segunda-feira, 30 de maio de 2011

Óscar Hahn: um herói da resistência



Óscar Hahn, chileno (1938), actualmente professor no Departamento de Literatura Hispano americana da Universidade de Iowa. Li em tempos o seu primeiro livro de poesia, Esta Rosa Negra, de 1961, considerado um livro de viragem na poesia chilena, mas na altura não me sensibilizou. Apanhou-me agora, que o releio numa Antologia da Poesia Chilena do século XX, da Visor. Estas traduções dedico-as ao rezinga do Flávio Pimentel.


TELEVIDENTE

Aqui  estou eu de volta
ao meu quarto de Iowa City

Engulo aos sorvos o meu prato de sopa Campbell
frente ao televisor apagado

O ecrã reflecte a imagem
da colher engalfinhada na minha boca

E sou um outdoor de mim mesmo
que anuncia nada
                                 a ninguém.


SOCIEDADE DE CONSUMO

Percorremos de mãos dadas o hipermercado
entre as filas de cereais e detergentes

avançamos de prateleira em prateleira
até chegarmos às latas de conserva.

Examinamos o novo produto
publicitado na televisão.

E de imediato olhos nos olhos
sumimos um no outro

e nos consumimos.



NUMA ESTAÇÃO DE METRO

Desventurados os que enxergaram
uma rapariga no metro

e se enamoraram de rajada
seguindo-a enlouquecidos

enquanto a perdiam
para sempre entre a multidão.

Porque eles estarão condenados
a vagar sem rumo entre as estações

e a lacrimejar nos refrães das canções de amor
que os músicos ambulantes trauteiam nos túneis

E talvez o amor não seja mais que isso
uma mulher ou um homem descendo de um carro

para uma estação de metro e que resplandece uns segundos
antes de se perder na noite sem nome.


OSSO

Como é curiosa a persistência do osso
a sua obstinação em lutar contra o pó
a sua resistência em converter-se em cinzas

A carne é pusilânime
Recorre ao bisturi a unguentos e a outras máscaras
que tão somente maquilham o rosto da morte

Tarde ou cedo será pó a carne
castelo de cinzas varrido pelo vento

Um dia a picareta que escava a terra
choca com algo duro: não é rocha nem diamante

É uma tíbia um fémur umas quantas costelas
uma mandíbula que alguma vez falou
e que agora volta a soletrar

Todos os ossos falam penam acusam
alçam torres contra o olvido
trincheiras de brancura que brilham na noite

O osso é um herói da resistência


FANTASMA EM FORMA DE TOALHA

Sais do duche escorrendo água
e secas o corpo com a minha pele turca

E há algo que te empurra a roçares a esfregares-te
entre os músculos húmidos

Entras num terrível frenesim
numa loucura que lembra a Morte

Até que outra humidade mais densa que a água
te empapa a carne com o seu mel pegajoso

E tu apertas as pernas e gemes e gritas
e eu te chamo inteira com os fios da minha língua.


VIA LÁCTEA

Saía-lhe leite dos peitos
saía-lhe leite que descia pelo seu corpo
em arroios de indizível brancura

Saía-lhe leite que fluía no seu ventre
e lhe molhava os pés
e escorria por debaixo da porta

Era um rio de leite lépido pela rua
numa tangente ao bairro de Santa cruz
chegava à praça de dona Elvira

Leite que subia pelas árvores
ascendia aos céus
e se alastrava  na abóbada infinita

Eram grumos de leite que brilhavam no firmamento


AUTORETRATO DE VAN GOGH

Pois, comecei a falar com o meu próprio espelho
o meu espelho contradiz-me não me diz o que eu quero ouvir

A puta que o pariu

Há uma série de coisas que giram no mundo
coisas que giram em torno do seu eixo

Algo que gira e gira e não pára de girar

O latido dos demónios põe a minha orelha contra o meu ouvido,
escutam o ruído dos meus pensamentos

Plaf, um copo de tinto tinge de vermelho a toalha

Esta é a hora dos cataclismos celestes
quando os mortos saem dos espelhos
e o céu estala em remoinhos de fogo

Um ror de vacas vermelhas com a pele colada aos ossos

A noite estatela-se contra o interior do meu crânio
e rompe-se em milhões de estrelas

O meu pincel é um instrumento de tortura
Os meus quadros estão cheios de flagelações

Vejo duas borboletas brancas sobre um fundo verde

Uma gota de sangue escorre pelo espelho
Molho o pincel e pinto feridas na minha cara

A minha cabeça é um girassol em chamas.



domingo, 29 de maio de 2011

APRESENTAÇÃO DE «NÃO SE EMENDA, A CHUVA» EM POLACO



A cantora e poetisa Tânia Tomé leu o poema A Louca da Casa, que se encontra dois post abaixo. Depois eu disse:

