quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

EXPIRAÇÃO E INSPIRAÇÃO DE JOÃO ULISSES


                                                                 para a Ana Ulisses

Morreu o João Ulisses. Vou ficar na cama
a coçar a cabeça e a cismar na pequenez
da minha clausura. Talvez fume um maço
de olhos fixos no morrão incandescente
em que patinou a minha torre de Babel.
De facto, hoje não tinha nada para fazer,
e daqui para diante será inútil esperar
por anjos caídos no esconso lúgubre,

morreu o João, o meu Ulisses à moda
do Porto. Não era o ULISSES de Homero,
não tinha a estampa do ULySSES de JoYce,
era o que foi dado num encontro alucinado
no antigo Luso do Porto que depois verti
num conto, de fortuna e colarinho incertos.
Homero e Joyce criaram arquétipos, alianças
que não casam com os dedos da morte,

neles as provações são menores que a gana
com que as unhas, o cabelo, o coração
atribulado dos seus heróis, vence o olvido.
Ainda hoje deambulam, iridescentes,
nas circunvoluções do leitor. Reparo agora:
não me ocorre herói que seja calvo.
O meu Ulisses tinha uma bela cabeleira de índio
peruano, até nisso era dotado, mas finou-se,

e o meu cabelo desfalece às pazadas
na fronha encardida. Olho paralisado
o meu corpo, exangue, a deslassar
sob a ventoinha no tecto, o gim acabou,
apocalipse now  forever, e desejo
que o artefacto caia e me decepe:
morreu morreu morreu o Ulisses
de olhos e costas voltados contra o mar.

Triste a condição dos poetas menores,
ver – de Tristia, da estultícia do seu exílio –
morrer as suas personagens, e acordar
a meio da insónia, aturdidos, na mesma cela
em que se esfumam as miragens.
Pudesse eu ainda salvar-me socorrendo-me
de um artifício à Borges: filmando um encontro,
num fumarento bar do basfond de Esmirna,

entre o meu Ulisses e o João, o Ulisses
que eu não conheci. Discordam de tudo
menos da temperatura da luz que havia
no Luso, numa ínvia noite de chuva,
em que uma personagem se senta ao balcão
e pede uma Francesinha.  Para o que se segue
contradizem-se, no mais ínfimo lampejo
da memória. Só eu assisto e anuo com tudo,

como um nó que se descobre marinheiro.
Somos três homens perdidos na bruma,
dois Ulisses e o seu narrador – qual deles
afastará o frio começando a assobiar?
Morreu o Ulisses. Quem me salva a personagem?
Baixem as persianas – o seguro morreu de velho
e eu também não. Um morro de cinza abate-se
sobre a minha sombra. Trabalha ventoinha!



Excerto do conto Ulisses à Moda do Porto, publicado em Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, Teorema, 2008:

