Tenho um amigo que anda a passar as passas do Algarve, com a mãe a finar-se. Na semana em que de longe (já estava em Maputo e, lamentavelmente, sem dinheiro para sair de hoje para amanhã) pressenti a agonia da minha escrevi isto. Vai para ele. Uma poesia, enchamos a boca, cheia de pathos. Parece que já não se usa. Eu estou-me nas tintas, ele, sei que também.  
QUANTO PESA O OSSO NO NINHO?
Uma vez, levou o Aurélio para o quarto 
e, na manhã seguinte, ao devolver-mo, 
comentou: «Este dicionário tem de tudo: 
erva-dos-gatos, erva-de-louco, erva-de-jabuti, 
erva-capitão, erva-de-santa-luzia,
 erva-do-aflito, erva-dos-cantores,
erva-mijona, erva-de-piolho, 
erva-aranha, erva-da-muda,
erva-de-parida...só não tem erva-
-daninha....Queres um chá?». Nunca 
mais me poderei evadir, encolher 
os ombros, suster na epiderme o ralho 
resinoso, desligar-lhe o telefone. 
Há-de cacarejar sem engasgo num postigo 
inescusável do meu cérebro,  
nó que supura a madeira mais macia.
A pessoa que nunca cresceu e fez do medo
a sua mesa alemã, que me deitou à terra 
como estrume e legou este enorme sentimento 
de impreparação, fenda geradora de fenda, 
água a que um poço abriu um olho 
e que agora sonha com a vastidão 
dos incêndios, com guindastes 
onde um céu se espreguice; aquela 
que nunca poliu as unhas e devorava
almôndegas como se fosse terra moída 
de Veneza nunca mais deflagrará o seu silêncio
no fulcro de segredos quase absurdos.
Nunca a levei a provar filetes de moreia,
ou lhe falei de Itália, a minha tisana.
Não perdoa aos mediterrâneos o vinho.
Adoraria ter vivido na densa folhagem
dos carvalhos – para não ser vista. E
como esquecer não é para o seu feitio 
encobre no musgo a pedra que lhe fere 
a vista. Que fazer com a metade 
humana da morte, a que destila 
um apego e atenua os eclipses 
da lua? Filme de reprise.
O corpo é um buraco onde cai 
o corpo, escreveu o poeta. O meu buraco 
engordou e nunca 
me perdoou o desconsolo. 
Para ela, uma vez visto está visto. 
Fixado o ‘oiro’ nos caracóis do rapazote
que se tornaria meu pai, o barro
da memória cozeu inteiro 
nesse fotograma. A ironia 
do marido ter ficado grisalho
aos vinte e picos é uma gorjeta 
que erradicou do mealheiro 
da memória. Outro desconsolo: 
eu não me ter sabido resguardar
 de aguaceiros no leito 
da debra winger, que entreviu -
entre duas palavras cruzadas - a publicitar 
um perfume (‘ó pá, é muita bonita!’), 
o que me furtaria ao desprovimento da arte, 
franzidos largos na manga do verso. 
Filme de reprise: ‘sabes por que 
é que as boas acções não são 
recompensadas? porque o mundo
é um inferno’, e prosseguiu: ‘vê lá 
se já está a dar a telenovela’. 
Moldou a cicatriz 
ao sofá e chilreou sonho alto.
Não envelheceu – o ar oxidou 
à sua volta, abreviado pelo mistério 
das emoções. Por isso a matemática 
foi o sonho fruste. Ah, o conforto 
de uma sesta à sombra de número primo;
flanar por gentilíssimas figuras geométricas,
neutralizada a força bruta das emoções
- que julga insulares! 
(Mãe, quem não relembra, inconsolado, 
o baloiço do Jardim da Estrela? 
Tomemos o meu caso: 
a maior parte do tempo, 
a poesia é escuta, não há nela conforto; 
um vento agita outro e as ameixas 
sonham com a evasão sem perceberem 
de que nem todo o começo é novo. 
Sim, mãe, o cavalo de Tróia está vazio 
e apodrecido há séculos demais, 
se andarmos à sua volta descrevemos 
um círculo – é tudo. Está a ver a ironia?)
No espaço oco entre mim e o mundo 
(“cada pessoa é um mundo!”, repetia ela)
abre-se e fecha-se, desbotada cauda 
do pavão, o palco da minha consciência.
Trespassam-na rajadas de ventania. 
Se não nos familiarizarmos com 
os seus milhentos murmúrios – recorta-se 
como um selo –,  julgamos o palco 
devoluto, insensíveis 
aos castelos que se erguem no ar.
Era o mesmo com ela: a liberdade 
que nos dava parecia-nos desagasalho, 
vala comum. Fisgados de miúdos 
pela ideia do cheio 
viciamo-nos em sentidos prévios:
o telhado de uma casa, uma balaustrada
para saborear distraidamente uma tosta,
o rugido com que a mãe gorila 
defende as crias. Dificilmente concedemos: 
a vida é um processo 
e a argúcia das cores mede-se 
pela indeterminação que as transforma, 
e não na regra fixa.
O seu debicar na canção ligeira
sangrou na minha descoberta de Coltrane. 
A sua leitura indiscriminada desabou 
em mim as falésias de Nabokov. 
Muito antes dos padres do deserto 
pasmava-me a inexplicável ausência 
de pedras na sua boca. 
E hoje, desataviado 
dos seus lugares-comuns, 
ouço-me a soletrar, Mãe, gosto muito... 
e adivinho-a a abreviar-me a pieguice 
com a sua proverbial resposta 
pronta: “É natural, és meu filho...”
Domingo de manhã, a água luze 
nas espáduas e conflui no ralo. 
Depois do duche, entrega-se 
ao seu vício: imagens videográficas
de crocodilos a rilharem os dentes no papiro, 
à impassível sombra das pirâmides,
enquanto executa as suas lunações, 
mágicas equações de terceiro grau 
com que desautoriza a turbilhonante 
multiplicação dos mundos. 
A meio da manhã, aperta um desassossego,
levanta-se e vai à cozinha inebriar-se 
numa sande de linguiça, 
a que chama “as bichas”.
Uma solitária empedernida. 
Nunca ponderou noutra cor para o azul, 
ou descortinou erotismo no desenho das árvores. 
Aos distúrbios do mundo 
associa a desmesura da colega que vive 
com doze gatos. 
E além de marido e filhos 
nunca tuteou ninguém, desabraçada 
poro a poro por uma solidão inconsútil. 
‘A falar é que a gente se entende!’, 
outro chavão. Mas desentenda-se: 
esta indistinta comunhão é um apeadeiro 
que o ímpeto da linguagem põe diariamente 
fora de circuito, ao engrenar 
paisagens e enganos múltiplos. 
A linguagem é nela um escorrega 
para o fracasso. Fia-se mais 
na vidência da águia 
que topa lebre a quilómetro e meio.                          
Há um ano atrás, fomos ver uma comédia 
de Georges Feydeau e o vaudeville 
fê-la cochilar. Os seus roncos redobraram 
as risadas na plateia. Foi 
um dos maiores sucessos
da sua vida. A caminho de casa, brinquei
‘Hoje esmerou-se, no seu papel de Bela
Adormecida a meio da Purga do Bebé!’.
Rimos tão a gosto que gritou, ’ai!’, 
e descuidou-se. A minha mãe, 
64 anos feitos em Fevereiro.
Uma vida vacinada pela noite inicial, 
isenta de asa-delta. O Mal 
colheu-lhe o pai aos cinco anos 
e prensou-lhe a alegria 
em manhãs de bronze. 
Posta à parte à primeira enxurrada, 
antes de conseguir deitar raízes 
e de entronizar que só nos libertamos
matando os mortos, outra vez, 
os mortos. E que depois disso 
não é crime voltar a amar, 
que o lençol soerga o vento.
O bloqueio é que lhe deu grandeza. 
Escudada na roseira do medo, não 
abandonou o posto 
nos momentos de perigo, 
à vista de um renovo de pobreza criptogâmica, 
ao alarme de uma açulada ressurreição dos mortos. 
Apesar do pavor a semear decisões 
– o que prova que a geometria, 
a ser mansuetude, não é plena – 
era uma retaguarda fiável. 