Este é o último poema que escrevi, escrevi-o anteontem.
Talvez se perceba agora porque é que não tenho ninguém sentado ao meu lado para apresentar o meu livro.
É que, sob influência da Louca da Casa, eu convidei o Ricardo Chibanga, o toureiro (o primeiro matador de touros negro do mundo, que era moçambicano, muito famoso nos anos 60 e 70) para me apresentar o livro. Ela garantiu-me, só o Chibanga é que te pode entender essa tua mania de que a poesia é uma lide corpo a corpo, e não uma coisa de literatos para literatos. E convidei o Chibanga. E ele não compareceu.
De corpo a corpo porque é a minha forma de vida, não é o meu hobby.
Para os árabes a palavra é mais interior ao corpo que os próprios órgãos, está no cerne. Por isso eles se fazem explodir – o mais importante para eles, A Palavra – no caso a palavra de Deus -, permanece intacto.
Infelizmente eu não acredito em Deus, ou antes, acredito num núcleo mas que não necessita de que lhe atribuamos um nome. Atribuir um nome a Deus é uma forma de idolatria, mas para mim a palavra também está no cerne.
E por isso assusta-me tremendamente uma possibilidade que é posta por um filósofo ainda mais chatinho que eu, o Derrida.
Ele fala da possibilidade da linguagem enlouquecer, que é o que pode ter acontecido ao alemão para gerar o nazismo, e é o que acontece a todos nós quando teimamos em não aprender a nuance entre a multiplicidade e a diversidade (como me ensinou o brasileiro Tadeu da Silva).
A multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças, e a diversidade que é estática e limita-se ao existente. Com a diversidade temos a tolerância; com o múltiplo o entusiasmo, o contágio, a mestiçagem - o nosso compromisso no processo.
Quem diz esta nuance diz milhares de outras, trabalhar a linguagem é multiplicar as dobras, as diferenças, as nuances, e só assim se enxerga uma possibilidade de cura para as patologias da linguagem que caiem sempre na tentação redutora, no fascismo dos conceitos redutores.
Quando era adolescente havia um grupo de rock muito provocador que era os Krafwerk. Os Kraftwerk introduziram uma imagem no oposto da imagem do rockeiro. O rockeiro clássico – os Rolling Stones, por exemplo – é um xunga gadelhudo que cospe na mãe, arrota na ópera e papa a miúda do melhor amigo enquanto tira macacos do nariz. O que sempre me chateou nos Rolling Stones é que eles apenas ilustram a sua imagem, não me oferecem nenhuma surpresa.
O que eu gostava nos Kfraftwerk é que se apresentavam como jovens caixas do BCI, impolutos, de fato e gravata, e quando começavam a tocar tudo se desmanchava, era a grande loucura – que agia pelo inverso do que se estava à espera.
Os Rollings Stones era só a pulsão do corpo, aquela música é fisiologia pura, tal e qual eu a praticava quando era rockeiro e à noite urinava nas árvores. Os Kraftwerk traziam já um conceito – era como se os meus rins convertessem a urina em ouro, havia uma mudança de grau. 
A poesia é essa mudança de grau, uma linguagem ao cubo, ou a revivescência das cinzas em que está atolada a linguagem no seu nível médio, segundo o Kafka (cf. A Louca da casa).
E só nos dá alguma coisa se lhe pagarmos o preço, o mito romântico do pacto com o diabo não existe em vão.
Tenho a certeza que o Luís Carlos Patraquim, que está ali sentado ao canto, adoraria não ser poeta e ser banqueiro. Eu também, dava tudo para trocar, e, diga-se, tenho uma inteligência extraordinária para os números, mas não consigo… eu quero mas não consigo, porque insensatamente me dispus a pagar um preço e agora a palavra deu-me as voltas e cravou-se-me na carne como um espinho, tou frito, não há meio de arrancar este espinho. Quem consegue é banqueiro.
Daí o corpo a corpo, o mano a mano, como se lê nestes dois excertos de um poema:

A CASA EM CHAMAS
7
«As trevas amargam o verso.
Grainhas que encordoam nas veias o sangue vivo das toranjas.
Porque tudo dá fruto.
Sonhei com um país de gagos.
Era o meu. Os gagos nasciam das árvores
E amavam-se lambendo o intervalo das sílabas.»

8
«O mano a mano: eu ergo o poema e Deus fuma-o, remexe a cinza no seu cinzeiro e sopra-a sem que a nívea nuvem lhe garrote os olhos, ou mude a ingenuidade da moeda que cai sempre de caras.
O mano a mano: rasuro o poema, onde havia plátanos brota o mirto, e Deus, para que não me faleça a música, mete a moeda na ranhura.
Calceta-me a esperança até a luz doer».

Quando era miúdo o meu pai começou a pintar. O meu pai que era tipógrafo foi a casa dum doutor e viu lá um quadro dum boi pintado à maneira dos impressionistas e ficou banzado. E exclamou: mas isto também eu faço.
Chegou a casa e foi comprar tintas e telas. E a primeira coisa que pintou foi um palácio. O que é isso pai, perguntei eu que nunca tinha visto um palácio na vida. E ele responde-me, é um boi. Quando eu fui a casa do dr., senti-me um boi a olhar para o palácio… Mas a casa do dr. era num palácio, perguntava eu sem perceber nada. Não, tinha lá um boi. Um boi dentro de casa, pai? Um quadro dum boi, e eu é que me senti um boi a olhar para o palácio porque nunca me tinha passado pela cabeça que fosse tão fácil. Por isso cheguei a casa e pus-me a pintar. E queria reproduzir aquele boi, mas só me sai o palácio.
Sem saber o meu pai tinha-me incutido a deslocação que se produz na arte, fazendo-me «descobrir aquilo sobre o qual se pode no poema, dizer que isto é como isso» (Badiou), ou seja que uma palavra significa noutra, respira nesse trânsito.
É o que faço neste poema de um só verso:

«Um vidro, enche de cerejas a mão».