«Como é que o conheceste?
Num FantasPorto. Era o quinto filme que via nesse dia, no Carlos Alberto, e sai-me aquele enredo de uma brasa aperaltada que seduzia os homens e a meio da trancada se transformava numa enorme aranha que lhes devorava as entranhas... não aguentei mais e saí para a rua, como diria o Fortes, com uma aranha no penteado. Eram para aí dez da noite, e o Luso estava apinhado. Conheces o Luso, na Praça Carlos Alberto, de vitrinas corridas de alto a abaixo, um café antigo? Só arranjo lugar ao balcão. E não sei porquê, deve ter sido do bucolismo que o filme transmitia, peço uma francesinha.
Consegues comer aquela bodega até ao fim?
Nunca, não tenho o estômago de um búfalo. Nem cheguei a meio.
Pouso a coisa e, foi automático, ouço uma voz com sotaque atrás de mim, importas-te que acabe? E eu, força. Era ele. Ficou de pé, ao meu lado. E disse-me, nem em Bruxelas, esqueci esta merda... e ri-se. Referia-se à francesinha. E eu fiquei logo antenado. Houve uma altura em que todos os amigos que me rodeavam tinham estado em Bruxelas... Entretanto, o gajo do meu  lado saiu,  era um escocês que estava à espera da mulher, que tinha ido ver o filme da aranha, e ela chegou com um ar enjoadíssimo e para nunca mais... e o Ulisses abancou. Queres uma imperial, convidei. Só se pagares. Para mim, ele já era amigo dos meus amigos, tinha estado em Bruxelas... Vê lá se conheceste algum destes gajos, perguntei-lhe, o Al Berto, o poeta, o Guilherme, o Dodo, ou o Tinoco, um tipo que estava ligado à Luar? E ele acenava-me, com a boca cheia. E contou-me a história do salto dele: conheceu no Cais do Sodré o cozinheiro de um barco turco, que o metia dentro do navio, a troco de uns dólares. Pediu dinheiro emprestado e passado dois dias o turco escondeu-o no porão de açúcar. O barco partiu nesse tarde, só que os vapores do açúcar começaram a embebedá-lo e apareceram os ratos, às pazadas demasiados para um homem já meio grogue. E então desatou aos berros. O navio já estava em águas internacionais, saía caro voltar ao porto, e então o cozinheiro disse que precisava de um ajudante... Mais tarde, percebi que não era só isso, o cozinheiro era panasca e marcou-o... Atravessou o Mediterrâneo, parou em várias ilhas gregas, e acompanhou o navio até Esmirna. Aqui saiu, e com a jorna que lhe pagaram, fez toda a costa da Turquia até Istambul, onde arranjou boleia num camião de congelados para Berlim. Um mês depois chegava a Bruxelas, onde permaneceu um ano, antes de se mudar para Amsterdão...
Porquê, a mudança?
Ele nunca me explicou. Na Bélgica o grupo de exilados português era mais politizado e na Holanda era mais janado, era a hipótese que eu punha... Mas um dia perguntei ao Tinoco, que estava ligado à Luar, se ele o conhecia. Ele pôs uma cara de caso, cofiou a barba e perguntou-me apreensivo, Tu és amigo desse gajo? Esse gajo assaltava tabacarias de velhinhas em nome da Luar e tivemos de convidá-lo a mudar-se para Amsterdão.
Olha o figurão... Mas afinal, o que é que te ligava ao gajo?... Então, ficaste mudo?
Lá no Luso, estava a meio da narração prodigiosa da sua vida e diz-me a frase mágica: deixei a minha caixa de poemas com o Al Berto. Nessa altura eu dava uma importância excessiva aos versos, para mim um poeta era um ser de altíssima prioridade.
Ingenuidades...
Cada um tem as que pode... E perguntei: e o Al Berto devolteu-tos? Não, perdeu-os num incêndio. Bolsei a pergunta fatal: tens continuado a escrever? Sim, tenho tudo na pensão... E aqui o sacana foi expedito, disse-me, trabalhei nas alfândegas até à abolição das fronteiras, depois, separei-me, e nunca mais me enquadrei... Nessa altura reparei que atrás de nós fez-se silêncio, mas ele pediu logo outro copo e continuámos, Tens escrito sobre isso, perguntei-lhe, cabotino, e o latoso: é o que me resta, o despojamento das personagens de Beckett é a que estou reduzido. Tens esses poemas contigo, salivei eu. Na pensão.
Espera lá, e como é que ele foi de Amsterdão para o Brasil?
Voltou depois do 25 de Abril. Meteu-se no meio teatral, fez uma peça no Trindade, e depois foi para o Porto, viver com uma actriz, entretanto chamam-no de novo do Trindade para participar num elenco com artistas brasileiros... e ele conheceu a brasileira e pirou-se com ela. Por isso é que ele tinha voltado ao Porto, soube que a antiga namorada estava desamparada e foi tentar a sua sorte...
Continua lá, no Luso...
Disse ao gajo, trazes os poemas amanhã, conheço vários editores. E ele, talvez, estou com um problema... O sacana tem um ar inteligente, matreiro, e é perito em pôr um ar sofrido. Passados dez minutos apanhei-me a pensar, que se foda, o jornal é quem paga, e ofereci-me para lhe pagar os dez contos que ele devia na pensão.
Não te rias, o gajo tinha estado em Bruxelas, o viveiro de todos os meus amigos... Pagas a pensão e amanhã encontramo-nos aqui às três da tarde para me mostrares os poemas...
E leste-lhe os versos?
Noutra ocasião. Mauzotes, muito auto-complacentes. Era um repentista com graça, mas depois não trabalhava o verso, e ficava-se pelo poema-piada, à tropicalista...  E na prosa era pior, mostrou-me um romance e eu dissuadi-o... ou antes, como as editoras lhe deram para trás, ele então resolveu ouvir-me...
E no dia seguinte, o gajo népia...
Cheguei cinco minutos antes, a antegozar os poemas. O Luso estava quase vazio. Eu tinha comprado na Leitura uma antologia de poesia árabe e comecei a degluti-la. E li-a inteira, sem sombra dele. Às 16 horas comecei a ficar inquieto,  dei por mim a observar os desenhos no estuque, uvas e sátiros e ninfas e sobreveio-me a hipótese: criaturas tão dignas a serem observadas por um otário! Quinze minutos depois inquiri o empregado que estava ao balcão e nos havia servido na noite anterior: você não viu o tipo com quem estive aqui, ontem? Ele olha-me compungidamente, lava dois pratos, e depois sussurra, sem levantar os olhos: eu só lhe digo isto uma vez, meu amigo, e se quiser que eu repita, eu nego. O senhor ontem movimentou nesta casa 300 contos em apostas, sobre quanto é que o Ulisses lhe ia apanhar...
Não posso!
Podes com pouco. Foi assim mesmo.
E tu.
Comi e calei. O gajo tinha-me dado um conto. Eram trezentos contra um, mas o meu não era mau...
É verdade.
É essa a minha questão central: eu devia ter-me indignado. Devia tê-lo perseguido e crivá-lo de bofetadas... mas achei que ele me tinha dado um conto, ainda que à custa da minha ingenuidade. Até o título me veio ali, na ponta da língua: Ulisses à moda do Porto. Ainda voltei ao Luso duas noites, se calhar para pôr a hipótese de lhe dar uma galheta, mas o tipo sumiu-se.
Quando é que o voltaste a ver?
Seis meses depois, aqui mesmo. Entro e vejo o marmanjo sentado à mesa com o Zetho, o Patraquim e o Herberto. E adianta-se o tipo, antes que eu pudesse reagir, devo-te dinheiro, toma já cinco mil, e passa-me a nota, o resto depende de o mereceres...»

