quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

16 DE JANEIRO


Hoje faço anos. Não é coisa que me anime particularmente. Podia ser um sucesso se me dedicasse a fazer um Guia das Perdas Mais e Menos Aparentes para Pessoas Inteligentes (presumindo que o conceito dentes seja do primeiro tipo, o conceito filhas do segundo e o conceito ornamento seja do terceiro, etc., como li algures) mas sinto-me sempre o prato de farófias que desejava ser o gato branco, o tal que ágil se evade do seu exíguo horizonte. Por isso só tenho uma coisa a dizer: bardamerda - que mau passo! Ou talvez duas: e, agora, venham os dissabores – os do costume!

 
Está na hora de retomar o Raposas, de as vestir de alguma roupagem, até pelo motivo que apontava Oscar Wilde: só uma pessoa muito fútil não julga pelas aparências.



Li o livrinho O Mendigo e Outros Contos, de Fernando Pessoa, que colige algumas das suas short stories, quase todas inacabadas.
Numa das que mais gostei – Empresa Fornecedora de Mitos, Lda.- o narrador pega no bilhete que a criada lhe passara, e lê-se: «o bilhete dizia assim, predominantemente: / Empresa Fornecedora de Mitos, Lda».  A escolha do advérbio é fenomenal, por eufemístico: o bilhete é a única informação que contém. A que se lhe segue é reiterativa, respeita a quem representa a empresa.A escolha do vocábulo é fenomenal por ser tão inesperadamente correcta. Suponhamos que lá estava: peremptoriamente. Era enfático mas não era instigante. É disto que se faz a escrita e não do que se diz.

 
Entro no café em que costumo espairecer depois de dar aulas e vejo que lhe falta o balcão do fundo (com três metros de largura), substituído por uma caduca secretária de porteiro.
Perplexo, pergunto, na brincadeira, Perderam o balcão?
Resposta plácida da senhora, Me roubaram.
Roubaram, inquiro, incrédulo.
Me matracaram, prof., e me deixaram bilhete… - abre a caixa registadora e mostra-me o bilhete, que tem escrito:
«Como não lhe dão uso, lhes dou um help!», assinado X.Não sei como consolar a senhora, mas o ladrão tem razão. Nunca vi um donuts, uma azeitona, um sumo, uma coca, uma caixa de chuingas ou de rebuçados, um palmier e um queque coxo, nada decorava as prateleiras do balcão, nem sequer uma mosquinha morta, era balcão só para mostrar que o era, autárquico e orgulhosamente só.
Sento-me, imbuído de uma sensação agridoce, e peço café e um copo de água. Quando o empregado traz o meu pedido vejo que a chávena tremelica e que o creme do café é atravessado por tsunamis quase inexplicáveis: sou servido por alguém com delirius tremens.
Saio do café para voltar à universidade e cem metros abaixo dou conta de que O Forno (outro café) reabriu após um ano de encerramento. Salivo e vou espreitar. Está pela metade, de uma parte fizeram padaria e na outra arrumaram cinco mesas e um balcão pesado e claramente disfuncional. Atrás do balcão está o dono e dois empregados, que conversam, compenetrados.
Sento-me, sou o único cliente do estabelecimento.
Ninguém me viu entrar e nos dez minutos seguintes espero em vão que olhem para mim, que me acenem ou sirvam. Resolvo escapulir-me, tão silenciosa e invisivelmente como entrei naquela catedral de seis por cinco metros. Como perturbar tantas tarefas construtivas?
Que têm de comum estes estabelecimentos?
Os patrões são portugueses – duas feras para o negócio.

 

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