Ou o que volto a fazer, ainda que de forma mais subtil, noutro poema com dois versos:

«Morre o vento de pura solidão
entre os plagiadores».

Ou no começo de um poema feito na Macaneta, olhando as ondas a rebentar na praia:

«É nítido, antes de rebentar, espreguiçam
as suas malhas de leopardo.»

Basta olhar para reparar as malhas de leopardo nas ondas, mas só a poesia nos dá a lente para «ver», o que é diferente de olhar. Outra nuance. A poesia ajuda-nos a duas coisas:
- a voltar a ver, isto é a detectar as intensidades no horizonte amorfo,
- e ajuda-nos a re-ligar o que parecia separado, a pele do leopardo na onda do mar.
Deus, se quiserem é esse padrão que re-liga tudo, dar-lhe um nome é que equivale a dar um passo de recuo para aquilo que separa.
Já a poesia é uma lente que, como dizia o brasileiro Mário Quintana, nos ajuda a fugir para a realidade.

Que livro é este, «Não se Emenda, a Chuva»? É o meu 5º livro de poesia, ainda que haja um deles, a Arte Negra, de 2000, que reúne outros 5 livros. E é um livro dum homem de 50 anos, de um homem maduro que já não procura o adjectivo brilhante a todo o custo e se preocupa agora mais com a rasura e alguma exactidão da palavra, sobretudo quando difere de mim. Até porque o mais excelso palácio não passa de um boi.
É um livro relativamente sereno ainda que condoído aqui e ali, como se vê neste verso:

«A minha vida progride como a sintaxe do gago».

O livro dialoga com a tempo, a morte, o amor, o sexo, a palavra, a arte, fala do álcool, do sangue – tudo o que deve ter um livro que se preze como num livro dum homem adulto.
Não seria ainda o livro que gostaria de ter dado a conhecer em primeiro lugar em Moçambique pois está armada de referências que pouco vos dizem, sendo um livro que se dirige mais a um certo leitor português de poesia, e medianamente informado dela, mas tem um ciclo de poema já com explícitas referências locais, Sete Facetas do Tempo entre os Corsários da Macaneta, e como vos disse o livro contém alguns poemas reflexivos sobre temas universais, a morte, o tempo, o amor, etc. Não dá para comer pipocas, mas não é mau.
Talvez ainda este ano saia em Maputo um volume que intitulará «Enumeração de todos os passos em falso» e que reunirá três livros inéditos, esses sim absolutamente mergulhados no Índico e nas paisagens dramas e gentes de Moçambique.  
Por agora leio-vos três poemas, um sobre a morte, outro de um lirismo a contratempo e com algum humor, outro sobre as vilanias do desejo, outro sobre a família.
Dois poemas em torno da morte, do ciclo Talhão 83: as Lições de Pesca:

14
«O corpo que se enfia no crânio, lapidado
Por ideia fixa, o que se esconde debaixo
De uma telha ou no álgido miolo de uma nuvem
E daí nos acena com mãos invisíveis,
O corpo que já vibrou nas paletas
De um olhar caloroso e cativa agora
As vísceras de Deus, como o broto
Ceifado às primeiras geadas
Elucidam-te: cada vez que mata
A morte reencontra a sua infância,
Cada vez que te trespassa alguém tu
Perdes a tua. E afinal o que espanta
Na morte? O seu sigilo profissional.»

15
«A chuva pinga-te o rosto: ressalta na pedra.
Fecham à pressa o féretro e as pás afluem
A um monte que não é Sião. Talhão 83,
Numa planura de humores, como o teu, já frios.
Na cercadura de árvores, reconheço freixo, amieiros,
Tílias, e parodio o poder de nomear
Com que a vida esparge ilusões.
Neste mesmo recanto algures – não sei onde –
Enterram o meu pai, teu irmão.»


O poema de um lírico envergonhado, que é o que sou, com humor q.b:

                     (o segredo duma relação duradoura?)
«Quinzenalmente, após cem salvas suplicantes, evoco
Goytisolo, terra espúria, ingrata e mesquinha,
e alanco c’a botija do gás
(o vazio pesa mais que as palavras).
Vale é ser no prédio.
Rasgada e múltipla, a alma conta os passos.
Pela escada, a sua voz quase áfona não esquece o sermão:
recusa-as riscadas, sujas, com bolhas a estalar a tinta.
A botija tem de estar num brinco. Não sei
se imagina o gás mais dócil
em vestido novo, se o fogo liso, pronto a estrear,
se acha que o inferno se submeteu a um lifting. 
Nunca perguntei e não regateio
o cheiro a hortelã que me espera, morto de cansaço».

E já agora outro, menos envergonhado:

«Ao fim de catorze anos de casamento, entregamo-nos
como duas crianças envergonhadas pelas suas faltas
e talvez por isso nos amemos…», leio
- como isto fala de nós, meu amor.
Descrever-te os pássaros na Macaneta?
Precisaria de ser o flautista de Hamelin, que pelo sopro arrastou ratos,
crianças, chaminés e soldadinhos de chumbo.
Mas olha, tinhas razão, devia ser proibido adormecer sem ter o mar por fundo.
Noutras condições parece-me sempre o amor modesto.

O poema sobre as santas vilanias do desejo:

           Villon, as ocorrências menores
«Villon é testemunha ocular duma rixa
de que resulta um morto – a última coisa
sabida da sua biografia, por
falta de fontes ou de ser visto.

Até aí, no afogadilho de perseguir
galinhas no pátio para lhes torcer
a eloquência, correu atrás da vida.
Felizes os dias, ou mais audazes,

de quando se era ladrão e poeta,
e não esta acedia a prestações,
rendido o garamond ao decote

da macua que me desflora a sagres
em maninhos sonhos rupestres. Villon
há-de ser o nosso padrinho de casamento.»

Um poema que fotografa as dezasseis horas de cópula do gafanhoto:





Queriam! Adquiram o livro!
Até tem um poema que menciona o Napoleão – imagine-se!
O melhor poema do livro chama-se Um Rio Nada Doméstico, é uma narrativa articulada em 7 sonetos, mas também sobre esse fico caladinho, que é só para quem comprar livro - o que é justo.
E agora para os meus amigos bloguistas e os admiradores do Al Berto, um último brinde:

A LINHAGEM DE CAIM

Cunhou Caim na face interior do seu anel o primeiro dragoeiro que viu.
O espírito do Al Berto, que no céu voltou a desenhar, ajudou.
E Caim descobriu aí: não tinha deixado de sonhar.
À sombra da sua prole vicejou a domesticação dos animais, a música e a técnica.
Reponta no vértice dos espelhos a beladona?
Que emendar à perfídia da convalescença em que Caim nos nublou?
É trigo limpo: só em águas freáticas me abismo e troco Abel por Mozart.
Aproxima-se um ganso num afluxo de hostilidade? Rejubilo.
Da observação de tais desacatos despontou Homero.
E pago o preço, dispondo-me a morrer em Zanzibar.

E pronto, está apresentado.
E não digam nada disto ao Expresso, senão eles teriam que ter o trabalho de omitir.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

PARA TRÁS MIJA A BURRA



Tenho um amigo, o Nazir (tudo bem aí em Barcelona?), que nas fotografias aparece sempre de costas. É um mistério. Reúnem-se quatro compinchas e fazem uma foto de grupo, e ele, que sorri para a câmara como os outros, aparece de costas.
Há duas hipóteses, ou o sacana é Jeová, himself, e cada um de nós o coitado do Moisés que chamusca os cílios e pestanas nas costas de Deus que se afasta, ou nós somos os figurantes de um sonho dele e ele é único que está cara com cara com a realidade. A gente deixou de se interrogar muito sobre este particular.
No outro dia propus-lhe, vou tirar uma fotografia às tuas costas, a ver o que dá.
Deu o Jardim de Versailles, tal como o imagino, pois nunca a palma dos meus pés pisaram a brita das suas alamedas.
Chamei outros amigos para repetirem a experiência: todos lhe tiraram uma fotografia às costas e deu sempre o Jardim de Versailles – tal como cada um o imagina. Para o Núrio, o Jardim de Versailles é uma loja de trezentos. Ele foi maoista em tempos - não sei se será desculpa.   
O que é assustador é que esse meu amigo, nos sonhos, é cleptomaníaco. O gajo não se aguenta, gama tudo o que vê. Pelo menos uma vez por semana, quando vamos jogar bilhar, ele faz-nos o inventário do que gamou nessa semana. Contudo, de nossa casa ele não leva, traz.
Criou de miúdo o hábito de passar pelo arraial permanente que fica no terreiro em frente à casa dele, e de ir à barraca de feira atirar argolas aos gargalos das garrafas. Antes de sair de casa telefona e pergunta, quantos vamos aí jantar esta noite? Cinco. Vai à barraca e ganha cinco copos. É matemático.
Ontem trouxe-me uma fotografia do Eusébio de costas a fintar o Pelé. Está inédita, nunca tinha visto, e o Pelé tem o ar de quem vê pela primeira vez um violino a tocar saxofone.
Foi o primeiro mimo que recebi ontem.
Depois no Blog dele o Amadeu Baptista postou uma fotografia minha que é do mais catita que há, ia-me afogando nela como Narciso ao ver pela primeira vez a sua imagem – vejam, que belo moço que lá se estampa, estará solteiro?    
Vai o Carlos e rodeia-me de mimos no Transeatlântico, até um queijo me mandou por fax.
A seguir a marralha de Setúbal, boa terra do Bocage, onde os erres dão flor, desnaufragou-me em ilhas onde quem faz vénias ao vento (que é o meu caso, é o meu vício mais entranhado) recebe cálices de vinho de palma: sura – como se chama aqui.
Do outro lado do planeta, A Bela Bípede Falante (vi-lhe o palminho de cara no blogue do Tuca – será solteira?) envia-me plumas,
e a Izabel Lisboa escreve-me com a maciez das avelãs,
e ainda por cima o Tuca Zamagma, o Grande Desinformador, Desinquisidor Mor em terras de Guarani, faz uma das coisas mais bonitas que me tem sido dado visitar: convida dezoito esferográficas a manufacturarem um naperôn de homenagem a uma jovem, a Raíssa, que faz 18 anos. Eu, se tivesse recebido um estímulo destes aos 18 anos, tinha-me tornado Rimbaud. É confirmar, meus senhores.
A canalha humana ainda não está perdida. Agradeço-vos a notícia
Fica por resolver o mistério do meu amigo aparecer sempre de costas nas fotografias. Mas como para logo tenho reservada uma garrafa de Macieira velha, há-de o casco da aguardente fazer-me navegar em arquipélagos onde as respostas caem das árvores.
E com esta cá me vou, emendando a chuva.
E chega de carinhos, ó canalha – o carinho mata, ouviram?

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O LANÇAMENTO EM MAPUTO DE «NÃO SE EMENDA, A CHUVA»


É amanhã o lançamento em Maputo do meu livro Não se Emenda, a Chuva, dois meses depois de me terem sido enviadas pelo correio duas remessas que se extraviaram – desviadas pelos próprios serviços dos Correios para serem vendidas na rua.
Tenho finalmente um exemplar, trazido amigavelmente pelo romancista João Paulo Borges Coelho, que foi a Portugal e teve a simpatia de mo trazer pessoalmente.
Nem sei o que sinto. Já não sinto nada, como o amante que recebe pela primeira vez a amante mais desejada na tarde da notícia da morte do pai, do irmã e duma filha, num sinistro na auto-estrada… ciente de tudo ser tarde demais. Os livros, como os relacionamentos humanos, também têm um timing para a celebração, senão ardem como capim anónimo no pasto da memória.
Tinha dezassete anos quando publiquei o meu primeiro livro, que vendia no metropolitano em Lisboa, alinhados sobre um pano vermelho, no chão, enquanto eu distribuía poemas tirados numa velha stencil. Assim consegui pagar a edição, em três meses de vendas diárias.
Um livro patético duma ingenuidade picotada em gritos que me ensurdeciam. Puro heavy-metal. E orgulhoso da fanfarronada em copos e drogas leves, numa retórica pesada que eu julgava beat. Em 1977, era Lisboa uma festa. E aí conheci o Levi Condinho, um poeta mais velho, de genuína cepa, que me acompanhava aos concertos de rock mas me encharcava de jazz e Berio e poesia japonesa e Herberto e Ruy Belo, e Vicente Aleixandre e Murilo Mendes e os manos Campos. O Levi, com o seu bigode à Nietzsche e o cabelinho à Peter Handke foi o meu primeiro mestre e não tinha ponta de cálculo, inocente como a flor dos náufragos que ele sonhava encontrar ao fundo de cada copo de vinho tinto.
Será um dos ausentes de peso amanhã, que gostaria de ver no lugar das cadeiras vazias. A seguir o poeta Al Berto de quem fui muito amigo e um dos seus autores, quando regressou de Bruxelas e delapidou o que lhe restava da herança numa dúzia de livros invendáveis. Depois o José Amaro Dionísio, um amigo do peito, e a sua Fátima Maldonado. O Rogério de Carvalho, encenador incansável, uma espécie de pai perpétuo, que me emprestou os primeiros livros contra o depósito do meu BI, e com quem eu hoje, entre bacalhauzadas, discuto Badiou pelas tascas de Maputo, vai estar felizmente presente, num daqueles casos da vida que reaproxima os extraviados. Mas o Guilherme Ismael não vai estar, meu irmão de adopção, moçambicano, com quem reparti tonéis de mau vinho e esbocei trinta projectos de filme, porque esse já lá está a acotovelar-se entre tronos e dominações, no ingrato céu do ataúde. Nem o Assis Pacheco, também já consumido pelo fogo preso da vida, nem o Teófilo e o Fernando Santos, a Lourdes e a São, bons amigos, nem o meu birrento “discípulo” Francisco Ferreira, que nunca se atreveu a vir a Maputo. Nem a minha irmã João, nem as Suzanas, a Sousa Dias e a Gonçalves, nem a Alice, a minha primeira namorada oficial, nem as minhas filhas mais velhas, Maria e Carolina, nem a doida da Marina, a quem amei conturbadamente. Vai ser uma plateia de fantasmas. Nem o Carlos vem do Pico, nem o doido do Manuel da Silva Ramos da Covilhã. Fica sobretudo esta triste sensação de que estamos a regatear em torno de um presunto já demasiado fumado sem que cheguem os talheres para o devido desfrute.
Vou apresentar também, em dez minutos, dois livros meus de ficção que a Minerva teve a gentileza de importar, o meu primeiro, Cegueira de Rios, editado pela Relógio d’Água em 1995 e as Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, editado pela Teorema, em 2008, um livro de 300 páginas que me levou 3 anos de escrita e cuja história conto a seguir.
A Cegueira… surgiu-me numa altura em que escrevia, por encomenda, muitos guiões para cinema, alguns que assinei e outros como negro, e em que comecei a dar conta do brutal desfasamento que às vezes havia entre os guiões e o produto final, que conseguia ser ainda pior que os guiões. Ao fim de cinco burradas, um tipo tem que fazer alguma coisa por si. Eu escrevi esse livro de contos. Tem dois contos que me agradam muito: O Milagre de Sevilha, uma variante sobre o Don Juan, cujas aventuras são contadas pelo seu motorista, sendo a novidade que o protagonista é cego; e A Reunião de Condóminos, que se debruça sobre um muito especial Clube de Procrastinados.   
Sobre as Tormentas… livro de que gosto muito, dezasseis contos num painel variado de estilos e formas, e que é, simplificando, uma autobiografia inventada, no sentido em que o exercício foi inventar o que aconteceria se em cada momento em vez de ter virado na rua à esquerda, o tivesse feito para a direita (o livro teve direito a quatro críticas laudatórias e ao silêncio do Expresso, jornal para que trabalhei 18 anos) não tenho mais a dizer do que aquilo que escrevi no meu diário e que reproduzo:
«Baudelaire, no fim da sua vida, fez a contabilidade do que a sua pena lhe havia garantido. Chegou a um total de 15 892 francos e 60 cêntimos – e o amigo que foi testemunha desta lúgubre contabilidade comenta: ‘Assim, este grande poeta, este pensador terrível e delicado, este artista perfeito, tinha ganho, em vinte e seis anos de labor, à volta de 1 franco e 70 cêntimos por dia.’
Assim me senti eu, um artista comprovadamente imperfeito, um pensador mais beato, menos mordaz, mas igualmente dedicado, quando telefonei para a contabilidade da Leya, dois anos depois de ser distribuído o meu último livro de ficção, Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, um book de 300 páginas que levei três anos a apurar com lima & formão, ter chegado ao mercado, e sobre a qual uma impassível voz feminina, do outro lado do bocal, de boa-fé, me informa que tinha a receber, um total de 280 euros, referentes a 70 livros vendidos.
Eu estava à espera de ter vendido seiscentos, setecentos livros, já que o dito, lançado no momento em que o editor trespassou a Teorema à Leya, fora lançado às feras. Apesar de ter tido direito a 4 textos ditirâmbicos nos jornais, e a um breve apontamento de Jorge Listopad, que me emocionou pela cumplicidade, justeza e sintonia, eu sabia que o momento editorial era difícil e que o meu afastamento tinha um preço. Mas não esperava por números tão ridículos (não quero entrar na paranóia de dizer que os dados estavam viciados, ainda que tal pareça), pois sobre o meu livro anterior, As Cinzas de Maria Callas, tinham-me sido pagos os direitos de 1500 livros vendidos.
Na verdade, o malogro do livro começou no próprio lançamento, a que o editor teve a delicadeza de faltar. Eu chegava de 10 000 km, doente, absolutamente estoirado, pois para poder viajar tive de escrever um argumento de uma longa-metragem, que me fora encomendado, numa semana, o que me levou a não dormir praticamente. Arrastei-me como um zombie pelo encontro de Literatura de Viagens, em Matosinhos, sem energia, absolutamente incapaz de estar com os outros e até com medo disso, de tão exaurido, e quando chegou a minha vez de botar faladura tive uma quebra de tensão e ia adormecendo em cima da mesa. O que foi notado. No fecho dessa edição do Encontro, foi-me proporcionado um lançamento paralelo com uma vetusta ilustre da terra que festejava os seus oitenta anos dando a lume um tomo sobre a sua rua, os vizinhos, a genealogia dos seus gatos, drogarias e mercearias e do bairro, e a sala estava à cunha de fungosas anciãs. Praticamente nenhum outro escritor, amigo ou não, se deslocou à sala para ouvir o sonâmbulo. Eu estava sozinho, uma tartaruga que um dia se julgara bukovski com as setenta velhinhas ululantes. O editor, nem tivera a delicadeza de me informar que iria para Lisboa mais cedo. Soube-o diante da sua cadeira vazia. Contei então à plateia a história de um editor viúvo e meão, de bigode cor de barata velha, mas incansável no dar ao dedo e no desfiar de histórias de vígaros e de pequenas safadezas, e que procurava casamento com uma viúva do norte. É sabido que as velhinhas viúvas, se as transporta a saudade de ser novas, não são amenas, e como não já nada têm a perder, adoram vígaros. Acabei por recolher trinta e oito cartões de visita para entregar ao editor. Era a única coisa que podia fazer por ele, posto que ele por mim se havia baldado, à socapa, com a arte dos exaustores. Quando nos encontrámos em Lisboa, ele foi tão frio, tão abjecto, que nem lhe passei aqueles passaportes para esfregar a barata velha do bigode nas badanas das pussycats dolls de Matosinhos. E acabou assim a minha glória de escritor. Confirmada pelos 280 pauzitos recebidos dois anos depois.
Não conto como o editor me abordou à minha chegada a Matosinhos, tinha poisado as malas no quarto há cinco minutos, sobre a necessidade imperiosa de que o livro fosse um êxito para poder continuar a editar-me, o que me soou logo a extemporâneo e a ameaça, sabendo de antemão que ele nunca mexera uma palha por livro nenhum; nem conto o episódio de, na sequência de ter sido informado sobre o êxito rotundo do livro, ter pedido exemplares e me ter prontificado a ir buscá-los à editora, tendo obtido a resposta de que precisamente nessa altura entrariam de férias, quando a secretária de direcção, numa estrutura de 3 elementos, já estivera de férias (dito e reafirmado pelo substituto, com quem falei três vezes ao telefone) durante as duas primeiras semanas da minha permanência em Portugal. Não conto, nem repito: não quero entrar em paranóias.
Portanto, cinco anos depois de ter saído de Portugal para mergulhar noutras experiências e escrever, estava a saldos com uma falência baudelariana e sem editor». E fica tudo dito.
E amanhã vamos ver o que ficará dito. Uma coisa está decidida. Vou abrir a coisa lendo A Louca da Casa.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR 6/ REVISÃO FINAL DE A LOUCA DA CASA

guan zeju

Há coisas que escusávamos de saber, par exemple, que Malebranche chamou à imaginação «a louca da casa».

Não sei que louca lambuzou a orelha do Kafka quando ele escreveu: «o nível médio da linguagem não é senão cinza», mas eu quero essa louca para mim.

Vencido o mar, o fuste onde a codorniz, enfim destumultuada, assobia para o lado, antes de retomar voo numa direcção sem itinerário, será a língua da louca?

Os dedos de salsugem da louca da casa acordam-me a sede lancinante do bêbado mendigo: ‘que culpa tenho eu, escusa-se ela, se a partir dum determinado momento migram as palavras para dentro das letras, mais velozes que o sangue que cicatriza os cromados?’

A linha divisória, que linha divisória me pode separar da louca da casa, sem destruir aí uma assimetria essencial, a cólera que dá flor?

Uma língua sem afeição é um espelho carbonizado, um grito mudo. Que língua aviltada, espectral, vigia a louca da casa? Aquela que sela o abismo. Porque o abismo da louca, pelo contrário, abre-se sem fim.

A língua que espera pelo seu esfregão acabará por ser engolida pela Maçã de Adão. Onde se desencadeia o desprendimento da língua de areia? Na chuva, primeiro dos abismos sem fundo.

Deixem-me sentar na língua da louca, a sua humidade lubrifica um ritmo que arboresce e nunca cansa o vento.

Felizes os dias em que os académicos iam às exposições do Matisse com uma ponta e mola no bolso. Dias da louca da casa.

Se quer dizer olhar, diz litoral; nunca diz desejo, menciona por alto uma melancolia paranóica; nunca chama ao sono sono, profere: que insosso. E junta numa panela os ossos do ofício, para confeccionar uma gelatina a que chama O Osso-Buco de Deus.

A louca da casa, deixou de correr atrás da palavra exacta, que dispara as sinapses, e agora almeja a palavra que possa deter o fluxo.

Nada me descasca do meu corpo, pelo menos não já – confia-me a louca da casa.

Faço deslizar uma fina aresta do BI entre as teclas do laptop e alarmo-me: no seu rasto repontam tufos de cabelo. ‘Todo o meu cabelo se verte por sob as teclas, lastimo eu, é aqui que o deixo – de ano para ano um jardim mais glabro!’. Ela encolhe os ombros e escarnece: ‘…se não quer apanhar mais sol!’.

Ter sotaque, censura-me ela, é como andar na praia de meias calçadas…- e é quase um bom argumento, não conhecesse eu os dotes perfuradores das minhas unhas nas peúgas.

A louca, se lhe perguntam que quer, responde de imediato, quero cegonha no pão. O que me cansa, as minhas redes de borboletas não ultrapassam as chaminés.

Chega a louca da casa com duas cabeças de galinha a despontar-lhe dos sovacos e pede-me ‘dá-me um moeda para eu a dobrar na virilha…’

 Mostra-me a sua língua momentaneamente alugada – suspeito que começo a ser o pano roto para a louca da casa.

O ar ao contrário de ti - censura-me - não fala pelos cotovelos. E eclode em mim uma fúria… sabe lá ela como eu ardo!

Às vezes tenho dela um terror animal, como desta coisinha durinha de roer, de Holderlin: “E não é um mal se algo/Leva à perdição e do discurso/ A viva voz acaba por se velar!”.

Havia na minha adolescência um craque do futebol chamado Victor Baptista, um pintas que acabou no presídio. Era um ponta-de-lança genial, acutilante como o canino da chita. Nunca o vi de língua de fora, ou só uma vez: no jogo em que perdeu o brinco da orelha e o ataque do Benfica parou durante dez minutos, para a chita esticar o rabo no ar, desmemoriado como um limpa-brisas. Aí vi, comprida e áspera, a língua da louca.

Hoje deitei-me com a louca da casa. Perguntou-me, já depenaste algum anjo. Respondi-lhe à queima-roupa: sempre que me vejo ao espelho. E ela indagou, em que nesga da porta.

Está sentada. À janela. Intermitentemente, num relance, faz panorâmicas pela rua. Debalde. Espera. Que espera? Uma carta que traga agarrada a si a pele da noite em que nasceu, interminável e impossível de ser interceptada.

Amo a louca da casa, nem me atrevo a dizer-lhe isso. Mas ela espia-me. Já tem os gravetos guardados para me deitar em cima e o fósforo está escondido debaixo da língua.

Há coisas que escusávamos de saber, par exemple, que Malebranche chamou à imaginação «a louca da casa».
Espero que lhe tenham vindo a ser cortados rente, à medida que nos esquecemos dele.



terça-feira, 24 de maio de 2011

A LOUCA DA CASA/ poema revisto

balthus, 4 quadros sobre educação

Há coisas que escusávamos de saber, par exemple, que Malebranche chamou à imaginação «a louca da casa».
Que lhe tenha vindo a ser cortado rente, à medida que nos esquecemos dele.

Não sei que louca lambuzou a orelha do Kafka quando ele escreveu: «(em alemão) o nível médio da linguagem não é senão cinza», mas eu quero essa louca para mim.

Vencido o mar, o fuste onde a codorniz, destumultuada de si, assobia para o lado, antes de retomar voo numa direcção sem itinerário, será a língua da louca?

Os dedos de salsugem da louca da casa acordam-me a sede lancinante do bêbado mendigo:
‘que culpa tenho eu, desculpa-se a louca da casa, se a partir dum determinado momento
as palavras migram para dentro das letras, mais céleres que o olhar irisado de sangue nos cromados?’

A linha divisória, que linha divisória me pode separar da louca da casa, sem destruir aí
uma assimetria essencial, a cólera que dá flor?

Uma língua sem afeição é um espelho furado, um grito mudo. Que língua aviltada, espectral, vigia a louca da casa? Aquela que sela o abismo. Porque o abismo da louca, pelo contrário, não tem fim.

A língua que espera pelo seu esfregão acabará por engolir em seco a sua própria voz.
Onde se desencadeia o desprendimento da língua de areia? Na chuva, primeiro dos abismos sem fundo.

Deixem-me sentar na língua da louca, a sua humidade lubrifica um ritmo que arboresce e não me cansa.

Felizes os dias em que os académicos iam às exposições do Matisse com uma ponta e mola
no bolso. Dias da louca da casa.

Se quer dizer olhar, diz litoral; nunca diz desejo, menciona por alto uma melancolia paranóica; nunca chama ao sono sono, diz insosso. E junta numa panela os ossos do ofício, para fazer uma gelatina a que chama O Osso Buco de Deus.

A louca da casa, deixou de correr atrás da palavra exacta, que dispara as sinapses, e agora almeja a palavra que possa deter o fluxo.

Nada me descasca do meu corpo, pelo menos não já – confia-me a dona da casa.

Faço deslizar uma aresta fina do BI entre as teclas do laptop e alarmo-me ao ver como repontam por baixo os tufos de cabelo. ‘Todo o meu cabelo se verte por sob as teclas, lastimo eu, é aqui que o deixo –  de ano para ano um jardim mais glabro!’. Ela encolhe os ombros e escarnece: ‘…não quer apanhar mais sol!’.

Ter sotaque, censura-me ela, é como andar sempre na praia de meias calçadas…- e é quase um bom argumento, não conhecesse eu os buracos que as minhas unhas produzem nas peúgas.

A louca, se lhe perguntam que quer, responde de imediato, quero cegonha no pão. O que me cansa, as minhas redes de borboletas não chegam lá.

Vem a louca da casa com duas cabeças de galinha a despontar-lhe dos sovacos e pede-me dá-me um moeda para eu a dobrar na virilha e mostra-me a sua língua momentaneamente alugada – ‘assegurei um aumento anual condizente com a inflação’, diz-me.

Suspeito que começo a ser o pano roto para a louca da casa.

O ar ao contrário de ti, censura-me, não fala pelos cotovelos. E eclode em mim uma fúria – sabe lá ela como eu ardo!

Às vezes tenho dela um terror animal, como desta coisinha durinha de roer, do Holderlin:
“E não é um mal se algo/Leva à perdição e do discurso/ A viva voz acaba por se velar!”.

Na minha adolescência havia um craque do futebol chamado Victor Baptista, um pintas que acabou no presídio. Era um ponta-de-lança genial, acutilante como o canino da chita. Nunca o vi de língua de fora, ou só uma vez: no jogo em que perdeu o brinco da orelha e o ataque do Benfica parou durante dez minutos, para a chita pôr o rabo no ar, desencontrado como um limpa-brisas, desmemoriado. Aí vi, comprida e áspera, a língua da louca.

Hoje deitei-me com a louca da casa. Perguntou-me, já depenaste algum anjo. Respondi-lhe à queima-roupa, sempre que me vejo ao espelho. E ela indagou, em que nesga da porta.

Está sentada. À janela. Intermitentemente, num relance, faz panorâmicas pela rua. Debalde.
Espera. Que espera? Uma carta que traga agarrada a si a pele da noite em que nasceu, interminável e impossível de ser interceptada.

Amo a louca da casa, nem me atrevo a dizer-lhe isso. Mas ela espia-me. Já tem os gravetos guardados para me deitar em cima e o fósforo está escondido debaixo da língua.