Advertência: este é um personagem que inventei, a partir do nosso encontro. Eu não conhecia o João Ulisses, estive com ele apenas duas horas, nem nunca lhe li os poemas

2 comentários:

  1. um poema espreitou o dia inteiro
    e nao apareceu
    senti a sua forca o dia inteiro
    nada
    como a agua encima do pato
    que mesmo assim procura um beco com saida
    mas se evaporou
    nao ha como

    andei o dia todo como uma louca
    num feeling de equilibrio
    numa adivinha de luz possivel
    como uma louca de repentemente atenta
    a um desnovelamento que se faz na cuca
    a um tipo de luz que quer aparecer
    assim tipo malta que se quer encontrar
    o segredo do dia e o segredo da noite

    mas eles se estressam da lentura do dia que quer nascer
    e eis que a madrugada desaparece
    volta para onde vem fora das vistas
    e uma janela de sombra fecha-se
    por motivo de uma rainha despenhada
    solidao e o seu nome

    a incompreensao estridente como uma nota
    que dizima o planeta
    o segredo da luz que falta
    na caixa de pandora de todos misterios

    nao
    valera a pena sobreviver
    quando se bate as botas tao bem
    nao
    nao vale a pena sobreviver
    e ver os outros bater as botas
    nao
    nao vale a pena sobreviver
    e sobreviver as falsidades
    e sobreviver a terra,ao ceu
    e melhor morrer
    com a esperanca no coracao
    que e a ultima a morrer.

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  2. Era um cavalo branco a galopar.
    Obrigada pela palavra e pelo gesto.
    o poema é belíssimo.
    beijos.

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