sábado, 18 de maio de 2013

LEGENDAS PARA SAUL LEITER

Se um dia fizesse uma antologia de tudo o que publiquei escolheria esta imagem de Saul Leiter para a capa: um homem que se afasta com uma história atrás de si que lhe enclavinha os dedos, derrotas que não lhe impedem que avance para o fundo, na direcção dos estorninhos. Está frio mas a sua alma não deixa de andar ao relento. É tudo o que me basta como imagem, e três ou quatro talos de alegria no cerne, que florescem quando a mão larga o livro e se aquece na macia redondez do bule.

 
Nunca saberei explicar como isto me ensina que o homem só acontece quando rompe os padrões. Ou como a beleza se intromete quando algo deslaça a geometria dos fundos.

 
No cinema, uma das coisas mais difíceis é pôr alguém a falar ao telefone. É o momento do peixe congelado. Mas o Leiter ensina-nos como fazer, basta não se ouvir a chamada e "ouver-se" o que está em volta, em cima e em baixo, desabridamente, de forma a esquecer o acto da congelação.


 
Eis a beleza do mundo, assanhada pela placidez do múltiplo… Pound adoraria esta condensação.



A mais dolorida questão da existência é a de saber se coincidimos nos fantasmas. Imaginemos que não e somos como um teclado desconjuntado, num friável desconcerto. Mas, quando sincronizamos, um vulto entra-nos na pele, toma calor, e acorda nos olhos a crença que um pequeno lume tem no nevoeiro…


                                                    As saudades que tenho de cerejas!

 
  Que fosse esta última imagem vista por Deus no processo do Juízo Final: o frágil esplendor da neve nos salvaria!


No meio do caminho tinha uma malha,
havia uma malha
nunca me esquecerei desse acontecimento
a meio de minhas retinas tão fatigadas,
atravessou-se uma malha no meio do caminho.
Ele esperava-nos no bar do Elvis
mas a malha interpôs-se no meio do caminho
a meio do caminho tinha uma malha
que me fez voltar atrás quando a miúda disse
mãe, parece um olhinho do meu hamster

 

 
 


1 comentário: