LIVRO DE HORAS

domingo, 13 de março de 2011

UM DOMINGO TROPICAL


foto de luis bastos

UM DOMINGO NOS TRÓPICOS

Adormeço com dores de garganta, mas resignado, depois de um chá quente, porque o trajecto da única farmácia de serviço nocturno perto não é seguro. 
Às quatro da manhã a Teresa acorda com vagidos da miúda mais nova e resolve ir averiguar. Põe o pé no chão e soa o alarme: água. Acende a luz e eu confirmo: quase que dava para a minha ambicionada pesca à pérola.
Temos a casa inundada, e ao fundo ouve-se o jorro de uma torneira. Ela corre para a co- zinha, na marquise rebentou o cano do esquentador e a água sai aos borbotões. É a segunda inundação este ano. Olho as pilhas de papel sob a minha secretária, elevam-se dum rodapé líquido com três dedos pelo menos e os livros nas estantes estão sob ameaça. É a minha vez de correr para fechar a torneira de segurança na escada. As miúdas acordam e durante 15 minutos é uma festa, puro ski aquático.
São quatro e meia e decidimos voltar a dormir, antes dorminhocos nenúfares que bombeiros de serviço. O mal está feito, pode esperar por baldes, esfregonas, vassouras e toalhas. E às oito chegará a empregada, sempre será um reforço.
Da outra vez, uma das miúdas não fechou bem a torneira e quando voltou a água às 4h30 (a água é racionada, tem horas para correr) correu livremente até nos sonharmos dentro de uma catarata. Então alguém acordou, tarde de mais.
Foi assim que estreámos a casa, há três anos; chegámos com os dois camiões às 8h da manhã e às 8h 30 o elevador estacou, avariado. Destino: um sétimo andar, com mobílias, tarecos e sobretudo livros, dezenas de caixas com livros. Subo as escadas, furioso, e vejo manar da frincha da porta um manto de água. Abro a porta e descubro que a casa é um lago. Um dos trolhas que tinha retirado as mobílias do inquilino anterior havia aberto a torneira para se dessedentar à hora em que se corta a água e vendo-a minguar num fiapo distraiu-se e deixou-a aberta.  
É a terceira ruptura do cano desde 2010, já experimentámos cinco ou seis canalizadores, em vão. São todos rapazes de biscate, não há nenhum que faça o trabalho bem feito, pelo menos para o nosso orçamento. Também temos problemas com as ligações de electricidade – as lâmpadas suicidam-se com uma frequência desanimadora, e não conseguimos um electricista confiável. São arranjinhos provisórios. E o elevador passa metade do ano avariado.
O meu caso não é particular, está no quadro geral do equipamento urbano, a degradação é geral. Há dois anos que lamento a minha falta de tomates para me mudar para uma flat fantástica, com 2 salas, três casa de banho, e quatro quartos, numa zona mais central da cidade, e mais barata cem dólares do que o meu apartamento. Simplesmente é num décimo terceiro andar sem elevador. E eu sei como invariavelmente me lembro cá em baixo de que esqueci qualquer coisa lá em cima.
Às seis da manhã damos conta que é impossível voltar a Morfeu, as miúdas ficaram excitadas com a aventura. E só nos resta pegar nos baldes e esfregonas. A Jade quer apanhar a água com a rede mosquiteira. Ainda propus, e “se deixássemos secar por si – não há-de levar mais que 4 ou 5 dias…”, mas isto é gente que afinal não quer uma piscina em casa. Lá me dobrei à vontade colectiva e apanhei cinco baldes de água à pazada, antes de pôr-me a torcer toalhas, centenas de toalhas, até os músculos rechinarem. A Ana empurrava a água à frente da esfregona com os headphones postos, eu abstraía-me pensando que era um aviador das esquadrilhas de Kadhafi. Ou culpando o João Paulo Cotrim – isto só pode ser um mau-olhado do sacana, realizo, faz anos e eu é que as pago.
Durou até às nove, às 9h 10 tomei um duche frio e ainda a escorrer água sentei-me à secretária, para escrever esta nota. Até ao meio-dia tenho ainda que preparar as aulas de amanhã. Tema: o Belo de Plotino a Kant. Depois temos feijoada em casa de amigos.
A dor de garganta passou.  
   

1 comentário:

  1. Caríssimo, reitero (ainda que o diga pela primeira vez aqui): parabéns pelo blog! É de se celebrar. Primoroso, divertidíssimo, ludibriando tsunamis caseiros e repimpanços tecnológicos com uma performance escrita notável!Enfim, na linha de sempre, surpreendendo. Cuida dessa garganta, que a tua voz faz falta. E boa feijoada!

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