Um deles toca a mão do outro 
e faz uma descoberta: “este 
é o meu corpo”. Transmite 
ao outro a equação, explica-lhe 
que combinações realizou a fim 
de obter o resultado. O seu companheiro 
deve ter confiança no que está a receber. 
Mas recolhe uma informação em segunda 
mão. Então toca na mão do outro 
e repete: “este é o meu corpo”. 
Depois toca-lhe o braço. 
Etapa a etapa trocam 
de lugar. Então desperta
6
Distintos ecos
mas só em ti 
a montanha se faz sopro
e a minha boca é
presença a si mesmo
7
Por cima da amendoeira
os cirros,
debaixo 
a carne,
sobrenatural,
que me restaura
os dedos
como à água nas cegonhas
o voo. 
8
Contigo: seguindo-me 
a mim mesmo 
sem nunca me preceder.
Sem ti: os cães da noite 
batem portas 
no meu espírito.
9
A tua ausência 
escarpa 
o ar,
pesa ancestral
nos reposteiros,
ilumina a sujidade 
dos abat-jours, 
ressoa nos livros inertes 
como palha, 
sorve o silêncio 
da casa, atento 
inconfidente
a si mesmo – 
pela primeira vez 
imaterial. 
Aquietar 
o coração se nada 
na sensação é fixo?
Só o olho da rã 
acompanha a velocidade
dos movimentos 
em ziguezague,
hipótese
que Deus
me sonegou. 
A minha intimidade
(a tua pedra de toque )
migra
e ar-
-de 
a Oriente.
PARTIR, O FORMATO LÍRICO
Será possível que o meu corpo
tenha afinado a lupa 
que a tua pele refractava?
É esta a condição do homem:
a sua fronde não esgota
o ciclone, a sua inclinação
para a morte não desabitua
a Primavera. A estação
dos outros, quando não estás.
Eis-me afeito a partir.
Já não receio ferir-me no cabo
em marfim do destino, 
no vestígio vivo que alumia 
o passo no gume da manhã.
RIR, COM OS NERVOS DA CHEGADA
Reveja-se o zombie jubilado a sair do avião.
Reencontra-a após cinco meses
de lameiro como vegetal irregular,
e interroga-se: “amo esta mulher,
que frutos arborescemos juntos?” 
Abraça-a, enguia miúda, e espanta-se
pela sua nova madeixa branca (o que só
lhe realça os olhos), enleado na doçura
do sorriso com que ela armou o laço
à sua alma apardalada. Imagina-se
fora de toda a distância, sobre a pele
das Índias, como alguém que é orfão
e ao amor pede desplante: o lúbrico
e paleolítico estoiro das fronteiras.

Excelente e irrefutável razão.
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