Parecia inerte como uma cadeira 
e alçava-se de súbito das coisas miúdas, 
tresnoitada magnólia 
que não reclama espanto ou retribuição. 
Exigir-lhe agora que soubesse 
da face quádrupla do homem?
Escrevo-lhe de um quinhão longínquo, 
cabeça no ar como ela, 
tão filho nisso 
que não distingo a agulha do palheiro, 
a luz da sua misteriosa claridade. 
Ainda que levemente mais ciente 
do que devora
e se esconde na trepadeira do visível, 
e de que as paisagens, 
arrancadas ao chão,
desacatam o movimento do sangue.
Escrevo-lhe de uma morada que não conhecerá.
De uma cidade quadriculada, ao seu gosto.
Polvilhada de acácias vulcânicas 
e descomedidas vagens de jacarandá 
que parecem corações na bruma, 
e na qual só a fome é imperecedoura. 
Escrevo-lhe de uma cidade betumada pela dor 
mas talhada por relâmpagos que geminam 
a candura e o pútrido; escrevo-lhe 
empolgado porque no núcleo de espinhos
da micaia há quem ame com a energia 
com que ela verga a morte: “ Ninguém 
cá fica para fazer torrão, nem mesmo ela!”
E graças ao desplante do seu desmentido perpétuo
nunca me calhará o horror: “Por trás de mim 
há uma coisa  que apavora.
                   - Ouves o grito dos mortos?”.
Tenaz, caiou sempre a catástrofe, 
a própria sombra, e mentiras há que erguem castiçais, 
algo que ao arrepio do medo desperta as cores 
da seda, infiltrando nas trevas 
um devotamento leonino.
Não estavam más estas moelas, mãe. 
Vou na quarta caneca, o que só 
acompanha tudo: estou mais persistente. 
Nunca trocámos pinga de melancolia, 
ou de indulgência, brutos e francos 
e divergentes. Sempre soube
que, de têmpora a têmpora, teria  preferido 
um cura a um alcoólico, um solicitador 
a um poeta, a pedra à água, o norte ao sul, 
ter-me-ia preferido um prodígio 
de comedimento. Preferia sempre, ainda que 
de forma tão discreta que era fácil 
não entender do que gostava 
– um algeroz sem chuva, é o quê?
É incómodo intuir que até na morte desa-      
certamos o leve e o novo. Uma geração 
de medos separa mãe e filho: dois artistas
caducos que, falhado o crivo, 
perdem o instinto. Deixe-me respirar, mãe, 
encurvar a matéria como o casulo, 
no seu hausto obscuro. Deixe-me, 
à ríspida maneira do pai,
dizer: o que não se magnifica apodrece,
ata a carne ao que estiola. Embora 
não me surpreendesse que, nesse seu hábito
de passar religiosamente ao lado, 
o seu corpo permanecesse teimosamente 
intocável – carburante para o amor 
e o azougue. Olhe, 
como o inteiriço corpo de Pessoa.
Não certamente: é de lei. 
Daqui a um lustro, 
dois, estaremos sentados numa esplanada 
em Jerusalém (não a exausta, 
do Médio Oriente, mas a fresca 
como um choupo, lá em cima), 
figurantes daquelas fitas bíblicas 
por que se péla, ou no mural 
de um jardim adormecido, a trocar 
impressões sobre a floração 
das miragens.
Maria Casères, actriz sumptuosa e amante
de Camus, um dos poucos 
que consegui impingir-lhe, disse na televisão: 
“Se hoje mesmo aparecesse a fonte 
da eterna juventude não aceitaria um gole. 
Aqueles que amei já franquearam 
a Porta Inóspita e a dignidade
do relâmpago que se comove com o húmus,
deve ser a minha!”. O mesmo 
digo eu agora, mãe, e não 
se trata da trivial promessa 
da criança que roga à febre, 
mas de aquilatar o peso do osso 
no ninho, de uma imperiosa necessidade 
de não malbaratar o vinco de luz 
que nos cingiu. 

Fabuloso! E que título invejável! Muitooo!
ResponderEliminarUm abraço para ti e outro para o teu amigo.
ResponderEliminarBonito texto, António. Abraço.
ResponderEliminar